A dogmática jurídica na obra Kelseniana

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04/04/2015 às 16:34
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5.      Grundnorm: A Norma Fundamental

Kelsen fundamenta o objeto da ciência jurídica no conjunto de normas válidas, segundo Ross[33], o conceito de norma válida estaria relacionado à sua aplicação, o autor fundamenta a validade da norma na sua manifestação prática nos tribunais, Kelsen[34] contesta tal conceituação ao se perguntar como poderemos validar uma norma que ainda não tenha sido aplicada, o jurista austríaco então apresenta sua concepção de norma válida ao relacioná-la com outra norma que a antecede hierarquicamente, que seria precedida por outra norma, e assim sucessivamente, até a norma fundamental (Grundnorm).

Nesse sentido, Kelsen[35] reconhece como válidas apenas as normas consideradas eficazes, isto é, que são de fato observadas e aplicadas, tal aspecto pode ser considerado a reflexão sociológica do Direito. Kelsen, dessa forma, conecta o Direito à observação da realidade, a eficácia está ligada à validade de todas as normas, inclusive da norma fundamental, portanto, só através da eficácia um ordenamento jurídico esse pode ser considerado válido. A Teoria Pura kelseniana recebe algumas críticas pelo seu caráter paradoxal nesse aspecto, como pode uma ciência que se diz autônoma, depender da eficácia da norma para torná-la válida?

Perspectivas mais inclinadas ao caráter sociológico do Direito, como a posição realista, procuraram suprir esse aspecto tão criticado no postulado da validade da Teoria Pura de Kelsen. Bobbio[36] confere um grande mérito a essas correntes, por terem impedido a cristalização do pensamento jurídico em uma dogmática sem inovações, nesse sentido o realismo procura fazer julgamentos com base apenas na valoração dos interesses dos conflitos.

Kelsen acredita que para fundamentar todos os fenômenos de força e conduta expressos de forma jurídica devem fundamentar-se sobre uma norma fundamental, essa norma fundamental garantiria a validade do ordenamento jurídico, e não exigiria outra norma que a repousasse, por isso Kelsen qualifica-a não como posta, mas como pressusposta. Segundo Ferraz Jr.[37], dessa forma, a norma fundamental aparece como condição para que pensemos dogmaticamente o Direito.

Hart[38] procura explicar tal fenômeno de outra forma, segundo o autor para explicar a validade do sistema e de suas normas há a chamada norma de reconhecimento, que não seria válida, nem inválida, simplesmente existiria para validar as demais normas.

Kelsen é chamado por alguns autores de jusnaturalista encoberto, devido a sua tentativa de inserir algo necessário para a construção do Direito, por tentar garantir validade a algo construído fora da história, ora, todas essas fundamentações Kelsen procurou dar um embasamento jurídico, e não ideológico ou ético, como os jusnaturalistas. Kelsen procurou fundamentar o Direito, de forma abstrata, através de um sistema que regulamentaria o uso da força, nesse sentido Kelsen não procura, primeiramente, dialogar com a realidade social, essa conexão só acontecerá de forma indireta, através de uma análise jurídica formal dessa sociedade.

Dessarte pretende-se obter uma ciência autônoma, independente de suas aplicações sociais, até com a intenção de evitar que, através de uma análise social a função da norma, essa se contradiga e acabe por perder sua autoridade no meio social. Essa autonomia do Direito propõe um respeito ao texto da lei, variando na sua interpretação entre um mais subjetivo, que procura descobrir a vontade do legislador ao criar a lei, e um mais objetivo, que se atem ao significado da lei. Desses dois caminhos para a prática jurídica, Kelsen opta por seguir aquele que desprende o Direito da sociedade, produzindo, dessa forma uma ciência empobrecida, sem relações críticas com o meio social.


6.      A Dialética na Construção do Direito

Como enunciou Miguel Reale[39] em sua obra, devemos evitar os males da excessiva formalização do Direito, nada é mais pernicioso do que reduzir o Direito aos comentários dos textos jurídicos, pois seus significados não se encontram apenas no seu sentido lógico, mas também na sua função histórica e sociológica. Os significados jurídicos não devem esgotar-se na explicação de sua estrutura ou na sua função de resolução de conflitos, analisar as razões funções sociais que fazem necessária uma determinada norma jurídica não empobrece o Direito, pelo contrário, tal estudo é necessário para se compreender o real significado jurídico. Como justificou Maria Helena Diniz:

Deveras, ante a complexidade do Direito, o jurista não deve apenas ater-se às normas, mas também fazer referência a fatos e valores jurídicos, assim sendo a lógica jurídica decisional ou dialética jurídica procura verificar quis são as condições de validade dos raciocínios do jurista. [40]

Esse formalismo exagerado, que recusa o conhecimento dialético e sociológico para explicar o Direito, em que a estrutura social encontra-se separada da ciência jurídica, implica na observação de que para Montoro:

(...) as disposições racistas do regime hitlerista, ou as normas de Calígula mandando render homenagens de senador a seu cavalo Incitatus, poderão ser tão jurídicas e válidas como as disposições do Código Civil ou as modernas declarações constitucionais dos direitos da pessoa. [41]

Kelsen procura, em sua teoria, não atender a particularismos sociais, mas refletir sobre estruturas gerais que fazem parte da estrutura jurídica. Entretanto, o próprio Kelsen[42] após reflexão, percebe que concepções tradicionais do Direito, como a dicotomia Direito Público e Direito Privado, por vezes não correspondem mais a realidade, esse caráter mutante, fugidio, segundo Adeodato[43], reflete a mudança do objeto analisado na história.

Nesse sentido, é muito complicado definir o Direito, bem como tudo que lhe é relativo, abstraindo de um contexto histórico-social, tal tentativa chega a ser perigosa, pois provavelmente esquecerá a complexidade e riqueza frente à formalidade com que se analisará a norma. O preço da autonomia do sistema separado de outros objetos como a economia, sociologia e etc. será sua transformação em instrumento, o trabalho jurídico será reduzido a mera investigação dos limites da norma, como propõe Kelsen.

Essa investigação, que será o novo trabalho do jurista, tentará responder o que é permitido ou proibido de ser feito ante ao conjunto normativo, nesse sentido são excluídas as reflexões sociais, econômicas, históricas, que não vem expressas no ordenamento jurídico. Essa limitação pretende que o assunto jurídico resuma-se aquele expresso nos textos legais, subordinando passivamente o Direito à condição de uma “ciência acrítica”.


7.      Uma Crítica ao Pensamento Kelseniano

A intenção de Kelsen em sua teoria é afirmar que o Direito comporta-se como outras ciências, para chegar a esse resultado o autor promove a purificação do Direito através de alguns processos como, a descontaminação do Direito frente a outras ciências e a juízos de valor. Como enuncia Montoro[44], a ausência de valores para as ciências naturais às caracterizam com objetividade e neutralidade, objetivos que são também de Kelsen em sua tentativa.

Tal pretensão kelseniana baseia-se na crença de que é tão possível fazer uma ciência do Direito avalorativa e objetiva como qualquer ciência da natureza, entretanto, no plano prático, não se mostra tão simples a separação da ciência desses juízos de valor, visto que o próprio objeto desta ciência sofre juízos de valor, bem como seus textos legais, como no Artigo 1º do Decreto nº 51.182/1961:

“Art. 1º Nos concursos de beleza, seleções de representantes femininas e semelhantes, as competidoras e participantes não poderão apresentar-se ou desfilar em trajes de banho sendo tolerado o uso de saiote.”

A norma, decretada pelo presidente em exercício naquele período, Janio Quadros, tinha como objetivo preservar a Moral e os bons costumes, portanto ela carrega consigo vários juízos de valor que definiriam o que é considerado Moral. O que de certa forma, contraria o que pensou Kelsen[45], sobre a norma jurídica ser alheia aos valores, sem qualquer referência a um valor metajurídico e sem qualquer aprovação ou desaprovação emocional.

Logo, é bastante complexo aceitar-se a objetividade em uma ciência como o Direito, a falta de um caráter universal, imutável, que possibilite uma ordenação na experiência jurídica, é impossibilitada por fatores como a própria história, que modifica as relações e a estrutura social e afeta o conhecimento jurídico. Embora o autor austríaco, faça uma ressalva quanto aos chamados juízos jurídicos de valor, que qualificariam o comportamento humano como jurídico ou antijurídico[46].

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Kelsen ainda argumenta sobre o caráter objetivo do Direito em dois aspectos, na compreensão de que a ciência do Direito produza o seu objeto, isto é, a atividade ordenadora de um conjunto de impressões que formariam a ordenação jurídica, e através da interpretação do Direito, que seria puramente a interpretação das normas jurídicas que, segundo Kelsen[47], seria o resultado da fixação de uma moldura, que representaria o Direito, da qual seria escolhida uma norma dentre as várias possíveis.

Logo, Kelsen[48] expressa que não há apenas uma única solução – através de uma norma – para cada problema, mas sim várias, contudo só uma destas será aplicada pelo tribunal. O que contraria a jurisprudência tradicional, que faz acreditar que a lei, quando aplicada ao caso, forneceria uma única solução correta, e o órgão adequado tivesse a mera função de aplicar a decisão advinda da lei.

Dessarte a atividade de interpretação da norma não deve ficar limitada a constatação dos seus significados, uma vez que a subjetividade encontra-se inserida nesse processo ela irá orientar a busca por um sentido dessa norma. Não pode haver uma busca pelo sentido da norma guiada somente pela racionalidade, como tampouco pode essa ser guiada totalmente separada da razão.

No entanto, essa discussão não afetará a função da dogmática, de compreender e aplicar, mesmo que essa interpretação seja feita com dificuldade ou não seja neutra, o texto legal. Mesmo com essa adequação da visão metodológica da dogmática a teoria kelseniana continuará sendo útil devido a promoção que faz à autonomia do sistema, frente à estrutura social.

Nesse sentido, podemos enxergar como, na prática, alcançar a objetividade científica é um tanto complicado, a dogmática não consegue, alcançar um grau de objetividade, segurança e certeza epistemológica, e a teoria geral do Direito, não mostra-se independente dos fenômenos sociais, o que a distancia também da objetividade. A teoria pura do Direito mostra-se então como uma opção de compreensão científica do Direito, que obedece aos critérios a que se propõe, isto é, ao seu formalismo e sua redução da importância social no contexto de análise das normas jurídicas.

Dessa maneira, Kelsen pode ter se enganado sobre a importância de analisarem-se os dados sociais, pois estes poderiam ajudar-nos a entender a nossa situação, fornecendo caminhos para a melhora e o progresso do Direito. O jurista ao pensar que só conheceria a ciência e a verdade através da exclusão do conhecimento social e das suas condições, deformou a realidade, estudou um cenário irreal, falso, em que a prática social não teria influência, Dallari determina para quem seria vantajosa tal perspectiva do Direito:

Essa concepção do direito é conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política. Os normativistas não precisam ser justos, embora muitos deles sejam juízes.[49]

Defensores pontuam que o formalismo jurídico proposto pela teoria kelseniana tem como uma das maiores qualidades a sua praticidade quando oculta a interferência social no Direito. No entanto, a demasiada defesa de Kelsen pelo cientificismo no Direito acaba por dar à sua teoria um sentido ideológico, aspecto que já foi discutido no início desse texto.

Dessa forma podemos nos perguntar se é possível uma alternativa, ainda racionalista, a teoria kelseniana, que traga mais vantagens ao Direito do que esta, ora, se acreditarmos que o Direito não deve ser limitado somente de forma descritiva, cremos que uma melhor teoria ao Direito seria possível. A possibilidade de explicar normas e textos legais contextualizando-as socialmente não implica necessariamente em sua valoração, no entanto implica em uma investigação mais detalhada das relações humanas com os textos legais.

Portanto, faz-se mister, através dessa visão que põe as normas não só como dogmas, mas também como um produto social e histórico, procurar uma explicação do Direito através das estruturas e práticas sociais. Embora não saibamos quais os efeitos e consequências práticas que traria tal renovação na análise do Direito, ela se faz necessária se quisermos superar criticamente o vigente modelo de ciência jurídica dogmática limitada.

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