O espiRRtado.

11/04/2015 às 07:20
Leia nesta página:

O crime de corrupção de menores é um crime formal, ou material? A influência sobrenatural pode isentar o réu de responsabilidade?

Eu estava profundamente entretido na leitura daquele processo, a pensar o que poderia fazer naquele caso, quando me deparei com uma pergunta: o que o Delegado de Guaraci estava fazendo ali?

- O Delegado de Guaraci? – pensei em voz alta, atraindo a atenção daquele homenzarrão gordo, que só então percebi não estar dentro do processo e sim parado na porta do meu gabinete, esperando que o mandasse entrar.

Doutor – disse ele, entrando na sala e me obrigando a voltar ao ambiente local – o Sr. Lembra do caso do Édipo?

Imediatamente lembrei da tragédia ocorrida na pequena cidade de Guaraci, na família de um boia-fria que resolvemos chamar de Édipo, por se dizer apaixonado por suas filhas, depois de as ter estuprado, todas as três.

O caso foi denunciado por Luiz, um rapaz que ao namorar a filha mais velha de Édipo, acabou descobrindo que ela não era mais virgem, tendo a menina de 14 anos (na época) lhe contado que o pai é que a desvirginara e que fizera o mesmo com suas irmãs menores (12 e 9).

O que se passou é que o Delegado soube que Édipo dissera que fizera aquilo por ser apaixonado por suas filhas. Tal afirmação irritou tão profundamente ao Delegado, que ele afirmou que Édipo iria apodrecer na cadeia, onde vivenciaria uma longa paixão com os demais presos, tão longa e violenta que ele nunca mais amaria ninguém! O Édipo, então, por desespero, acabou se matando naquele mesmo dia.

No inquérito que se iniciou por estupro e já se transformou em investigação sobre a existência ou não de suicídio, acabamos descobrindo que o tal Édipo era casado em segundas núpcias com uma tal de Valquíria e que essa madrasta das vítimas, mesmo sabendo do que ocorria, nada fazia para impedir os estupros. Essa mulher, na mesma ocasião, foi acusada de furto e, por isso tudo, sumiu de Guaraci.

Doutor – continuou o Delegado, interrompendo minhas lembranças – o tal Luiz, aquele namorado da filha mais velha do Édipo, veio até a delegacia denunciar sua namorada. Ele disse que a menina colocou vidro moído na comida dele. Trouxe até o prato com o vidro. Eu mesmo verifiquei.

Ao inquirir a menina descobri que ela pegou um lenço, com o qual amassou uma lâmpada elétrica, moendo-a com cuidado, antes de pôr o resíduo no prato do namorado. Ela disse que fez isso por que o tal Luiz, depois que o pai dela morreu e a madrasta sumiu – disse ele, lançando-me um olhar inquiridor, que me fez assentir para lhe dar a certeza de que me lembrava de tudo, ele continuou: – por que o tal Luiz acabou tomando o lugar do Édipo, isso no “uso” da filha mais velha e das outras todas.

Emudeci. Não sabia se acreditava num mundo tão cruel com suas crianças, muito menos sabia o que falar naquela situação. Mas o próprio Delegado veio em meu socorro:

Doutor, eu levei todo mundo para a Delegacia. Mas os deixei em celas separadas. O Luiz em uma, trancado. A menina menor, na outra. Soube que a mãe verdadeira das três meninas, que se chama Elvira e estava separada do Édipo, ainda mora por aqui. Mas como ninguém sabe exatamente onde, pedi para um amigo da rádio de Presidente Prudente, que a chamasse pelo seu programa. A Rádio tem audiência em toda região do sul de São Paulo e do Norte do Paraná.

A minha esposa – arrematou ele – arrumou um quarto lá em casa para as meninas pequenas dormirem, pois acha que não podem ficar na Delegacia. Aliás doutor – concluiu ele – após a morte do Édipo essas crianças ficaram sem casa. A antiga era alugada. Elas estavam morando num barraco de dar dó, todo mundo junto numa peça só. As pessoas acham que cidade pequena não tem favela… Mas tem, doutor. Só vendo!

Eu só soube concordar com as decisões e ponderações dele.

A cadeia pública de Guaraci não possuía nenhum preso e era extremamente limpa. A única apenada que por lá passou, acabou por progredir para o regime aberto e fazia a limpeza das celas, uma vez por semana, como condição desse regime.

As meninas podiam passar o dia ali, pois só uma cela tinha tranca e as duas celas eram separadas por um corredor com grades. Pelo que o Delegado disse, só o Luiz estava trancado e isso na outra cela.

Fiz a comunicação da infração da menor (por tentativa de homicídio) e o auto de prisão do Luiz (por corrupção de menores).[1] Já os deixei no cartório. – finalizou ele, querendo aprovação.

Muito bem. Muito bem Doutor, o resto é com o poder judiciário – disse eu, já o acompanhando até a porta.

Assim que o Delegado saiu, o Escrivão já me chamou para uma audiência. Era um interrogatório de um acusado de agressão a dois turistas em Guaraci, no qual o interrogado negou se lembrar dos acontecimentos, alegando que estava “espiritado”

Você estava como? –perguntei.

“Espirrtado”, doutor – respondeu – aquilo foi coisa de “espírrto” – arrematou ele.

Espírito? – corrigi perguntando.

É doutor! Pelo menos foi o que me disseram, pois não lembro de nada! – finalizou ele.

E como o tal réu nada mais falou, aquele interrogatório acabou ali mesmo!

Ao voltar para minha casa, já tinha a certeza que aquele dia eu não esqueceria tão facilmente, abismado que estava com tantos acontecimentos estranhos na pequena e pacata Guaraci!

Na manhã seguinte, ao chegar ao fórum lá estava o Delegado de Guaraci, acompanhado de várias pessoas.

Estavam ali a avó e a mãe verdadeira das meninas, que ao ouvirem a notícia na rádio, trataram de vir até Guaraci e de lá até Jaguapitã (sede da Comarca e onde situava-se o fórum).

Estavam no fórum as três meninas, a mãe verdadeira delas, a avó, o Delegado, e um outro rapaz, que depois soube se tratar do namorado da segunda filha do Édipo. O tal Luiz ficou na viatura junto aos policiais.

A promotora logo chegou e foi atendê-los em seu gabinete.

Logo em seguida voltou e me perguntou se podíamos inquirir a todos naquele mesmo dia, pois a mãe verdadeira queria levar as meninas para morarem com ela e a avó – em Centenário do Sul – distante cerca de 20 (vinte) quilômetros de Guaraci e pouco mais que 30 (trinta) quilômetros de Jaguapitã. Argumentou que elas teriam que pegar o ônibus em três horas.

Assim, ouvimos as meninas todas, a mãe e a avó, bem como aquele outro namorado, deixando o Luiz por último.

Nas inquirições já verificamos que as suspeitas de relacionamentos sexuais entre Luiz e as meninas pequenas não eram verdadeiras e que a mais velha (agora com 16 anos) dizia que nada mais tinha com Luiz. Que depois que seu pai morreu ficaram vivendo juntos por um tempo até que brigaram. Que embora não tivessem mais nada um com o outro, o Luiz continuou morando na casa e que pôs vidro moído em sua comida para que ele fosse embora dali – tanto que fez isso na frente dele, que em vez de ir embora - foi até a delegacia denunciá-la.

Asseverou que nunca tentou matá-lo, pois se quisesse colocaria o vidro numa ação escondida e não como fez.

Ao ser inquirido, Luiz confirmou que ela moeu e despejou o vidro na sua frente, para que ele visse isso e não mais comesse a comida que ela havia preparado. Confessou que mentira, porque queria castigá-la por enxotá-lo da casa.

Todas as pessoas ouvidas relembraram que o Édipo, quando soube, pelo Luiz, o que o delegado havia prometido fazer com ele, acabou se trancando no paiol. Que lá ficou quase o dia inteiro, embora o chamassem para sair de lá. Mas que, de repente, ele foi até a cozinha, pegou um copo, retornou até o paiol e depois de o encher com veneno inseticida, dirigiu-se ao meio do terreiro, lá tomando o inseticida de um só gole. Que passou um tempo e ele começou a gritar e a correr feito louco. Gritava que Deus o estava castigando porque ele merecia! Que ele merecia morrer! Que ele estava morrendo por amor, um amor que o matava por dentro, matando a desonra que ele havia praticado!

Afirmaram que essa algazarra se prolongou por algum tempo, até que Édipo caiu, se contorcendo em dores e babando muito. Que ficou assim até morrer, ali no meio do terreiro, sempre gritando que estava morrendo porque merecia!

Contaram que depois que a madrasta sumiu, as meninas ficaram por conta do Luiz, que trabalhava e sustentava a casa, mesmo depois de terminar o namoro com a filha mais velha do Édipo. Que a casa era de Luiz e que todos moravam com ele.

Assim que a audiência terminou, a mãe e a avó embarcaram no ônibus levando as meninas dali, sendo que o Luiz, que a essa altura iria responder solto ao processo sobre corrupção, ficou sentado nos bancos do Fórum, esperando que aquele ônibus passasse por ali.

Ele estava com um olhar perdido, talvez a indagar se valia a pena “morrer por amor”.

Alguns meses após tudo isso, o delegado de Guaraci novamente apareceu no fórum, agora para a audiência do réu que se dizia “espiritado”.

Primeiro foi a vítima a contar que estava na praça da cidade quando o réu veio correndo e gritando feito louco, o arranhando todo. Que ele pedia para que o matassem! Que provocava a quem estava ali para que o matassem! Que como ninguém retorquiu, o réu se foi, sumindo dali, correndo e gritando, da mesma forma que apareceu – feito louco!

As demais testemunhas também confirmaram essa história.

Por último veio o delegado, que contou que era compadre da vítima e que estava ali como informante, apenas.

Ele contou que naquele dia havia preparado um churrasco para esse seu compadre que iria chegar e que o réu, de repente, apareceu no quintal de sua casa, gritando e pedindo a todos que o matassem, isso porque merecia morrer!

Falou que ouviu dizer que ele estava “espiritado”.

Que um amigo do réu lhe contou que o réu estava com problemas amorosos e que foi acender velas num túmulo do cemitério, isso por ordem de um pai de santo ao qual encomendara um trabalho para esse problema de amor. Mas que assim que o réu acendeu as tais velas, já saiu correndo e gritando feito louco.

Concluiu que achava que havia "baixado algum espírito nele", porque afirmava que queria morrer e que merecia morrer por amor!

O Defensor, então, após cochichar com o réu, perguntou se o Delegado conhecia bem o cemitério de Guaraci e se ele sabia de quem seria o túmulo da terceira fila da rua central do cemitério, local onde o réu havia acendido as velas.

O delegado olhou-me com espanto e respondeu a gaguejar:

-É o túmulo do Édipo, doutor…

A audiência se encerou ali.

O Luiz, por falta de provas, foi absolvido!

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A crime de corrupção de menores sempre ensejou acirradas discussões sobre ser um delito formal ou material. A primeira teoria prega que o crime se consuma com a simples conduta do agente, enquanto a segunda entende que é necessária uma consequência prática na vida do menor para se caracterizar esse delito.

Sempre fui partidário da segunda teoria, pois para mim o verbo corromper significa decompor ou deteriorar; é sinônimo de putrefação, apodrecimento, necessitando, pois, um prolongamento da ação no tempo. No caso o núcleo do tipo exigia que se verificasse esse apodrecimento moral da personalidade do menor, um desvirtuamento de hábitos, uma devassidão de costumes, mesmo que mínima. Assim a conduta do sujeito ativo devia acarretar uma modificação, para pior, na moral do menor, não sendo suficiente a simples conduta em si, necessitando-se pois de alguma prova dessa piora.

E foi nesse entendimento que o Luiz foi absolvido, sendo que, no caso, a promotoria não recorreu.  Hoje a conduta do Luiz não seria incriminada[1].

A tese de que houve a influência do sobrenatural sobre a conduta do espiritado acabou por não prevalecer. A defesa alegou ausência de dolo na conduta agressiva, o que descaracterizaria o crime. Fez uma espécie de analogia com a embriaguez culposa e involuntária para aplicação da teoria da "actio libera in causa".

Mas a decisão não considerou isso, até porque para se ir tão longe seria necessária uma prova de que a ação do réu não tenha sido gerada por sua própria vontade e de que ele estava em estado de inimputabilidade. E no processo não se efetuou nenhum exame médico que nos indicasse problemas mentais ou psiquiátricos, mesmo que momentâneos e/ou por influência externa.

Interessante colocar aqui o contra argumento da promotoria, que ponderou que uma influência sobrenatural não poderia isentar a responsabilidade, até porque foi o réu que se colocou naquela situação, provocando-a intencionalmente, com sua ação de ir ao cemitério acender velas em túmulos desconhecidos. Que ele, de forma preordenada, se espiritou...

O espiritado foi condenado, tendo sua pena sido substituída por prestação de serviços à comunidade, sendo que a Prefeitura de Guaraci o colocou para ajudar na limpeza do cemitério!

 


[1]  O crime de corrupção de menores foi modificado pela Lei 12.015/2009, que considerou, tão somente, como criminoso o induzimento à satisfação da lascívia alheia. A Corte Superior de Justiça firmou orientação no sentido de que "a corrupção sexual de maiores de 14 (quatorze) anos e menores de 18 (dezoito) anos deixou de ser tipificada no Estatuto Repressivo, operando-se em relação à conduta verdadeira abolitio criminis.” (STJ, HC 273582 / GO, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 17/09/2013).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Francisco L Macedo Jr.

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre das Relações Sociais da Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Direito na Universidade Nova de Lisboa - Portugal. Alguém que através de casos ocorridos na vida de magistrado tenta escrever sobre o direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos