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Retrocesso social inaceitável

14/04/2015 às 14:28
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A terceirização foi inserida no ordenamento nacional, primeiramente, para o trabalho temporário, por disposição da Lei n. 6.019/74, sendo ela herança perversa do período militar.

Aprovado em 08/04, na Câmara dos Deputados, com amplíssima maioria de 324 votos a favor e somente 137 contra, o Projeto de Lei n. 4.330/04, do ex deputado Sandro Mabel (PMDB/GO), impõe-se, desde já, como alternativa, a pior das formas de contratação de trabalho no país, permitindo a terceirização em todas as áreas de atividade da empresa, inclusive nas atividades fim.

Numa operação a fórceps liderada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), o PL 4.330/04, que dormitava na Casa há mais de década, ganhou condição de urgência, sendo apoiado abertamente pelas bancadas parlamentares de quase todos os partidos do parlamento, a exceção de PT, PCdoB e PSOL, que orientaram seus deputados pelo voto contrário à proposição. Partidos que diziam defender bandeiras trabalhistas, como PDT, PTB, PSB e Solidariedade, optaram por orientar as bancadas pelo voto favorável à proposta. Junto a estes, também se somou o PMDB, que, cada vez mais próximo ao PSDB e DEM, faz clara oposição ao governo da presidenta Dilma Rousseff na Câmara, apesar de, no Executivo, conduzir importantes ministérios e ocupar estratégicos espaços diretivos, um dos quais a própria articulação política do governo, através do vice-presidente Michel Temer.

Como se sabe, atualmente, a terceirização, ou seja, a prestação de serviços contratada através de terceiro intermediário encontra fundamento na Súmula 331, do TST, a qual facilita citada possibilidade, apenas nos casos do trabalho temporário da Lei n. 6.019/74, bem como em áreas de vigilância (Lei 7.102/83), conservação e limpeza, além de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador de serviços, desde que não existindo pessoalidade e subordinação direta na relação do tomador e a mão-de-obra avocada.

Ainda assim, a súmula prevê a responsabilidade subsidiária do tomador, seja este integrante ou não da administração pública direta ou indireta, na fiscalização e no adimplemento das verbas trabalhistas não quitadas pela empresa interposta (prestadora) com os trabalhadores terceirizados.

O que pretende a Corte trabalhista com a Súmula 331 é evitar a aplicação da terceirização em todas as atividades da empresa, vinculando-lhe à responsabilidade direta sobre os encargos laborais oriundos das prestações de serviço fundamentais ao seu funcionamento, garantindo aos respectivos trabalhadores a segurança da aproximação imediata com o patrão, para fins de percepção das contraprestações devidas, especialmente salários, dentre outras obrigações laborais.

O problema todo da terceirização reside na constatação histórica de que os serviços contratados mediante esta forma de regulação adquirem nuances de maior precariedade que a contratação de trabalho convencional regida pela CLT. Para começar, na terceirização, contratam-se serviços, enquanto no modelo convencional, contratam-se pessoas. Desde aí, inúmeras diferenças há, em tratamento jurídico, entre um instituto e outro.

A proteção sindical dos empregados do quadro próprio do tomador de serviços é uma proteção mais sólida e eficiente, pelo fato deles formarem uma comunidade homogênea. Essa situação difere dentre os trabalhadores vinculados ao regime de terceirização, não raramente submetidos a uma escala rotativa em diferentes locais de trabalho, que lhes torna invisíveis à proteção dos respectivos sindicatos, lhes dificultando a mobilização e a participação nas políticas sindicais.

Por consequência, os salários e as condições gerais laborais dos trabalhadores terceirizados são, normalmente, piores que os dos empregados contratados segundo o modelo padrão, criando-se um profundo mal-estar no âmbito interno organizacional, na medida em que parte do quadro laboral é mais desguarnecida em segurança que outra parte, mesmo o conjunto despendendo força de trabalho em único ambiente empresarial.

Ainda em função dessa maior precarização conjuntural, estando mais vulneráveis a riscos, os trabalhadores terceirizados se submetem a jornadas laborais mais rigorosas e extensas, e sofrem mais acidentes de trabalho, situação que automaticamente implica em elevação de gastos estatais com assistência médica e proteção securitária.

A possibilidade de fraude no sistema de contratação via terceirização é infinitamente maior que no sistema padrão, uma vez que, não raramente, a terceirização é consumada através de contratação de pessoas jurídicas irregulares (via pejotização), ou, mesmo, de falsas cooperativas de trabalho, organizadas, com o fim único e exclusivo de surrupiar direitos laborais e custeios previdenciário e fiscal.

Agora some-se à toda precarização narrada no âmbito do direito privado o risco que o precedente do PL 4.330/04 impõe à administração pública, se para ali estendido, onde, via de regra, atividades-meio já são terceirizadas. Pouco faltará para ser o fim dos concursos públicos, da carreira estatutária.

É inequívoco, portanto, que a proposta legislativa em lume, possui intenção deliberada de ferir a dignidade do trabalhador, vilipendiando a Constituição de 1988 em inúmeros artigos, dentre os quais: o artigo 1º, inciso II, que destaca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República; artigo 3º, incisos I, II e IV, que, consequentemente, conclamam a construção de uma sociedade justa, a erradicação das desigualdades sociais e o combate a todas as formas de discriminação; artigo 7º, inciso XXII, que propaga a redução dos riscos inerentes ao trabalho; artigo 8º, caput, que consagra e promove a associação sindical; além do artigo 170, que reza que a ordem econômica nacional deve fundar-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, para o fim de assegurar a existência digna a todos. Além disso, ignora todas as disposições da legislação infraconstitucional que se dedicam ao combate da precarização do trabalho, bem como as que enfrentam as condutas anti-sindicais.

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Finalmente, o PL 4.330/04 também faz ouvidos de mercador para a existência do princípio do não retrocesso social, segundo o qual impõe-se como impossível, alteração do ordenamento jurídico a pior, sobretudo no que diz respeito aos direitos sociais, devendo os trabalhadores endurecer a defesa contrária da medida recém aprovada na Câmara, cobrando, do Senado, seu rechaço, e, havendo necessidade, da presidenta Dilma Rousseff, o veto, situação em que deverá desdobrar-se em esforços para demover o Congresso da fatídica invenção legislativa.

A alteração laboral do PL 4.330/04 é o mais grave atentado ao direito dos trabalhadores havido, no Brasil, desde 1967, quando, instituído o regime de FGTS, passou-se a, paulatinamente, combalir a estabilidade decenal prevista pela CLT. Tal modificação marcou época ao sedimentar a institucionalização do desequilíbrio entre as forças que compõem a relação de trabalho, patrões e empregados, cuja natureza já era, por si só, desnivelada. Hoje, o PL 4.330/04 ameaça aprofundar este desequilíbrio, precarizando, ainda mais, as condições de trabalho e o sistema de fiscalização e proteção laboral, sobretudo o sindical.

É absolutamente inaceitável que uma vulneração trabalhista dessa natureza aconteça em pleno regime democrático. A propósito, não custa lembrar que a terceirização, segundo já mencionado, foi inserida no ordenamento nacional, primeiramente, para o trabalho temporário, por disposição da Lei n. 6.019/74, sendo, ela mesma, herança perversa do período militar.

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Sobre o autor
Marcelo Uchôa

Advogado. Professor Doutor de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Ex Secretário Especial de Políticas sobre Drogas do Ceará (Adjunto e Titular interino). Ex Coordenador Especial de Direitos Humanos do Governo do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

UCHÔA, Marcelo. Retrocesso social inaceitável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4304, 14 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38062. Acesso em: 21 nov. 2024.

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