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Garantia constitucional da comunicação do flagrante.

Anotações ao art. 5º, LXII, da Constituição Federal

01/03/2003 às 00:00
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É voz praticamente uníssona na Doutrina e Jurisprudência, não obstante o claro comando constitucional inserto no artigo 93, IX da Magna Carta Republicana, ser a manifestação jurisdicional no momento em que se recebe a comunicação de um cidadão que se encontra preso em flagrante, ato desobrigado de qualquer fundamentação, ao argumento mor de tratar-se de mero despacho homologatório e, também, porque o parágrafo contido no artigo 310 do Código de Processo Penal não dispôs exigindo despacho fundamentado.

Num Estado Democrático de Direito, impossível continuamos silentes a eufemismos e tergiversações tais como tratar aquilo que é uma verdadeira decisão como um simples despacho homologatório, sem maiores necessidades de fundamentação, sofismando-se assim, com a liberdade do ser humano que, por razões multifárias, viu-se envolvido nas malhas do Processo Penal.

O respeito à Magna Carta Republicana, onde travejados encontram-se seus Princípios Fundamentais: - art. 1º, III- a dignidade humana, com seus Objetivos Fundamentais- art. 3º I- construir uma sociedade livre, justa e solidária e ainda com as garantias nesta insertos, como a fundamentação de toda e qualquer decisão judicial- art. 93, IX, impende que deixemos de ler o texto constitucional com os olhos cansados do autoritarismo ainda não de todo insepulto no imaginário de muitos operadores do direito.

Assim sendo, o Estado-Juiz, após a prisão em flagrante e no primeiro momento em que é convocado a dizer sobre a quebra da regra que é a liberdade, sendo a prisão uma exceção, deverá fazê-lo com desvelado esmero, sempre com a preocupação de que um incomensurável bem está sendo atingido.

A discussão proposta é no sentido de que não se olvide mais a imprescindível fundamentação do ato claramente decisório contido na apreciação jurisdicional da prisão em flagrante, deixando-se de ofender a garantia constitucional da motivação, para caminhar-se no enquadramento valorativo desta, num sistema articulado de garantias fundamentais, legitimando política e juridicamente tal decisão.

O Processo Penal é garantia, é anteparo fornecido ao acusado contra os eventuais abusos do Estado. Juiz Criminal é um custus libertatis e não um guardião da sociedade, à semelhança dos antigos inspetores de quarteirão, como alguns ainda estão, equivocadamente, a se postar.

Neste diapasão, surge o Processo Penal como um instrumento de liberdade, arredando as pretensões fascistas da prisão a qualquer custo e a todo momento, para reforço do entendimento de que esta é a última opção do processo, jamais a primeira, devendo, pois, o julgador ter redobrado atenção ao momento primeiro em que irá atuar como guardião da liberdade.

A transmutação da ótica comodista e ofensiva aos princípios, objetivos e garantias constitucionais, atualmente constante na Doutrina e Jurisprudência e que está a tutelar a conduta sofista de boa parte dos juízes frente à manifestação primeira sobre a legalidade da prisão em flagrante que lhe é comunicada, para uma visão garantista do Processo Penal, onde filosófica e pragmaticamente falando, não se vá de roldão a dignidade, a construção de uma sociedade justa e a garantia da motivação da prestação jurisdicional é o que se busca.


MANUTENÇÃO MOTIVADA DA PRISÃO EM FLAGRANTE APÓS O CONTROLE JURISDICIONAL DE SUA LEGALIDADE.

A continuidade da prisão em flagrante é medida de cunho jurisdicional, e não mais medida de urgência administrativa. Desde que comunicada a prisão para o Juiz, é este quem vai decidir sobre esta. Se o juiz mantém a prisão, ele o faz por decisão e ato seus, devendo ser motivada tal manutenção, (art. 93, IX da CF) na medida em que se reveste de ímpar importância tal ato decisório, que trata diretamente a respeito da legalidade desta prisão e do status libertatis do cidadão.

Se a prisão for ilegal, cabe ao juiz, em despacho fundamentado, relaxá-la, podendo em seguida e se for o caso, dentro dos requisitos que a permitem, decretar a prisão preventiva.

No que tange à confirmação da prisão, tem entendido o S.T.J., que por se tratar de decisão meramente homologatória- entendimento contrário ao trabalho aqui apresentado, não necessita de fundamentação, assim formalizado:

"A praxe judiciária de homologação, pelo juiz, do auto de prisão em flagrante, consubstancia mero exame das formalidades legais e tem por conseqüência, prevenir a jurisdição, não se exigindo seja tal despacho fundamentado, salvo se for para ordenar o seu relaxamento ".( STJ, 6ª Turma, à unân., HC nº 5.650/RS, rel. Min. Vicente Leal, DJU, 01.09.1997, p. 40.885 ).

A prática tem demonstrado que o juiz, ao contrário do que determina a Lei maior, exara um simples despacho, sem maiores formalidades legais, manutenindo o indiciado em sua prisão em flagrante delito tal como: "Aguarde-se o inquérito policial respectivo ", ou "mantenho a prisão, por legal e de acordo com as hipóteses autorizadoras ". Como dito pelo Procurador da República EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, " adota-se postura passiva, como se ao aprisionado coubesse comprovar a desnecessidade da manutenção da custódia. Em uma palavra, extrai-se do flagrante conseqüência ou de antecipação de culpabilidade ou, o que é igualmente inaceitável, de presunção de necessidade da prisão "1.

Ora, como medida pré-cautelar que é, a prisão em flagrante é sempre precária, dependendo, a sua continuidade, de urgencial valoração judicial.

Nesse diapasão, o entendimento do brilhante Professor Doutor AURY LOPES JR., " a prisão em flagrante é – não só no Brasil, mas também nos mais evoluídos sistemas processuais penais – uma medida pré-cautelar, cuja precariedade impõe uma curta duração e o imediato juízo de valor judicial. Ela não pode subsistir após o prazo de 24 h, lapso máximo de tempo para que o auto de prisão em flagrante seja formalizado e submetido à apreciação judicial "2.

Lembre-se e nunca se olvide: Vivemos num Estado Democrático de Direito, o que pressupõe que prejulgamos, à todos os cidadãos, sua presumida inocência.

A privação da liberdade não pode e não deve ser conseqüência de um automatismo, posto que o exercício do poder cautelar deverá sempre ser dependente da verificação concreta do periculum libertatis, da necessariedade da medida, da sua fatal necessidade. E, por fim, tal decisão há de ser fundamentada.

Conforme o eminente ALBERTO SILVA FRANCO, " a motivação não é um ato de favor do juiz: é um dever inafastável de quem tem, em suas mãos, o poder repressivo estatal. É a explicitação, em face da lei e dos fatos, dos motivos que dão suporte à decisão adotada. É, além disso, o único meio de que o próprio cidadão dispõe para avaliar a pertinência ou não, a justeza ou não, da providência cautelar" 3.

Entendimento importante para embasamento do aqui tratado é apresentado pelos Promotores paulistas OLIVEIRA ROCHA e GARCIA BAZ:

" A mantença da prisão em flagrante deve ser sempre motivada, sob pena de ferir um direito subjetivo processual do flagrado. Como a liberdade provisória pode e deve ser concedida de ofício, inclusive nos casos em que cabível, em cada caso o juiz deve decidir a respeito, independentemente de requerimento específico do flagrado ou mesmo do Órgão do Ministério Público (que sempre deverá ser ouvido previamente, contudo), à vista da cópia da autuação ou dos autos principais de inquérito policial. O despacho que mantém a prisão em flagrante está denegando liberdade provisória, pelo que é decisão da autoridade judiciária sobre um direito do flagrado, sendo inarredável a motivação cabal do decisório. É que fundamentadas, haverão de ser todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade (CF, art. 93, IX).Não comungamos assim, com a posição da jurisprudência predominante, com precedentes do Colendo STF, inclusive, que sustenta não estar o magistrado obrigado a motivar a mantença da prisão em flagrante quando recebe a cópia da autuação ou o próprio inquérito policial, salvo se for requerida liberdade provisória pelo interessado " 4.

MONTEIRO ROCHA também expressa o seu descontentamento no que tange à falta de motivação:

" Penso, devesse o juiz, ao confirmar a prisão em flagrante, fundamentar o aprisionamento do indiciado ou réu. É que, sem embargo do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que a entende desnecessária, por se tratar de despacho meramente homologatório de prisão presumidamente legal, estamos diante de um direito de liberdade. Um cidadão foi preso. Essa prisão, entendo, deva ser confirmada ou negada pelo juiz, fundamentadamente. Aliás, o artigo 93, inciso IX da Constituição Federal recomenda que todas as decisões dos órgãos do Poder Judiciário serão fundamentadas. Só por esta razão parece-nos que a confirmação do flagrante devesse ser mesmo fundamentada, não apenas seu relaxamento, como entende a Superior Corte de Justiça. É natural que não estamos a sugerir um longo fundamento, mas um fundamento que demonstrasse a legalidade da medida, e sua necessidade de ser mantida. E mais, acredito que essa posição devesse ser tomada quando da comunicação da prisão, e não quando do recebimento do inquérito respectivo " 5.

Mais recentemente, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO deu importante passo teórico no enfrentamento deste tema:

" Trata-se, portanto, de uma decisão complexa, em que diversas questões de fato e de direito devem ser analisadas para que se possa chegar a uma conclusão sobre a manutenção de uma prisão que só excepcionalmente foi realizada sem a prévia ordem judicial. A inversão na ordem natural das coisas, admissível em face das circunstâncias mencionadas, não implica, é óbvio, a dispensa de uma cognição que, na verdade, deve ser tão completa e aprofundada quanto aquela realizada quando o juiz decide ordenar uma prisão.

Daí a indispensável exigência de que essa decisão seja integralmente justificada: quanto à legalidade, devem ser explicitadas as razões pelas quais se entende válido o flagrante; quanto à necessidade, nos mesmos moldes em que tal dever é imposto em relação ao provimento em que se decreta uma prisão preventiva " 6.

Assim, perante poucos seguidores, mas amplamente embasados, diante de todo o exposto, entendemos que o cidadão só estará a salvo de tanto desmemoriamento, quando não mais se olvidar a Magna Carta e a seguirmos em toda a sua plenitude.

O não atendimento à motivação gera conseqüências processuais diversas, notadamente nos casos em que se envolve a hedionda e paleolítica Lei dos Crimes Hediondos. A clareza do art. 93, IX da CF é ímpar, e conclui-se dela que absolutamente todas as decisões judiciais não fundamentadas são nulas ex-rádice.

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O caso é de tamanha gravidade que fulmina o ato ab inicio, por ser absoluta, pois o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente existente, não pode dar lugar a nulidade relativa, já que as garantias processuais constitucionais visam o interesse público.

O reconhecimento desta nulidade não depende de provocação da parte interessada, ficando o prejuízo patente, quando desrespeita todos os objetivos políticos e processuais que determinam a exigência constitucional.

Esta nossa posição encontra respaldo, inclusive, nas mais que abalizadas opiniões dos professores ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNADES; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, quando estes afirmam:

" Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público ( supra, n. 2 ), o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada.

Resulta daí que o ato processual, praticado em infringência à norma ou ao princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas. " 7.

Devemos buscar o amparo da dignidade do ser humano, custe o que custar, independentemente de valores religiosos ou filosóficos, açambarcando a segurança de todos, sem prejuízo da segurança individual.

Enfim, reconhecer a liberdade do homem, significa reconhecer seus direitos por meio do direito positivo, onde tem o Estado compromisso no mínimo moral

de zelar por eles.

Encerramos com os dizeres de ADAUTO SUANNES, " o processo penal é, antes e acima de tudo, um preito de homenagem à dignidade humana, pois o Estado, dotado de poder, não necessitaria das formalidades que o caracterizam para prender, acusar, condenar e executar a pena que deseja impor a alguém " 8.


NOTAS:

1 – OLIVEIRA, E. P. Regimes constitucionais da Liberdade Provisória. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 130 p.

2 – LOPES JR., A. Crimes Hediondos e a Prisão em Flagrante como medida pré-cautelar.São Paulo: NOTADEZ, 2001. 75p., em (Revista de Estudos Criminais, 3)

3 - FRANCO, A. S. Crimes Hediondos. 6.ed. São Paulo: RT, 2000. 418 p.

4 - ROCHA, L. O.; BAZ, M. A. G. Fiança criminal e liberdade provisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 78-79 p.

5 - MONTEIRO ROCHA, F. A. R. Curso de direito processual penal. São Paulo: FORENSE, 1999. 449 p.

6 - FILHO, A. M. G. A motivação das decisões penal. São Paulo: RT, 2001. 227 p.

7 - GRINOVER, A. P.; FERNANDES, A. S.; FILHO, A. M. G. As Nulidades no Processo Penal. 6.ed. São Paulo: RT, 1997. 23 p.

8 - SUANNES, A. Violência institucional- Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: MÉTODO, 2001. 55 p.

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Sobre o autor
Renato de Oliveira Furtado

Advogado Criminalista, Professor de Direito Processual Penal da Universidade Estadual de Minas Gerais - Campus Frutal, Membro do IBCCRIM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, Renato Oliveira. Garantia constitucional da comunicação do flagrante.: Anotações ao art. 5º, LXII, da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3858. Acesso em: 23 abr. 2024.

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