O Direito Penal no Estado Democrático de Direito

13/05/2015 às 02:35

Resumo:


  • O artigo discute os critérios para a criação de tipos penais e a adequação do fato ao tipo penal, enfatizando a importância da dignidade da pessoa humana no contexto do Estado Democrático de Direito.

  • É feita uma análise histórica sobre a evolução das repúblicas democráticas liberais e a importância da divisão e limitação do poder estatal, além de abordar a diferença entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito.

  • Destaca-se a necessidade de o Direito Penal ser um instrumento de justiça e proteção, não de opressão, respeitando princípios como a insignificância, alteridade, confiança, adequação social, legalidade, intervenção mínima, proporcionalidade e humanidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No Estado Democrático de Direito o Direito Penal não é instrumento de repressão ou opressão. Exerce, pois, função regradora dos contatos sociais, mediante a aplicação de penas que visem unicamente coibir as ações nocivas e estimular as condutas lícitas.

Introdução

O presente artigo não pretendeu trazer à baila tudo aquilo que necessitaria ser considerado e discorrido para definir tão grandioso assunto. Antes, foi de interesse deste que ora o elaborou apresentar para o leitor os critérios que necessariamente devem ser observados pelo legislador e pelo aplicador do direito quando da criação dos tipos ou da adequação do fato concreto ao tipo descrito na norma penal, tendo em vista que a Carta Magna declara em seu artigo 1º o nosso perfil político-constitucional como sendo o do Estado Democrático de Direito, do qual decorre o princípio maior, a dignidade da pessoa humana, valor supremo e fundamento de nossa República, do qual infere-se que o Direito Penal não deverá ser instrumento de opressão, mas uma ferramenta necessária à correta e adequada aplicação da justiça e proteção dos bens jurídicos.

Nesse sentido, após um breve relato sobre os acontecimentos dos séculos XVII e XVIII que derrubaram o Antigo Regime e o odioso absolutismo, marcando o início de nossa era com o advento das repúblicas democráticas liberais, abordei a diferença entre os conceitos de Estado de Direito e Estado Democrático de Direito e discorri acerca dos subprincípios que decorrem da dignidade da pessoa humana.

I - A queda do Antigo Regime e a divisão e limitação do poder estatal

No caminho percorrido pela civilização democrática ocidental em busca das sonhadas liberdade, igualdade e fraternidade plenas passou-se pela necessidade primeira de se limitar o poder estatal. Romper com as estruturas feudais do Antigo Regime foi a tarefa inicial dos movimentos revolucionários burgueses dos séculos XVII e XVIII na Inglaterra, nas Treze Colônias da América (futuros Estados Unidos da América) e na explosiva França setecentista.

Sobre o iluminismo, corrente de pensamento que norteou os principais movimentos revolucionários da mencionada época, assim se referiu o historiador britânico Eric Hobsbawn:

“Um individualismo secular, racionalista e progressista dominava o pensamento ‘esclarecido’. Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu principal objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo da superstição das igrejas (distintas da religião ‘racional’ ou ‘natural’), da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida a fraternidade de todos os homens eram seus slogans. No devido tempo se tornaram os slogans da Revolução Francesa”

HOBSBAWN (2009), páginas 41/42.

A queda do absolutismo, período em que os monarcas europeus confundiam-se com o próprio Estado, representou o primeiro passo em direção à construção de uma civilização democrática e liberal. Seguindo a ideia de Montesquieu, o poder estatal foi separado em três esferas, a saber, executivo, legislativo e judiciário. A este modelo aderiu a maioria das repúblicas que foram surgindo após a queda da Bastilha e as independências das colônias americanas.

Os princípios que nortearam ideologicamente a Revolução Francesa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, anunciaram o advento dos direitos fundamentais, os quais a história recente se encarregou de dividir em gerações, ou dimensões. Em um primeiro momento, logo após a passagem do Estado autoritário para o Estado de Direito, as constituições que passaram a ser escritas consagraram as liberdades individuais dos indivíduos, acentuando as liberdades públicas e os direitos políticos.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão afastaram o Estado do cidadão, pois acreditava-se que o mérito individual proporcionaria aos indivíduos o necessário recurso para o custeio das necessidades vitais mais básicas. Mas o distanciamento do Estado, na verdade, resultou na opressão da maioria pela minoria, de sorte que o Estado precisou intervir para promover a igualdade entre os homens. LENZA (2014) explica que a concepção liberal (de valorização do indivíduo e afastamento do Estado) gerou concentração de renda e exclusão social, fazendo com que o Estado passasse a ser chamado para evitar abusos e limitar o poder econômico. Dessa forma, os direitos fundamentais de segunda geração inspiraram constituições como a do México, de 1917, a de Weimar, de 1919 e mesmo a brasileira de 1934, passando a ser tarefa do Estado proporcionar aos cidadãos acesso a serviços públicos de saúde e educação, por exemplo.

As profundas alterações da sociedade internacional consagraram a necessidade do advento dos direitos fundamentais de terceira dimensão, em decorrência dos novos e “modernos” problemas e preocupações que norteiam a humanidade. A preservação do meio ambiente e a busca pela paz são necessidades de interesse de toda a comunidade global, sendo, portanto, o princípio da fraternidade acentuado nas constituições modernas. Fala-se em direitos fundamentais de quarta e quinta dimensões, alguns doutrinadores colocando que a busca da paz situa-se como objetivo desta última.

II - O Estado de Direito

O Estado de Direito significou um expressivo avanço, pois representou o afastamento do autoritarismo estatal, a limitação do poder, a estruturação do Estado e a catalogação das leis, que passaram a ser passíveis de ser observadas por todos, cidadãos e governantes. Em outras palavras, o próprio chefe de Estado passou a se submeter às normas legais, não cabendo a ele criá-las, tampouco julgar aqueles que a elas infringem. As leis escritas estabeleceram de forma clara os comportamentos que se espera que todos devam seguir, e aqueles atos que todos devem se abster de cometer, definindo-os como crimes.

Todavia, embora o Estado de Direito representasse importante progresso no combate ao absolutismo monárquico, ainda carecia de conteúdo social, na medida em que apenas assegurava uma igualdade entre os homens meramente formal, ou seja, afirmava que todos são iguais perante a lei simplesmente porque assim está escrito, e nada mais.

Aduz o professor CAPEZ (2014) que a concepção jurídico-positivista do século XIX, por exemplo, considerava direito apenas aquilo que se encontrava formalmente disposto no ordenamento legal, não havendo necessidade de se fazer qualquer juízo de valor sobre seu conteúdo. Para essa corrente não importava que na prática a sociedade era injusta e desigual, porquanto a busca da igualdade se contentava com a generalidade e impessoalidade das normas, que garantia a todos um tratamento igualitário, ainda que apenas teórico. Fernando Capez assim caracteriza o Estado Formal de Direito:

“(...) a) a submissão de todos ao império da lei; b) a divisão formal do exercício das funções derivadas do poder, entre os órgãos executivos, legislativos e judiciários, como forma de evitar a concentração da força e combater o arbítrio, c) o estabelecimento formal de garantias individuais; d) o povo como origem formal de todo e qualquer poder; e) a igualdade de todos perante a lei, na medida em que estão submetidos às mesas regras gerais, abstratas e impessoais; f) a igualdade meramente formal, sem atuação afetiva e interventiva do poder público, no sentido de impedir distorções sociais de ordem material”

CAPEZ (2014), página 21

III - O Estado Democrático de Direito

A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 1º, nosso perfil político-constitucional como sendo um Estado Democrático de Direito, a saber:

“Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

O Estado Democrático de Direito visa garantir o respeito às liberdades civis, aos direitos humanos e às garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica. Não há a submissão de todos ao império da lei, mas um Estado em que as leis possuem adequação social. Dele, parte um dos principais princípios da nossa Constituição, que é o da dignidade da pessoa humana. De acordo com este, não há a possibilidade de se normatizar atos que não representam nenhum valor de interesse social. E mesmo o operador do Direito deve atentar-se ao princípio da dignidade da pessoa humana e todos os demais subprincípios regradores que dele partem, quando da aplicação da lei.

O Estado Democrático de Direito caracteriza-se pela igualdade entre os homens, visa promover e garantir uma sociedade livre e justa, mediante a aplicação de normas que visem o pleno desenvolvimento de toda a sociedade. Caracteriza-se, ainda, pela prioridade social, proporcionado os necessários meios e as oportunidades para o desenvolvimento de todos os indivíduos não apenas por conta da mera formalidade das leis, mas sim pela adequação destas às necessidades individuais.

CAPEZ (2014) aduz que o Estado Democrático de Direito se verifica não apenas pela proclamação formal da igualdade entre os homens, mas:

“(...) pela imposição de metas e deveres quanto à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, pela garantia do desenvolvimento nacional; pela erradicação da pobreza e da marginalização; pela redução das desigualdades sociais e regionais; pela promoção do bem comum; pelo combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, I a IV); pelo pluralismo político e liberdade de expressão das ideias; pelo resgate da cidadania, pela afirmação do povo como fonte única do poder e pelo respeito inarredável da dignidade humana”

CAPEZ (2014), página 22

3.1 O Direito Penal no Estado Democrático de Direito

Posto que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, não mais se admitem critérios absolutistas na definição dos tipos penais, nem no procedimento dos operadores do direito de adequar a conduta ao fato típico. O legislador não tem o livre arbítrio para criar crimes a seu bel-prazer, para satisfazer seu ego pessoal.

Sob pena de atentar materialmente contra a Constituição, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, toda norma que se pretender criar sem a devida adequação social, mediante a aferição de que realmente necessita ser descrita em tipo penal incriminador por representar anseio popular de proteção a bem jurídico, deverá ser imediatamente descartada. Como exemplo podemos citar um caso hipotético em que se pretende tornar crime o ato de levar as crianças para passear na praça. Vejamos que se não fosse o princípio político constitucional do Estado Democrático de Direito, a criação de uma norma como esta não seria nada impossível.

CAPEZ (2014) assinala que um crime, no Estado Democrático de Direito, para assim ser considerado, deve passar por exigências de ordem formal (somente as leis podem descrevê-los e cominar-lhes penas) e material (o seu conteúdo deve ser questionado à luz dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito).

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De outra banda, o operador do Direito durante sua tarefa de amoldar o fato concreto ao tipo previsto na norma, deverá atentar ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos demais que dele partem, sobre os quais discorreremos a posteriori. A saber, subtrair um veículo para si ou para outrem é considerado crime de furto; todavia, muito embora subtrair para si ou para outrem um palito de dentes seja fato amoldado perfeitamente ao tipo previsto no artigo 155 do Código Penal, tal não tem conteúdo material de crime, ou seja, não ofende o sentimento social de justiça, razão pela qual não há necessidade de o Estado intervir para punir uma conduta que simplesmente é insignificante. Em caso de não observância ao princípio de que ora discorremos nessa situação hipotética, tal enquadramento será considerado materialmente inconstitucional.

3.2 Princípios decorrentes da dignidade da pessoa humana

À luz dos princípios decorrentes da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ser legítimo e democrático, descrevendo tipos penais de categoria aberta de modo a ser preenchidos com conteúdo em conformidade com os mencionados princípios, sobre os quais passo a discorrer.

3.2.1 Princípio da insignificância

Em que pese as normas penais descreverem as ações passíveis de lesar ou ameaçar lesar bem jurídico tutelado, pelo princípio da insignificância os tribunais têm decidido que não cabe ao Direito Penal se preocupar com os chamados “crimes de bagatela”, que são aqueles cujos atos dos agentes são típicos por enquadrar-se perfeitamente ao tipo descrito na norma, mas que, de outra banda, não representam um mínimo de lesividade, ou a lesão causada ao bem jurídico é de tão pequena monta, tão insignificante, que não chega a ofender o sentimento social de justiça. Em outras palavras, a ação praticada pelo agente, além de se enquadrar objetivamente no tipo penal previamente descrito necessariamente deverá possuir conteúdo material de crime para que o Estado possa exercer o direito de punir.

O furto de um aparelho celular de última geração dificilmente se enquadrará nesse princípio. Já o furto de um chiclete, provavelmente sim. O sujeito que furta um chiclete, embora aja de forma típica, não tem sua ação clamada por justiça pela sociedade, ante a total insignificância da lesão por ele praticada ao bem jurídico.

O professor Fernando Capez ensina que não se deve confundir delito insignificante com crimes de menor potencial ofensivo, que são aqueles que são submetidos aos Juizados Especiais Criminais. Estes não são considerados insignificantes, pois têm lesividade perceptível socialmente, e são submetidos a procedimento processual de rito sumaríssimo.

3.2.2 Princípio da alteridade

Não cabe ao Direito Penal criminalizar aquelas condutas que foram praticadas pelo agente contra si mesmo. Segundo este princípio, crime só é aquele fato típico capaz de causar lesão a bem jurídico alheio. O subjetivo do agente (seja ele considerado pecaminoso ou imoral), por si só, é incapaz de agredir bem jurídico. Por esta razão a auto-lesão não é considerada crime, nem é possível punir o suicida frustrado, que não conseguiu dar fim à própria vida.

CAPEZ (2014) cita um interessante exemplo. Usar entorpecente não é crime. O tipo penal descrito no artigo 28 da Lei 11.343 diz que é considerado crime o ato de portar entorpecente, e não o uso. Ou seja, o que causa perigo à sociedade é o fato de o sujeito portar droga, pois desse modo a substância estará em circulação, passível de ser comercializada ou entregue para terceira pessoa, alimentando, destarte, a possibilidade do tráfico. Assim sendo, portar substância entorpecente durante o tempo estritamente necessário para ser consumido é fato atípico. Quem usa droga apenas causa males a sim mesmo.

3.2.3 Princípio da confiança

Princípio pelo qual uma pessoa não pode ser penalizada por conta de lesão a bem jurídico que causou em decorrência da não observância de cautela ou da imprudência ou imperícia de outrem. Ora, na convivência em sociedade, em família, nas relações de trabalho, todos têm um papel a cumprir, devendo atentar às próprias ações, observando cuidados básicos necessários, e essa circunstância cria na coletividade uma natural confiança de uns para com os outros. Seria muito custoso para a sociedade o advento de lei que obrigasse as pessoas a vigiar o comportamento dos outros. Citemos um caso hipotético de motorista que, trafegando de modo ordeiro na sua preferencial, dentro do limite de velocidade permitido na via, ao passar por cruzamento tem sua trajetória interrompida por outro que não obedece a sinalização de parada obrigatória ali existente e dá causa a acidente do qual o passageiro do veículo que seguia na preferencial vai a óbito. O condutor do veículo que estava na preferencial não teve qualquer culpa no ocorrido, e pelo princípio da confiança, era natural que ele acreditasse que o motorista que chegou ao cruzamento respeitaria a sinalização de parada obrigatória.

3.2.4 Princípio da adequação social

Por esse princípio, o fato não poderá ser enquadrado como típico se, a despeito de ser descrito em norma penal, não for considerado pela sociedade, por conta do costume, como um ato criminoso. Em outras palavras, embora haja a descrição do tipo em norma penal, por ser o ato praticado pelo agente aceito socialmente, não deverá o operador do direito amoldá-lo à norma previamente descrita. Um exemplo para bem ilustrar o tema que ora nos ocupa seria o da loteria conhecida por “jogo do bicho”. Princípio criticado por parte da doutrina no sentido de que costume não revoga lei, não estando o operador do direito autorizado a desconsiderar crime previsto em lei vigente.

3.2.5 Princípio da legalidade

Não é pacificado o entendimento de que os princípios da legalidade e da reserva legal são sinônimos. Há autores que sustentam que os dois termos são equivalentes. Outra corrente entende que o princípio da legalidade é premissa maior que se divide em três subprincípios, a saber, o da reserva legal, o da determinação taxativa e o da irretroatividade.

CAPEZ (2014) ensina que o princípio da legalidade é gênero que compreende duas espécies: o da reserva legal e o da anterioridade de lei penal; para ele, o subprincípio da reserva legal reserva para o estrito campo da lei a existência do crime e o da anterioridade exige que a lei esteja em vigor no momento da prática da considerada infração penal. A seguir falarei sobre os princípios que, segundo considera-se, desdobram-se do da legalidade.

3.2.5.1 Princípio da reserva legal

Assim preceitua o artigo 1º do Código Penal, a saber “Artigo 1º: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Norma também inserta na Constituição Federal de 1988, no o artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Significa que ninguém poderá ser punido por praticar ato que lei anterior não descreva como crime. O crime só existe se, no momento da ação do sujeito, já estava previamente descrito em norma penal, e em plena vigência, criada pelo poder legislativo. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa que seja, a não ser em virtude de lei.

O célebre pensador iluminista Cesare Beccaria, cujas teorias inspiram os mais diversos juristas, em sua consagrada obra “Dos delitos e das penas” assim se referiu à necessidade de a lei escrita ser anterior à conduta típica praticada pelo agente:

“A primeira consequência desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado.”

BECCARIA (2011), pág. 28

3.2.5.2 Princípio da taxatividade

Para ser considerado crime o ato praticado pelo agente necessariamente deve estar descrito em norma penal criada pelo poder legislativo em período anterior à prática da ação. Apenas a lei pode descrever os tipos penais, bem como estipular as respectivas penas. Pelo princípio da taxatividade, as leis devem descrever minuciosa e circunstanciadamente os tipos, individualizando, pois, a conduta criminosa, separando-a de todas as demais que assim não devem ser consideradas, de modo a facilitar a qualquer pessoa da sociedade o perfeito entendimento de seu enunciado. Vale anotar, todavia, que o artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é claro ao estabelecer que ninguém poderá descumprir a lei sob o argumento de que a desconhece.

3.2.5.3 Princípio da irretroatividade

Assim preceitua o artigo 2º do Código Penal:

“Artigo 2º: Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XL, dispõe que “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Sendo, portanto, bastante claro que em qualquer hipótese, a novatio legis incriminadora (lei nova que define como crime ação praticada pelo agente quando tal ainda não existia) não retroagirá e não incriminará o agente; da mesma forma, novatio legis in pejus, ou seja, nova lei que piora a situação do réu, não retroagirá para prejudicá-lo.

De outra banda, em caso de advento de novatio legis in mellius, ou seja, lei nova mais benéfica para o réu, esta sempre retroagirá em seu benefício. Vale ressaltar que, nesse sentido, caso seja editada lei nova que não mais considera crime o ato praticado pelo réu (abolitio criminis), pelo qual este já foi condenado, tal implicará na extinção do processo e na decretação de sua liberdade.

Importante colocar que esse princípio só é observado nas normas de caráter penal.

3.2.6 Princípio da intervenção mínima

Ao legislador, de acordo com esse princípio, caberá a tarefa de apenas descrever como crime aquelas condutas realmente passíveis de ser punidas com sanções penais, de maneira a não estabelecer penas para condutas que podem ser contidas mediante a aplicação de outros ramos do direito, que não as penas. De outra banda, o operador do Direito deverá sempre observar se a conduta praticada pelo agente necessita ser enquadrada em tipo penal, ou seja, se a pendência não pode ser satisfatoriamente resolvida mediante a aplicação de outros ramos menos agressivos do ordenamento jurídico.

3.2.7 Princípio da proporcionalidade

Quando o Estado edita uma nova lei penal um temor paira sobre a sociedade, pois tal representa uma nova regra a ser observada ou a descrição de outras condutas que não mais poderão ser praticadas, prevendo uma determinada pena para todo aquele que infringir a novatio legis (nova lei). Ou seja, quando o legislador descreve um novo tipo de crime impõe um ônus a mais para a sociedade.

Entretanto, o lado bom da questão é que essa nova regra a ser observada resulta em uma maior proteção ao bem jurídico tutelado. De maneira que a transformação de uma conduta em tipo penal apenas deverá ocorrer quando resultar em relevante proteção a bem jurídico; em outras palavras, quando a tutela for mais vantajosa para a sociedade que a limitação imposta pela nova lei.

3.2.8 Princípio da Humanidade

A Constituição Federal de 1988 não admite a tortura e o tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III), especifica os tipos de pena que são proibidos, a saber, a prisão perpétua, a de trabalhos forçados, de banimento e toda e qualquer pena cruel (artigo 5º, inciso XLVII), ou seja, em território nacional, enquanto viger a presente Carta Magna, tais sanções penais em hipóteses alguma serão empregadas (a exceção, para o caso de pena de morte, é a de estado de guerra declarada).

Além disso, preceitua a Constituição que nenhuma pena passará da pessoa do delinquente, ou seja, somente o agente, aquele que praticou o delito é que estará em situação de sofrer a penalidade; jamais terceira pessoa, familiar ou parente próximo.

Nos primórdios da humanidade, antes de se organizarem em civilizações, os homens viviam no chamado estado natural, subsistindo, pois, o jus naturale, condição de liberdade ilimitada em que os indivíduos podiam fazer uso de qualquer meio que entendiam necessário para preservar a própria existência; entre outras palavras “liberdade de fazer tudo aquilo que, segundo seu julgamento e razão, é adequado para atingir esse fim” HOBBES (2009), página 97.

HOBBES (2009) aduz que o homem é mau por natureza, havendo a necessidade de uma força sobre todos, que retire de cada um sua liberdade individual em favor desta; um poder soberano, que deverá atuar para manter a paz social, sendo, assim, o Estado, tal poder sobre os homens, que colocará um fim no "estado natural de guerra de todos contra todos".

ROUSSEAU (2007) também falou sobre o contrato social, aduzindo, no entanto, que o homem é bom por natureza, e que o Estado, ao retirar sua liberdade natural, tornou-o escravo e agressivo, devido às inúmeras leis que, no seu modo de entender, privilegiam a classe dominante em detrimento da maioria, instaurando a desigualdade entre os homens.

Sendo o Estado, de acordo com os mencionados teóricos, resultado de um contrato assinado pelos homens, que cederam suas liberdades primitivas e naturais em favor de um poder soberano, cada integrante da sociedade se comprometeu a cumprir as regras estabelecidas, a fim de que a ordem se mantivesse e o direito de todos fosse garantido, sobretudo o de ir e vir. Cabe a este Estado fazer cumprir as regras, e, ao infringimento destaas, punir o infrator que violou a liberdade de outrem. Mas qual o limite para a punição? Qual e pena mais apropriada para cada um dos diferentes tipos de crimes? É defeso ao Estado cometer um crime para punir outro?

A parte da liberdade que foi recusada por todos os homens em favor do Estado representa o “capital” empregado por cada um dos membros signatários nessa soberana empresa, sendo o lucro aferido de tal associação a almejada paz. BECCARIA (2011), observando esta circunstância, lembra que as penas não podem exceder a porção mínima de liberdade depositada por cada indivíduo, sendo qualquer punição que a isto exceda um abuso, jamais um ato de aplicação da justiça:

"O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo”

BECCARIA (2011), página 27

O mesmo pensador anotou, ainda que a pena tem por única finalidade impedir que o infrator siga cometendo os atos delituosos e induzindo a todos os demais a fazer o mesmo. Para ele, a pena tem que ser certa, ou seja, o cidadão tem que estar ciente de que será punido. Contudo, a sanção jamais deverá ser cruel, pois muitos são os exemplos de nações nas quais as penas, sendo cruéis, não impediram a incidência de prática de crimes ainda mais atrozes. A pena justa, para o teórico, sempre deverá ser aquela que representar para o infrator um mal maior do que o benefício alcançado pela prática do crime. A crueldade de uma pena estabelece uma injusta proporção entre o delito e a sanção.

Assinala, ainda, o teórico, que a pena capital apenas é justificável nas situações de desordem e caos social, quando as leis deixam de ser cumpridas coletivamente, e ainda assim quando tal for a única maneira de se impor novamente a ordem e a paz. Em outras palavras, em situação de guerra. A pena de morte, para ele, nada mais é do que um espetáculo macabro; jamais será uma forma justa de punir.

3.2.9 Princípio da necessidade e idoneidade

Decorrente da proporcionalidade. De acordo com aludido princípio, sempre que determinada conduta lesiva à sociedade puder ser reparada por outros ramos do direito, que não o penal, deverá assim ser procedido. Quando estiver esta circunstância presente e o critério não for observado, havendo sanção penal incompatível ou desproporcional à conduta praticada, tal padecerá de vício constitucional, por ferir a premissa maior da dignidade da pessoa humana, decorrente do Estado Democrático de Direito.

3.2.10 Princípio da ofensividade

Não cabe ao Direito Penal descrever punição para crime que só existe na mente do agente, ou seja, aquele que não foi colocado em prática ou ao menos tentado. Por este princípio, apenas se considera crime a efetiva lesão a bem jurídico. Explicando o princípio, CAPEZ (2014) anota que toda norma penal que não vislumbrar um bem jurídico claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social será considerada nula e materialmente constitucional. Trata-se de princípio ainda discutido no Brasil. Todavia, o referido autor entende que:

“(...) subsiste a possibilidade de tipificação dos crimes de perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estágio ainda embrionário, reprimindo-se a conduta, antes que ela venha a produzir um perigo concreto ou um dano efetivo. Trata-se de cautela reveladora de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses. Eventuais excessos podem, no entanto, ser corrigidos pela aplicação do princípio da proporcionalidade.”

CAPEZ (2014), página 41.

3.2.11 Princípio da autorresponsabilidade

Os danos que o agente comete contra si mesmo, em decorrência da não observância de determinadas cautelas, por imperícia, ou mesmo dolosamente, apenas são passíveis de ser imputados ao próprio agente, e nunca a terceira pessoa que eventualmente o aconselhou ou motivou. Não se trata aqui do caso do suicida que tirou a própria vida após ser induzido ou instigado por alguém, mas daquele caso hipotético em que o indivíduo foi motivado por um amigo a praticar natação e, ao fazê-lo, acabou se afogando.

3.2.12 Princípio da imputação pessoal

Todo aquele que não reunir capacidade mental suficiente para compreender o ato criminoso que pratica não poderá sofrer sanção penal. Em outras palavras, o Direito Penal não pode punir os inimputáveis.

3.2.13 Princípio da responsabilidade subjetiva

Nenhum ato poderá ser considerado crime, e, portanto, passível de ser responsabilizado mediante aplicação de pena, se não foi cometido com dolo ou culpa, bem como se o fato concreto não reunir todos os elementos da culpabilidade.

3.2.14 Princípio da presunção da inocência

Assim preceitua o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A lei é clara ao afirmar que toda pessoa será considerada inocente até que seja condenada em processo criminal não mais pendente de recurso, ou seja, em condenação transitada em julgado.

Conclusão

A Constituição brasileira de 1988 consagra em seu artigo 1º o Estado Democrático de Direito, cujo princípio mais importante é o da dignidade da pessoa humana, valor que visa proteger o ser humano de tudo aquilo que lhe possa levar ao desprezo. Em torno desse princípio gravitam os direitos fundamentais e uma gama de subprincípios que devem nortear o legislador penal durante os procedimentos de criação das leis bem como o operador do direito no momento de proceder a adequação típica do ato praticado à norma penal.

Dado que, no Brasil, a penalidade máxima que pode ser infligida ao transgressor da lei é a de privação da liberdade, sendo esta considerada o segundo maior bem do ser humano, após a vida, e considerando que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma forma de valorização do homem, que visa garantir a sua integridade, evitando-se a sua depreciação ou a sua redução, bem como considerando que a vida em sociedade é o resultado de um contrato assinado por todos os homens, que cederam parte de sua liberdade primitiva ilimitada em favor do Estado, para que este promovesse as condições e os regramentos da vida coletiva, elaborando leis e protegendo os bens jurídicos mais importantes.

Considerando, ainda, que a agressão a um bem jurídico tutelado pelo Estado precisa receber uma resposta eficaz do poder supremo, que deve objetivar, além da punição propriamente dita, a reparação da lesão causada pelo agente transgressor da lei.

Ainda, levando em consideração que a punição tem que representar para o criminoso um mal maior que a vantagem por ele pretendida com o ato ilícito, nada mais que isso. Resulta concluir que punir não é sinônimo de desprezar, diminuir, insultar, agredir, humilhar, torturar, desonrar, desqualificar, ferir ou matar.

No Estado Democrático de Direito o Direito Penal não é instrumento de repressão ou opressão. Exerce, pois, função regradora dos contatos sociais, mediante a aplicação de penas que visem unicamente coibir as ações nocivas e estimular as condutas lícitas, satisfazendo deste modo o anseio coletivo, contribuindo, destarte, para a pacificação social.

Referências Bibliográficas

- BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2011

- CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Parte Geral 1, 18º edição. São Paulo: Saraiva, 2014.

- HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, formas e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2009.

- HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

- LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014.

- ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Lafonte, 2012.

- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2007.

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