A vida era dura para todos os animais. Todas as espécies precisavam dedicar horas e horas, às vezes até dias inteiros de trabalho para conseguir comida, e desta forma alimentar a si mesmos e à prole. Trabalho árduo que nem sempre trazia o resultado esperado.
As aves de rapina, logo pela manhã, saíam a voar. E voam e voavam, e mesmo das alturas prestavam minuciosa atenção a qualquer movimento que ocorresse no meio da vegetação rasteira que representasse a presença de algum pequeno roedor ou outro bicho de pequeno porte que pudesse ser servido para seus filhotes, inquietos no ninho à espera da mamãe.
As manadas de bisões migravam por imensas distâncias à procura de vegetação verdinha e abundante, enfrentando todos os perigos imagináveis, atravessando rios repletos de crocodilos, passando por regiões infestadas de leopardos, o que implica dizer que além de buscar comida tinham que defender seus pequenos dos ataques furiosos desses astutos predadores felinos. E mesmo estes, nada mais faziam do que buscar sua própria sobrevivência. O que era considerado um crime para os bisões, para leopardos e hienas significava comida na mesa.
Pobre aranha, tanto trabalho para construir uma teia bem grande e grudenta entre as árvores... Toda trabalhada, uma verdadeira obra de arte, rica em detalhes. E lá ficava a aranha, inerte, em um dos cantos da linda teia, vigiando atentamente toda a extensão de sua obra-prima, só esperando o momento que algum pequeno inseto voador distraído caísse em sua armadilha. Horas esperando. Às vezes dias inteiros, ou noites. E a aranha sempre ali.
E os peixes na lagoa. Alguns se reuniam na área localizada embaixo de um dos galhos da árvore da margem, só esperando o momento em que uma frutinha madura caísse na água, para poderem abocanhá-la. Outros se escondiam atrás das algas, aguardando os pequenos peixinhos que pudessem lhes servir de almoço, e que por ali passassem distraídos, dando bobeira. Tudo pela sobrevivência.
Com o passar dos anos, os animais mais espertos e empreendedores encontraram uma forma de acumular presas e garantir, assim, um bom estoque de comida, e o excesso passou a se constituir objeto de troca com outros animais também empreendedores. Assim, quando as águias estivessem enjoadas de ratos e quisessem saborear um suculento sapo, poderiam, entre elas, efetuar uma troca. Obviamente, pequenos animais mais apetitosos eram mais valiosos, e os mais indigestos ou de sabor menos agradável, tinham menor valor. Os animais espertos passaram a ter nas garras a riqueza da abundância de presas, mas não o poder animalítico (que o bicho homem chama de político).
Este, o poder animalítico, pertencia ao leão. O rei dos animais vivia na mordomia. Dormia a maior parte do tempo, mas era o soberano. Quando sentia fome, arrancava literalmente o coro do primeiro bicho que encontrava, sendo ele grande, médio ou pequeno. Muitas vezes, inclusive, o rei investia com suas garras e dentes afiados nos estoques de presas dos animais espertos, comendo quanto e quando quisesse. Após o banquete, barrigão no chão e bundão para cima a contemplar o imenso reino que a ele pertencia.
Chegou o dia em que os animais empreendedores se irritaram. Não mais se conformavam com a mordomia do leão. Já não mais suportavam o fato de trabalhar em demasia enquanto o leão, que vivia deitado, reinava soberano. Além disso, também causavam a ira dos animais empreendedores os bichos que viviam de bajular o rei leão, e que por isso mesmo tinham a permissão para terminar de arrancar o que restava de suas carcaças ou de seus estoques de presas. Tais eram os aproveitadores do reino, a saber, os urubus e as hienas. Animais à toa, puxa-sacos, vadios. Os corvos também irritavam os animais empreendedores; eles diziam existir a Floresta do Outro Mundo, que ficava bem distante, para onde iam todos os animais que obececessem ao leão e aceitassem, sem questionar, ser devorados, pois isso era um gesto que agradava ao Animal do Bem, o soberano da Floresta do Outro Mundo. Os corvos, por conta dessas pregações, também tinham privilégios com o leão, possuindo permissão para poder atacar os estoques de presas dos animais empreendedores.
Era preciso dar um basta nesta situação.
Os animais empreendedores passaram a protestar. Igualmente se rebelaram os pequenos, presas dos empreendedores, inconformados com sua miserável situção. Os animais empreendedores reivindicavam liberdade para poder caçar e estocar presas sem ter que se preocupar com a mordida do leão. E os pequenos, por sua vez, reivindicavam liberdade para igualmente poder caçar outros ainda menores, sem a interferência dos empreendedores e a ameaça das garras opressoras do leão. Reuniram-se, pois, e tramaram uma conspiração contra o leão e seus lacaios. Planejaram acabar com tais privilégios.
Em marcha, todos os bichos do mundo invadiram a savana onde estavam o leões e sua corja de puxa-sacos. Embora muito fortes, e tendo lutado com bravura, a união dos animais empreendedores com os trabalhadores trucidou o leão e sua côrte. A cabeça do rei foi arrancada e os elefantes atiraram-na para o alto, ao som de “Viva o irracionalismo!”. O irracionalismo foi o novo sistema implantado. Tratava-se da nova sociedade dos animais, na qual todos os bichos passaram a ter total liberdade para poder comer ou estocar outros bichos à vontade. Os animais pensavam que a liberdade lhes traria o progresso e a paz, e todos poderiam usufruir naturalmente daquilo que a natureza lhes oferecesse.
O irracionalismo também pregava a igualdade entre os animais. Mas essa igualdade, a partir de então, passou a não harmonizar-se com a tal liberdade. Havia uma problema. Alguns animais eram mais espertos do que os outros, maiores, mais velozes. Em tese, todos podiam comer todos. Mas, na prática, somente quem já possuía dotes naturais mais avantajados se sobressaíram.
Aconteceu que os bichos de porte menor passaram a se constituir em verdadeiros viveiros de presas e comidas para os bichos grandes; por mais que quisessem e se esforçassem, os pequenos não conseguiam comer os animais maiores. Era uma briga desigual, injusta. O mundo do sistema irracionalista precisava de regras, e de um soberano que fosse escolhido pelo voto direto de todos os animais, eleito pela maioria, que os governasse obecedendo aos acordos firmados por todos.
Os animais menores rebelaram-se. Na iminência de ficar sem alimentos e morrer de fome, os grandes aceitaram se reunir com os pequenos. E firmaram um acordo. Cada animal abriu mão de parte de sua liberdade em favor de um poder maior que sobre todos atuaria, a que chamaram Animalestado, que era regido pelas regras que todos os animais concordaram em criar e obedecer. Estabeleceu-se o regime animalocrático de escolha de soberanos. Os bichos se dividiriam em bandos. De quatro em quatro anos, os diferentes bandos formariam as alianças, lançando os candidatos a soberano do reino dos animais. E através do voto escolher-se-ia quem iria governar a todos e cumprir e fazer cumprir as regras.
Pensou-se, desta forma, que a maioria, que era composta pelos pequenos animais, teria mais condições de vencer os pleitos eleitorais e manter os animais grandes longe do poder. Entretanto, eis que entre os animais pequenos e os grandes havia os considerados médios. Os animais médios não necessariamente o eram em tamanho, muito menos em inteligência; entre eles, sobressaíam-se os asnos, as antas, as toupeiras e as mulas. Também faziam parte dessa classe de animais os papagaios e as gralhas, bichos falastrões de cujas bocas ou bicos pouca coisa de útil e inteligente saía. Essa característica natural de parte dos animais médios, de falar pelos cotovelos e repetir o que os outros dizem, passou a ser uma arma poderosa na mão dos animais grandes. Isso porque, geralmente, os papagaios e as gralhas falavam para as mulas, os asnos, as antas e as toupeiras; e estes, manipuláveis, alienavam-se, influenciando também boa parte dos pequenos.
A animalocracia passou a funcionar, na prática, contra os pequenos animais a favor dos grandes.
Embora em menor número, os grandes aliciavam os papagaios e as gralhas, dando-lhes empregos na imprensa dos animais. Mas nem todos os papagaios viraram jornalistas. A maioria deles se contentou em ser militante da causa dos grandes, em troca de nada, de graça. Entre os jornalistas, a maioria era de gralhas. E uma grande panela se formou. Os animais grandes contavam com as gralhas da imprensa e com os papagaios que repetiam o que estas diziam. Os animais grandes em aliança com os papagaios, as gralhas, os asnos, as antas, as toupeiras e as mulas tornaram-se fortes e invencíveis.
Nas eleições daquele ano, o candidato dos grandes foi o cavalo e o candidato dos pequenos foi a formiga. As gralhas da imprensa usaram a mídia e fizeram a maior propaganda contra a formiga, manipulando e conduzindo a opinião dos pequenos a seu bel-prazer. Os papagaios espalharam para os animais médios que era uma aberração imaginar que um animal tão pequeno, de origem humilde, uma operária, teria capacidade para governar os bichos do mundo inteiro. A pressão foi imensa: rotularam a formiga, falaram o diabo dela.
O cavalo sagrou-se vitorioso nas eleições. Eleito soberano dos animais.
Assim, de forma animalocrática, pelo voto, venceu as eleições um animal que não tinha qualquer compromisso com os bichos pequenos. Todavia, o mais incrível é que o cavalo teve grande votação inclusive entre os próprios pequenos. E, claro, foi unanimidade entre as bestas, os burros, as toupeiras e as antas.
O cavalo era irracionalista de ideologia e governou de modo a manter os privilégios dos grandes animais, como já era esperado. Os pequenos seguiram sendo comidos pelos grandes. Por mais que se esforçassem, não tinham força suficiente para comer um bicho maior que eles. E, mesmo observando isso, as mulas, as toupeiras e as antas, doutrinadas pelas gralhas da imprensa e pelos papagaios, diziam que o importante era ter a liberdade, pois se os animais pequenos se esforçassem bastante, conseguiriam, um dia, comer os grandes. As mulas acreditavam ser totalmente possível a um besouro devorar uma girafa, desde que se esforçasse para tanto. Para assegurar a manutenção do sistema, o cavalo contratou cães e gansos de guarda, que diuturnamente ficavam vigilantes nas imediações do curral, sob suas ordens.
E aconteceu que o soberano cavalo precisou contratar funcionários para trabalhar em áreas de interesse coletivo. O salário oferecido era muito bom. O animal que fosse aprovado no processo seletivo teria garantido um estoque mensal de comida de ótima qualidade. A meritocracia do irracionalismo promoveria a competição justa, onde os melhores iriam se sobressair e conseguir as vagas. As gralhas da imprensa e os papagaios disseram que todos teriam iguais condições para poder competir. E as mulas, as antas e as toupeiras acreditaram.
Após receber as taxas de inscrição de todos os animais que se inscreveram para disputar as vagas, o soberano cavalo levou-os até o local onde iriam ser aplicadas as provas. Tratava-se de uma praia perto de onde havia uma enorme montanha e, ao pé desta, uma árvore bem alta. Ninguém sabia qual seria a tarefa a ser efetuada, isso somente seria revelado na hora.
No local, o cavalo dividiu os candidatos em grupos. E revelou quais seriam as provas.
Ao grupo de número um, composto pelos peixes, gatos e camelos, o cavalo conferiu a missão de encontrar no fundo do mar uma concha contendo pelo menos uma pérola.
Ao grupo de número dois, composto pelas águias, sapos e ornitorrincos, o cavalo conferiu a missão de subir no alto do morro e ali cravar uma estaca.
Ao grupo de número três, composto pelos macacos, cães e jacarés, o cavalo conferiu a missão de colher o fruto do galho mais alto da árvore.
Ninguém reclamou do resultado do processo seletivo. As gralhas escreveram em seus jornais que o concurso foi justíssimo e que venceram os melhores animais, os mais qualificados. E as mulas concordaram. Quem melhor que o macaco para subir na árvore? Quem mais competente que o peixe para ir ao fundo do oceano? Quem mais eficiente que a águia para voar até o alto do morro? Além disso, se os outros animais tivessem se dedicado mais, esforçado-se mais, poderiam ter sido aprovados.
E assim os animais seguem vivendo a era do irracionalismo. Ainda que existam pernilongos zunindo nos ouvidos dos bichos pequenos, gritando e tentando mostrar-lhes que o sistema é injusto, tal zunido incomoda os animais de médio e grande porte, que por este motivo muito facilmente os esmagam. Algumas corujas também só espiam de longe e observam tudo o que se passa, vez ou outra tentando alertar os animais de que o sistema precisa mudar, que é possível construir um mundo onde haja mais justiça; mas elas acabam sendo rotuladas de mal agourentas e sofrem perseguições, muitas vezes pagando com a morte.
Os animais pequenos existem em número muito maior, mas são dominados pela minoria composta pelos de grande porte. A razão de existir dos pequenos é servir de comida para os grandes. Os animais médios querem se tornar grandes, e para isso também comem os menores e trabalham para que estes nem tenham noção de sua condição de presas e se conformem com tal sina.
Chegará o dia em que os animais pequenos saberão que a mais microscópica das bactérias e o mais insignificante dos vírus, unidos, têm poder para tombar uma manada de elefantes?