3-ROMPIMENTO OU DESTRUIÇÃO DE OBSTÁCULO À SUBTRAÇÃO DA COISA E A QUESTÃO DO ARROMBAMENTO PARA SAIR DO LOCAL DO CRIME
A primeira qualificadora do crime de furto é aquela prevista no artigo 155, § 4º., I, CP, qual seja, o “rompimento ou destruição de obstáculo à subtração da coisa”.
Ora, se o rompimento ou destruição do obstáculo se dá como meio para o fim da subtração, é natural que ocorra primeiro o arrombamento e depois a subtração.
No entanto, há casos em que o indivíduo logra ingressar no local do crime sem necessidade de arrombamento. Depois, por alguma circunstância adversa, acaba fechado no local e precisa, por exemplo, romper uma porta para poder sair com os bens móveis que furtou.
A grande questão está em decidir se essa inversão da ordem dos fatores altera o produto, ou seja, se o arrombamento de dentro para fora descaracteriza ou não a qualificadora em estudo.
A resposta não é pacífica na doutrina. Para Magalhães Noronha, por exemplo, como o rompimento ou destruição deve dar-se “para” a subtração, então deve ser necessariamente “anterior ou concomitante” a esta. De outra forma, sendo posterior ao apossamento dos bens, não servirá para configurar a qualificadora em destaque. [4]
Em posição oposta se acha Hungria:
“O § 4º., n. I, do art. 155 considera qualificado o furto cometido ‘com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa’. As palavras ‘à subtração da coisa’ podem ser substituídas por estas: ‘à sua execução’. Cumpre que a destruição ou rompimento do obstáculo ocorra em qualquer dos momentos da fase executiva do crime. O que vale dizer: para possibilitar ou facilitar tanto a apprehensio, quanto a efetiva transferência da res furtiva ao poder de livre e tranquila disposição dela por parte do agente. Enquanto o furto não está consumado, ou ainda se ache em fase de execução, a violência contra o obstáculo é qualificativa. Assim o ladrão que, penetrando sem violência numa casa comercial e, já apreendida a res, tem de arrombar, para poder sair, a porta de aço intercorrentemente fechada, comete furto qualificado”. [5]
Mirabete menciona o escólio de Magalhães Noronha, mas alerta que se trata de posição isolada, esclarecendo que a qualificadora ocorrerá sempre que o rompimento ou destruição se der antes da consumação. Para o autor “o termo subtração, empregado no dispositivo em estudo, equivale à consumação”. [6]
Outro autor que enfoca na consumação do crime como marco para a configuração da qualificadora é Bitencourt:
“Na verdade, não há qualquer relevância se a violência contra a coisa se opera antes ou depois de sua apreensão, desde que, logicamente, se concretize antes da consumação do crime. Assim, destruição ou rompimento praticado para consumar a subtração, mesmo após a apreensão física da coisa, também qualifica o crime; agora, se o rompimento ou a destruição for praticado após a consumação do furto, constituirá crime autônomo”. [7]
Não destoa Damásio, afirmando que o rompimento ou destruição pode dar-se a qualquer momento, desde que antes da consumação. [8]
Releva destacar que a doutrina predominante, que inclusive se reflete na jurisprudência a respeito do tema, admite a qualificadora em apreço mesmo quando o arrombamento se dá após o apossamento do bem, para sair do local do delito. O marco para a aplicabilidade da qualificadora é a consumação do crime. Sendo, portanto, o arrombamento anterior à consumação, pode-se dizer que foi meio para a prática do furto e, assim sendo, qualificá-lo.
4-O VISLUMBRE DE UMA VIRAGEM DOGMÁTICO – JURISPRUDENCIAL
Como visto, inicialmente predominava a tese de que para a consumação do furto era necessária a “posse tranquila” do bem móvel subtraído pelo agente. Reinava a “Teoria da Inversão da Posse”, ainda hoje adotada por alguns autores. No entanto, vem predominando na atualidade, seja no STF ou no STJ, com nítidos reflexos sobre a doutrina, a Teoria da “Amotio” que torna inexigível a “posse tranquila”, contentando-se com a mera remoção da coisa do local onde se achava inicialmente. Portanto, o momento consumativo do furto sofreu uma antecipação.
Quanto à aplicação da qualificadora da destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa, o que se verifica é uma exigência defendida por Magalhães Noronha de que o arrombamento se dê antes ou ao menos concomitantemente à subtração. Por outro lado, praticamente todo o restante da doutrina que se manifesta a respeito do caso, afirma que o que importa é que o arrombamento se tenha dado para assegurar a posse da “res furtiva”, configurando-se a qualificadora em destaque, mesmo quando o autor adentra ao local do furto sem arrombamento inicial e depois precisa fazê-lo para sair com o bem furtado.
O entendimento até hoje predominante sobre a aplicação da qualificadora era condizente com a “Teoria da Inversão da Posse”. Aliás, seus defensores frisam bastante que o que importa é que o arrombamento se dê com o fito de conseguir a consumação do crime. Ou seja, o marco para a validade da qualificadora e não a configuração de crime autônomo de dano, é que esta se opere antes da consumação. Sob a égide da “Teoria da Inversão da Posse” era lógico que se o indivíduo adentrava ao local do furto sem arrombar, mas ali ficava preso por alguma circunstância adversa e então perpetrava o rompimento para sair, o fazia antes da consumação. Isso era facilmente compreensível porque era exigida a “posse tranquila”. Ora, se o indivíduo estava trancado no local, ainda que já houvesse obtido a posse do objeto almejado, não se poderia jamais concluir que essa posse era tranquila, muito ao reverso. Então, ao perpetrar o arrombamento, o fazia com o fim de efetivamente consumar o crime e não como um ato posterior à consumação. Esse era, na verdade, o cerne da prevalência do entendimento da configuração da qualificadora nos casos de arrombamento de dentro para fora.
Contudo, atualmente, a predominância da orientação da “Amotio” adianta o momento consumativo do furto para o mero apossamento momentâneo da coisa pelo autor, sem necessidade de “posse tranquila”. Nesse passo, quando o infrator está dentro do local, ao qual teve acesso sem rompimento ou destruição de obstáculo, e se apossa de um bem qualquer, o furto já está consumado, independentemente de “posse tranquila”. Portanto, quando vai sair e se depara, agora, com obstáculo e o rompe ou destrói, o faz após a consumação, ao menos segundo a orientação hoje em voga no STF e STJ e defendida por boa parcela da doutrina. Se o marco para a aplicabilidade da qualificadora é a consumação do crime e o arrombamento deve dar-se antes dessa, então a visão sobre a questão do arrombamento para sair do local deve necessariamente ser posta em revisão. O pensamento até agora isolado de Magalhães Noronha deve tender a ganhar espaço na doutrina e na jurisprudência, a não ser que se retome a “Teoria da Inversão da Posse”. Estando já consumado o furto com o mero apossamento, o rompimento ou destruição posterior para a saída, é um “post factum” que não pode ter o condão de gerar a qualificadora, eis que jamais pode ser visto como meio para a prática do furto que já estava consumado. Como visto a doutrina assevera com insistência que o que importa é que o arrombamento se dê anteriormente à consumação, só assim pode ser considerado meio para ela.
5-CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foram expostas as teorias sobre a consumação do crime de furto, indicando-se a tendência que oscilou ao longo do tempo entre a chamada “Teoria da Inversão da Posse” e a Teoria da “Amotio”, predominando na atualidade a segunda, inclusive no STF e no STJ.
Com fulcro na noção da consumação do furto com a posse tranquila (“Teoria da Inversão da Posse”, que predominou por largo período), a situação em que o agente pratica o rompimento ou destruição de obstáculo após a subtração da coisa para sair do local vem sendo considerada pela maioria da doutrina e da jurisprudência como configuradora da qualificadora do artigo 155, § 4º., I, CP. Destoa desse entendimento o autor Edgard Magalhães Noronha, para quem a qualificadora somente se perfaz acaso o arrombamento seja anterior ou concomitante à subtração.
Constatou-se que a alteração do entendimento sobre a consumação do furto deve gerar uma consequente mudança no pensamento que versa sobre a aplicabilidade da qualificadora nos casos de arrombamentos para a saída do local. Isso porque, com razão, a doutrina sempre frisou que o importante era que o arrombamento se desse para o fim da consumação, fosse operado antes dela. Ora, na vigência da “Teoria da Inversão da Posse”, o indivíduo com os objetos trancado no local do crime, ainda não havia consumado a infração e perpetrava o arrombamento para consumá-la. Hoje, porém, com a predominância da Teoria da “Amotio”, o agente, ao retirar os bens de onde se achavam e tê-los consigo, ainda que momentaneamente, já consuma o delito de furto. Desse modo, estando aprisionado no local por alguma circunstância e vindo a perpetrar o arrombamento para sair, age depois da consumação do furto e, portanto, não age para a sua consumação que já ocorreu. Dessa forma, não haverá mais falar-se em aplicação da qualificadora do artigo 155, § 4º., I, CP quando o arrombamento de der depois do apossamento dos bens pelo agente. O marco da consumação, indicado pela própria doutrina que defendia a tese até agora ainda vigente, se alterou, se adiantou e, com isso, deve mudar a perspectiva de aplicação da qualificadora.
Resta saber se a doutrina e a jurisprudência terão o cuidado e a visão necessária para perceber essa viragem que se opera.
6-REFERÊNCIAS
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 2. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2015.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume III. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: RT, 2001.
STEFAM, André. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010.
TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004.
Notas
[1] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 208.
[2] STEFAM, André. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 361.
[3] TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 350 – 351. Ainda no mesmo sentido: JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 345 – 346. Contudo, ainda há autores que defendem a “Teoria da Inversão da Posse”, exigindo a “posse tranquila” do bem móvel para consumação do furto. São exemplos: Flávio Augusto Monteiro de Barros, Cezar Roberto Bitencourt, Rogério Greco. Cf. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 2. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 344. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 44 – 45. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2015, p. 14. Este último autor traz à colação as tradicionais lições de Heleno Fragoso e Nelson Hungria, exigindo também a posse tranquila. Op. Cit., p. 13 – 14.
[4] NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 233.
[5] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume III. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 40.
[6] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Op. Cit., p. 214. No mesmo sentido: GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 26.
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 55. No mesmo sentido: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: RT, 2001, p. 374.
[8] JESUS, Damásio Evangelista de. Op. Cit., p. 362.