O pluralismo nas entidades familiares e os novos moldes de família
Este estudo abrange sobre uma nova teoria de família, que compreende tanto o lado biológico, quanto o lado afetivo. Nova teoria porque os princípios e arranjos familiares tratados aqui já surgiram há certo tempo, mas eram reprimidos devido ao preconceito, a rigidez da religião e igreja e a falta anuência do Estado e da legislação. A princípio faz-se necessário uma busca pequena histórica da origem do modelo de família conhecido no Brasil e uma tentativa conceitual, para depois realizar um estudo mais amplo a respeito do estudo do direito das famílias e também apreciar os novos arranjos familiares.
O direito brasileiro nasceu sob influencia dos costumes da Grécia e Roma antigas. Assim também, os costumes familiares vieram dessa ordem. Em um estudo Coulanges deixa claro que o culto e a religião era fundamento da associação familiar. Nas suas palavras “A família era um grupo de pessoas que a religião permitia invocar o mesmo lar e oferecer o banquete fúnebre aos mesmos antepassados.” (COULANGES, 1864, p.53) Ainda na leitura de sua obra, percebe-se que o modulo familiar era machista, com pessoas submetidas a um chefe, estruturado em base de costumes, e sem ordenamentos jurídicos.
No direito romano a família era iniciada pelo casamento, que acontecia em grande celebração religiosa. Assim com a ascensão do cristianismo e da igreja católica, ficou estabelecido no império romano apenas o casamento católico por se tratar da religião oficial do país. Sobre isso Tânia da Silva Pereira entende que:
A doutrina jurídica reconhece que o direito romano forneceu ao Direito brasileiro elementos básicos da estruturação da família como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurado até os tempos atuais. ( PEREIRA, 2004, p. 641)
A legislação brasileira acompanhou a estruturação da igreja católica no que tange a normatização da família. O código civil de 1916 (CC/16) e também a constituição federal de 1967 (CRFB/67) regulavam a família unicamente constituída pelo matrimonio, impedia a dissolução e trazia discriminação de seus membros, como por exemplo, os filhos havidos fora do casamento.
Historicamente a família vem passando por diversas modificações, principalmente nas estruturas sociais.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) inovou-se os parâmetros familiares, principalmente pelo fato de seu texto aceitar unidades de família como a união estável e a base formada por qualquer um dos pais e seus descendentes, a família monoparental. A CRFB/88 ainda instaurou a igualdade entre o homem e a mulher, passando a proteger de forma igualitária a todos.
Uma vez que a constituição trouxe essa nova noção do que é família, cabe ao direito fazer o mesmo. O direito deve acompanhar a mudança cultural da sociedade. Neste sentido Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald entendem que:
[...] o conceito de família mudou significamente até que, nos dias de hoje, assume uma concepção múltipla, plural, podendo dizer respeito a um ou mais indivíduos, ligados por traços biológicos ou sócio-psico-afetivos, com intenção de estabelecer, eticamente, o desenvolvimento da personalidade de cada um. (FARIAS, 2012, p. 45)
Desta forma o conceito de família se flexibiliza, tendo sua formação baseada no afeto e nas condições sociais vividas pelo ser. O estudo do direito de família está na necessidade de regularizar as relações existentes entre seus membros e as influencias exercidas sobre os bens e pessoas.
O direito de família é apreciado entre os arts. 1.511 e 1.783 do Código Civil de 2002 (CC/2002), na CRFB/88 e se dissemina também por diversas outras linhas legislativas, como o ECA, Lei do Divórcio, Lei de Investigação da Paternidade, entre outros. Sobre a Lei e a família, Maria Berenice Dias entende que:
O direito das famílias é o mais humano de todos os direitos. Acolhe o ser humano desde antes do nascimento, por ele zela durante a vida e cuida de suas coisas até depois de sua morte. Procura dar-lhe proteção e segurança, rege sua pessoa insere-o em uma família e assume o compromisso de garantir a sua dignidade. Também regula seus laços amorosos para além da relação familiar. Essa série de atividades nada mais significa do que o compromisso do Estado de dar afeto a todos de forma igualitária, sem preconceitos e discriminações. (DIAS, 2009, p. 80)
Os diversos modelos de família existentes atualmente acarretam a necessidade de um estudo acerca da evolução social e o envolvimento jurídico na esfera da família.
A evolução da sociedade em si faz com que o direito, e também o direito de família, busque acomodação as suas estruturas, se adequando de forma legal naquilo que já existe em sociedade. Umas das peculiaridades do direito de família é a relação de afetividade, não existe de forma explicita na constituição mas é fundamental nas relações familiares atuais. Adriana Maluf classifica afetividade como:
[...] a relação de carinho o cuidado que se tem com alguém íntimo ou querido. É um estado psicológico que permite ao ser humano demonstrar os seus sentimentos e emoções a outrem. Pode também ser considerado o laço criado entre os homens, que, mesmo sem características sexuais, continuam a ter uma parte de amizade mais profunda. (MALUF, 2012, p.18)
Nota-se que a afetividade é algo que liga muito mais a família do que a própria relação hierárquica existente.
Por se tratar de uma matéria tão especifica e peculiar o direito de familia foi contemplado com varas especificas para seu tratamento. O direito de família deve ser tratado de forma atípica ao de costume, já que se leva em consideração principalmente o sentimento das pessoas. O termo jurídico da família, não é de imposição do estado nem da igreja. A formação da família trata-se de uma busca de realização pessoal e felicidade da pessoa humana e os aspectos jurídicos que normatizam o direito de família são criados para atender a sociedade e não para sua delimitar a formação da família em si.
Vários doutrinadores aclamam os princípios constitucionais para proteção da família e de todos os seus membros. Citando alguns princípios constitucionais importantes para o direito de família, não podemos deixar de lado o principio da dignidade da pessoa humana – que é o mais universal de todos os princípios e dá o direito da pessoa humana constituir sua família e com ela ser feliz.
Outros princípios que cabe serem citados são o principio da liberdade, que se correlaciona com o principio da igualdade. São direitos humanos fundamentais, e proporcionam as pessoas garantir o respeito à liberdade e ao não tratamento diferenciado. Existe também o principio da solidariedade, que em meio familiar é a identificação que a família atual busca como um dos fundamentos para a afetividade.
A partir do momento em que a realidade familiar se fundou no afeto, a afetividade pode também ser tratada como um princípio, tendo em vista que a união de pessoas das mais variadas formas é classificada justamente pela relação de afeto e carinho.
Um outro principio que é importante ser destacado nesta linha de estudo é o do pluralismo das entidades familiares que se dispõe na própria CRFB/88 associando a união estável e a família monoparental como entidades familiar.
No sentido destes princípios observa-se um rompimento da estrutura patriarcal e abertura de uma cavidade para o surgimento de novos arranjos familiares na sociedade jurídica. Arranjos estes que, mostram como as tradições de costumes foram quebradas, juntamente com tabus como a homossexualidade, casamento aberto e a produção independente de filhos. Isso apresenta que, a realidade familiar se constrói a partir da história da vida compartilhada de seus membros. Desta forma cabe ao direito instituir estruturas de proteção para seu desenvolvimento.
Diversos autores enumeram, sem limitarem-se, alguns modelos de famílias que são reconhecidas atualmente, tais como família matrimonial, união estável e homoafetiva, família monoparental, anaparental reconstituídas paralelas entre outros.
A família matrimonial é conhecida também como família tradicional já que segue o contexto histórico de ter sua base fundada no casamento. Reúne pai mãe e filhos. Na visão cultural foge a linha de instituição jurídica e religiosa e passa atender uma espécie de sonho de realização pessoal. É uma herança da tradição da sociedade patriarcal. Nas palavras de Farias e Rosenvald o casamento é tão antigo quanto o próprio ser humano.
O casamento não é a única nem principal forma de constituição de família. Reconhecida pela CRFB/88, a união estável envolveu as formas de manifestação da família e não apenas aquela conhecida pelo casamento formal. A união estável é um complexo familiar parecido com o casamento, mas essa não se formaliza nos mesmos termos deste. O CC/2002 trata que é a relação configurada na convivência publica continua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. A união estável é caracterizada por estabilidade, durabilidade, prole, relação de co-dependência econômica, convivência na mesma moradia, entre outros. A falta de qualquer destes elementos não descaracteriza a união estável.
Ainda focando na união estável, deve ser citada a união estável homoafetiva. Em votação, o STF acordou por unanimidade a equiparação da união estável homossexual e a união estável heterossexual, baseando-se principalmente nos princípios constitucionais citados anteriormente. Ficou registrado que a união homoafetiva é um espaço ideal para realização dos laços de afetividade enlaçados pelo ordenamento jurídico na constituição da esfera familiar.
Outro molde de família expresso na CRFB/88 é o monoparental, tem por titularidade do vinculo familiar apenas um dos genitores e sua prole. Este modelo se organiza tanto pela vontade dos pais de se organizarem desta forma ou por circunstancias alheias a sua vontade, e traz para a sociedade o desvinculo de família formada por um casal. A família monoparental se tornou muito mais presente após a revolução industrial, com a entrada da mulher no mercado de trabalho e a queda do patriarcalismo. O texto constitucional é claro ao dizer que entende como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, assim fica nítido que apenas refletiu uma realidade social já existente.
Na mesma linha de pensamento, se destaca a família anaparental, que se forma a partir da inexistência da hierarquia entre seus membros e a sua convivência não dispõe de interesses sexuais, se baseia apenas na afetividade sem a presença dos genitores. Como exemplo, pode-se observar dois irmãos que vivem sob o mesmo tempo, durante anos e se dependem conjuntamente para contribuição econômica e construção do patrimônio familiar.
O ordenamento jurídico atual se flexibilizou de uma forma que permite que as pessoas casem, descasem, se casem novamente com outras pessoas, procriem, recriem e por ai vai. As pessoas separadas e divorciadas se unem a outras pessoas e trazem consigo os filhos de relacionamentos anteriores, diversificando e coexistindo, formando assim um novo núcleo familiar, este núcleo é conhecido por família reconstituída. Mais um módulo familiar protegido acerca dos princípios constitucionais. Cabe aqui uma famosa frase de Maria Berenice Dias “os meus, os seus, e os nossos filhos”
Mais um resultado da pluralização dos modelos de família é o conhecimento da família paralela, que é aquela em que tem a união estável reconhecida concomitante ao casamento. Na visão doutrinaria, a família paralela nasce do concubinato, se compreende pelo fato de a união estável de pessoa casada que não aderiu a monogamia, também seja protegida pelo estado. A família paralela deve ser reconhecida apenas como entidade familiar se for fundada na existência da afetividade, estabilidade e boa-fé.
Pode-se dizer que estes exemplos acima citados são espécies de famílias eudemonistas, pois se caracterizam pela busca da realização plena de seus membros, afeto recíproco, consideração e respeito mútuo independente de vinculo biológico.
A infraestrutura familiar cresce cada dia mais, juntamente com o crescimento da bioéitca e seus efeitos na criação da família. O planejamento e construção da família é direito básico do individuo e não cabe ao Estado interferir na decisão à concepção da prole, apenas promover meios para reprodução que respeite os direitos fundamentais.
É evidente a existência do pluralismo nos arranjos familiares, baseados principalmente nos laços de afetividade, que sobrepõe as linhas biológicas. A diversidade de gêneros, crenças, valores éticos e morais não podem restringir a fundação da família que tem como base a afetividade, solidariedade, igualdade e liberdade entre seus membros.
O núcleo familiar foi atingido não só pelo Código Civil de 2002 (CC/2002), mas também pela CRFB/88 que “instaurou a igualdade entre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros.” (DIAS, 2009, p. 31). Fazendo-se um marco na evolução da família, a CRFB/88 abriu ainda vertentes de reconhecimento de uniões estáveis e uniões homoafetivas, reconhecendo estas instituições como família.
De tal forma, a personalidade humana vem fundando novos conceitos de família por meio de laços afetivos com o intuito de alcançar a felicidade plena.
Referências bibliográficas
BRASIL, Código Civil. Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2014.
BRASIL, Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 2014.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. (Tradução de Roberto Leal Ferreira. Traduzido da 1. ed. de 1864). São Paulo: Editora Martin Claret, 2009.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. V.6. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2012.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das Famílias: amor e bioética. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2012.
PEREIRA, Tânia da Silva. Famílias possíveis: Novos paradigmas na convivência familiar. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.