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Ministério Público de Contas brasileiro: ser ou não ser, eis a questão

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13/06/2015 às 13:38
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3. A INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL E A AUTONOMIA FINANCEIRA-ADMINISTRATIVA COMO REALIDADES INDISSOCIÁVEIS (PODERES IMPLÍCITOS)

Para negar autonomia financeira e administrativa aos Ministérios Públicos de Contas, o Supremo Tribunal Federal teve que enveredar numa inconsistente cisão entre garantias subjetivas dos Procuradores de Contas (asseguradas) e garantias objetivas do Ministério Público de Contas (negadas).

Contudo, independência funcional e independência institucional são, nas palavras do Ministro Marco Aurélio[25], indissociáveis, ligadas que estão numa relação meio-fim absolutamente necessária.

Sem independência da instituição, nem o mais belo e recheado rol de direitos e garantias funcionais conferidas aos membros do Parquet de Contas serão capazes de ganhar vida e sair do papel: faltar-lhe-ás terreno fértil para florescer e dar frutos.

O membro do Ministério Público, seja o de Contas, ou o comum, só pode atuar com verdadeira independência no bojo de uma instituição igualmente independente, que lhe garanta todos os meios materiais necessários para a consecução de seus deveres/poderes funcionais, como também o resguarde da ingerência indevida de todos aqueles que possam investir em face de suas funções.

Por sinal, a necessidade de autonomia financeira e administrativa dos Ministérios Públicos de Contas mostra-se ainda mais pujante que a do Ministério Público comum, haja vista o Parquet de Contas ter como missão precípua e diária defender os interesses da sociedade na prestação de contas de todos administradores públicos, dentre eles as mais altas autoridades do Poder Público[26], como os chefes do Poder Executivo e seus assessores diretos (ministros e secretários), os chefes das casas legislativas, do Poder Judiciário, do Ministério Público comum, da Defensoria Pública, e, também, a do próprio Tribunal de Contas perante o qual os Procuradores de Contas oficiam.

Isto é, está no círculo cotidiano de seus afazeres verificar a legitimidade, a legalidade e a economicidade de todos os atos e contratos administrativos firmados pelos agentes que compõem o topo da pirâmide estatal, o que muitas vezes pode gerar (e gera!) incômodos na cúpula política do poder público onde atua[27].

Os Procuradores de Contas são, assim, verdadeiros fautores do sistema republicano, já que funcionam como advogados da sociedade na prestação de contas de todos aqueles que vierem a gerir recursos públicos, missão mais que propensa a despertar antipatias e perseguições.

A se enfileirar pela tese de cisão entre as garantias subjetivas (referente ao membro) e objetivas (referente à instituição), conclui-se inevitavelmente que teria sido da vontade da Constituição dotar os Procuradores de Contas de delicadas e importantíssimas funções, bem como de direitos equivalentes aos dos membros do Ministério Público comum, a serem exercidos e vivenciados com dependência direta e total dos Tribunais de Contas perante os quais oficiam, e que, em última instância, são responsáveis, até mesmo, por definir o valores de seus salários, a concessão ou não de férias, a autorização para viagens a serviço, a estruturação de seus gabinetes, o fornecimento de papel, a compra de computadores, a disponibilidade de internet.

Se esta é a interpretação correta, temos que rematar que a Constituição Federal não idealizou apenas um Procurador de Contas, mas sim um sobre-humano e destemido advogado da sociedade, dotado dos deveres e das competências mais relevantes, em ofício propenso a desafiar poderosíssimas autoridades políticas da República, mas despido da possibilidade de comprar papel para sua atuação, destinado a mendigar estrutura de trabalho, política remuneratória e independência funcional a outrem. Quase um Dom Quixote dos tempos modernos a vituperar sua condição de fiscal da lei e da sociedade, mas que sequer pode assinar os cheques que lhe pagam os salários.

E se está franqueado o uso de metáforas, o Ministério Público de Contas tracejado pela ADI 789/DF lembra muito um jovem de 18 anos, que grita a plenos pulmões sua maioridade civil e penal, e sua vasta esfera de direitos políticos, mas que desempregado e sem renda, chega em casa e vive da mesada dos pais. Alguém faticamente incapaz de definir com independência real seu futuro e cumprir seu destino na vida.

Na verdade, o reconhecimento de um Ministério Público de Contas sem autonomia financeira e administrativa é a exaltação de um Ministério Público amputado, absolutamente incapaz de executar com efetividade máxima a portentosa e honrada missão que a constituição lhe deferiu à míngua da gestão de recursos financeiros próprios.

Quem, uma vez mais, bem anotou essa percepção foi Carlos Ayres Britto, ao assinalar que “um Ministério Público sem a compostura de um aparelho substante em si não passa de um aparelho administrativo tão burocrático quanto subalternamente hierarquizado, pra não dizer uma sonora mas quase ornamental nominalidade, uma vez que privado daquela dignidade institucional que tipifica o fenômeno da desconcentração política da autoridade”[28] (grifo nosso).

O permanente e imprescindível enlace entre independência funcional e autonomia financeira e administrativa é unânime na doutrina.

Disserta sobre o assunto Hugo Nigro Mazzilli:

Com efeito, sem autonomia financeira, nem sequer haveria efetiva autonomia funcional. A autonomia orçamentária é complemento necessário da autonomia e da independência funcional. Como anota, com razão, Eurico de Andrade Azevedo, “é evidente, porém, que essa independência funcional (..) só poderá ser exercida eficazmente, só será verdadeira e efetiva se estiver acompanhada de autonomia administrativa e financeira”[29] (grifo nosso).

Aliás, Hugo Nigro Mazzilli, evoluindo seu pensamento, passou a reconhecer a confirmação constitucional de um Ministério Público de Contas próprio e assinalou sua autonomia financeira e administrativa como decorrência lógica do sistema constitucional:

Se foi vontade do legislador constituinte criar um Ministério Público especial – e foi isso o que afirmou o Supremo Tribunal Federal – forçoso seria reconhecer que faltou ao sistema melhor explicitação dos necessários predicamentos de autonomia funcional, administrativa e financeira para essa instituição, assim como já detém os demais Ministérios Públicos ditos comuns. Não o tendo feito por expresso a Constituição de 1988, caberia às Cortes Judiciais, e especialmente à mais alta delas, dentro de uma interpretação sistemática da Lei Maior, reconhecer ao Ministério Público especial os atributos completos de autonomia funcional, administrativa e financeira, sob pena de termos um dos ramos do Ministério Público desfigurado da vocação institucional que a Constituição quis imprimir a essa instituição como um todo[30] (grifo nosso).

Emerson Garcia, em obra específica sobre o Ministério Público brasileiro, assenta ser a autonomia financeira “verdadeira pedra angular da autonomia da instituição e da independência de seus membros, isto porque certamente não passariam de vãos ideários acaso ausentes os recursos financeiros necessários à sua estruturação e manutenção”[31] (grifo nosso).

Uadi Lâmego Bulos também disserta sobre o laço umbilical entre independência funcional e autonomia administrativa:

O estudo dos atributos da autonomia institucional do “Ministério Público de Contas” demonstra a faculdade que os seus integrantes possuem para agir sem mordaças, medos, cabrestos ou receios de qualquer espécie. Se eles gozam dos mesmos direitos e vedações dos membros do Parquet comum, evidente que as suas responsabilidades, e deveres, promanam da magnitude de suas próprias funções institucionais. Suponhamos, a título ilustrativo, que um integrante do Parquet de Contas comece a ser perseguido por defender a observância da cláusula do devido processo legal e de seus respectivos desdobramentos. Perguntamos: a total liberdade de atuação, reconhecida pelo Supremo Tribunal desde a ADIn 160/TO, impediu a atrocidade sofrida pelo representante do “Ministério Público de Contas”? Ora, não basta propalar a plena autonomia funcional do Parquet de Contas. É preciso mais que isso, porque sem autonomia administrativa, orçamentário-financeira, normativa e organizacional o órgão não desenvolverá o seu papel na grandiosidade da missão para a qual foi criado, colaborando, inclusive, no combate à corrupção e à imoralidade pública. Também de nada adianta se reconhecer, num ângulo, que o Parquet de Contas é instituição autônoma em face do Ministério Público comum, da União ou dos Estados, ou do Distrito Federa, e, noutro, negar-lhe fisionomia institucional própria[32] (grifo nosso).

Uma vez mais, Carlos Ayres Britto:

Está implícita no tracejamento de regime jurídico igual no plano subjetivo a outorga de prerrogativas iguais no plano objetivo (que já é de caráter institucional ou colegial). Pois na autonomia administrativa de uma Instituição é que as prerrogativas funcionais de cada qual dos seus membros ganham plena possibilidade factual de expressão. Uma coisa a manter com a outra identidade de natureza, como no dito popular de que “O vento que venta ali é o mesmo que venta aqui”[33] (grifo nosso). 

Igualmente dedicou estudo sobre a temática José Afonso da Silva:

Confesso que tenho muita dificuldade de entender que os membros de um órgão tenham autonomia funcional, individualmente, prerrogativa que compreende a plena independência de atuação perante os poderes, inclusive perante a Corte junto à qual oficiam, sem que o próprio órgão seja igualmente dotado de tal prerrogativa. [...] Pois, se não tiver autonomia administrativa, significa que fica subordinado à estrutura administrativa em que insere. Assim, se falta a autonomia administrativa, seus membros e seu pessoal ficam na dependência de outro órgão, e, conseqüentemente, carecerá daquelas prerrogativas que configuram a autonomia funcional [...][34] (grifo nosso). 

Além da vasta doutrina constitucional e administrativista, o próprio Supremo Tribunal Federal, por mais das vezes, reafirmou a indissociabilidade entre independência funcional do membro do Ministério Público e autonomia administrativa e financeira do Parquet, em precedentes que restaram vencedores na sua jurisprudência.

A título de exemplo, veja-se o teor do julgado tomado na MC ADI 2.513/RN[35], em 2002, na qual ficou lançado com tintas grossas e à unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal que a autonomia financeira e administrativa do Ministério Público são ferramentas imprescindíveis para uma atuação verdadeiramente independente dos seus membros.

Nessa toada, asseverou o Ministro Celso de Mello que “A autonomia do Ministério Público [...] visa a um só objetivo: conferir-lhe, em grau necessário, a possibilidade de livre atuação orgânico-administrativa e funcional, desvinculando-o, no quadro dos Poderes do Estado, de qualquer posição de subordinação [...]” (grifo nosso).                          

Continuando, o Ministro Celso de Mello referencia que:

A outorga constitucional de autonomia, ao Ministério Público, traduz um natural fator de limitação dos poderes dos demais órgãos do Estado, notadamente daqueles que se situam no âmbito institucional do Poder Executivo. A dimensão financeira dessa autonomia constitucional - considerada a instrumentalidade de que se reveste - responde à necessidade de assegurar-se, ao Ministério Público, a plena realização dos fins eminentes para os quais foi ele concebido, instituído e organizado (grifo nosso).

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Daí arremata o Ministro de forma indisputável: 

Sem que disponha de capacidade para livremente gerir e aplicar os recursos orçamentários vinculados ao custeio e à execução de suas atividades, o Ministério Público nada poderá realizar, frustrando-se, desse modo, de maneira indevida, os elevados objetivos que refletem a destinação constitucional dessa importantíssima Instituição da República, incumbida de defender a ordem jurídica, de proteger o regime democrático e de velar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis (grifo nosso). 

De fato, como bem assinalou o Ministro Celso de Mello, sem que se disponha de orçamento próprio, o Ministério Público nada poderá realizar, frustrando-se, desse modo, sua missão constitucional.

É evidente que toda essa linha argumentativa, pela igualdade de razões, pode e deve ser transportada, sem qualquer prejuízo, para o Ministério Público de Contas.

São oportunas as indagações de Michael Reiner[36]:

Caso se assente negativamente para o MPC (a autonomia institucional), o que impedirá que se desenvolva entendimento de que não se trata de uma garantia essencial (ontológica) do próprio Ministério Público, a exemplo do que ocorria em seu desenho anterior a 1988? O panorama aqui descrito reverbera, de fato, no discurso de unidade do Ministério Público brasileiro, recém noticiado?

Ou o Ministério Público que oficia no Controle Externo é uma locução equivocada da Constituição Cidadã e uma ilusão de ótica do STF, não se tratando, em desafio à objetividade jurídica, de Ministério Público?

Com efeito, se o Ministério Público comum não pode curar de seus deveres constitucionais sem orçamento próprio, por que haveria de conseguir esta façanha o Ministério Público de Contas?

Aliás, perfeitamente suscitável aqui a tese dos poderes implícitos[37] (implied powers), useira e vezeira na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que consiste em reconhecer que, para o desencargo dos vultosos deveres constitucionais a qual fora laureado o Ministério Público de Contas, deferiu a Constituição, mesmo que implicitamente, igual carga de poderes do qual a independência administrativa e financeira estão marcados com a nota de imprescindibilidade.

Sem autonomia financeira e administrativa, a independência funcional vira obra de ficção científica, uma quimera do Supremo Tribunal Federal a empalidecer as funcionalidades e a própria razão de ser de um Ministério Público de Contas. O sistema de controle externo não encaixa, impossibilitando a plena efetividade da função ministerial no ofício perante os Tribunais de Contas em prejuízo à sociedade, ao erário e ao combate à corrupção.

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Sobre o autor
Patrick Bezerra Mesquita

Subprocurador de Contas do Estado do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA, Patrick Bezerra. Ministério Público de Contas brasileiro: ser ou não ser, eis a questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4364, 13 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39898. Acesso em: 2 nov. 2024.

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