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Ministério Público de Contas brasileiro: ser ou não ser, eis a questão

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13/06/2015 às 13:38
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7. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL, CONVENÇÃO DE MÉRIDA E O IMPRESCINDÍVEL REPOSICIONAMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS

É consenso que a Constituição pode sofrer processo de mudanças formais ou informais. As mudanças formais se dão pela via das emendas constitucionais, proposições legislativas com quórum qualificado de votação (3/5 de ambas as casas) e procedimento especial (dois turnos de votação tanto na Câmara quanto no Senado)[104].

Por sua vez, as mudanças informais se dão por via da chamada mutação constitucional e consistem na alteração dos sentidos dados ao texto constitucional, com consequências diretas no alcance da norma constitucional. Isto é, mudança de percepção sobre o texto a despeito da permanência de seus exatos termos gramaticais. A mutação constitucional pressupõe um entendimento preexistente sobre a norma[105], modificado após novo pálio atualizante sobre ele.

Sendo a intepretação constitucional o produto do seu tempo, é mais que natural que a percepção sobre as normas jurídicas sofram o influxo e refluxo da constante metamorfose social e de seus valores. A repaginação da estrutura social demanda, por consequência lógica, uma nova leitura constitucional.

Na seara constitucional, é mais fácil e frequente esse fenômeno, na justa medida em que a peculiar estrutura das normas constitucionais, pródigas em conceitos jurídicos indeterminados e na fixação de locuções abertas, funcionam como portas e janelas abertas para a circulação de novos ares jurídicos, sociais e políticos, como que para espantar mofos interpretativos afixados e renitentes.

A mutação ocorre por força, por assim dizer, de um poder constituinte difuso e permanente, vivo no cotidiano da sociedade e que revela uma constituição igualmente viva (living Constitution), a que faz menção a doutrina americana.

A descoberta de um novo sentido à norma constitucional é resultado da mobilidade do direito, que, embora muitas vezes em atraso, tenta acompanhar a mobilidade social[106]. Mobilidade social quase supersônica em tempos de moderníssimas tecnologias de informação e comunicação. A mutação é, desta feita, consequência da plasticidade das normas da constituição somada à constante alteração da percepção jurídica da sociedade e dos Tribunais.

Sarmento e Souza Neto frisam quem a possibilidade de mutação constitucional decorre exatamente da dissociação entre norma e texto:

Se a norma constitucional não se confunde com o seu texto, abrangendo também o fragmento da realidade sobra a qual esse incide, é evidente que nem toda mudança na Constituição supõe alteração textual. Mudanças significativas da sociedade – seja no quadro fático, seja no universo dos valores compartilhados pelos cidadãos -, podem também provocar câmbios constitucionais, sem que haja qualquer mudança formal no texto magno[107].

Barroso, citando Bruce Ackerman, chega a citar que a mutação constitucional foi responsável pelas principais modificações constitucionais americanas, muito além das alcançadas pelas alterações formais, em especial quando pautas de valores humanos e sociais importantes não contavam com força de movimentação político-legislativa suficiente[108].

Os limites da legitimidade da mutação constitucional estão demarcados no ponto de equilíbrio que deve haver entre dois dos conceitos mais importantes à teoria constitucional, mas que guardam certa tensão entre si: o de rigidez constitucional (apanágio de sua supremacia) e o da plasticidade de suas normas.[109]

Nesse diapasão, só será legítima a mutação constitucional que respeite os limites semânticos do texto e que, ao mesmo tempo, preserve os valores fundamentais da Constituição.

O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de reconhecer a mutação constitucional em diversos casos, em algumas das suas mais relevantes decisões.

Cita-se como exemplo sempre lembrado a viragem de 180° acerca da intepretação dada à extensão do foro por prerrogativa de função na hipótese de saída do réu do cargo ou função que ocupava, quando o Supremo Tribunal Federal moveu-se da admissão da extensão (entendimento sumulado sob o nº 394 dos enunciados de jurisprudência) para a sua negativa expressa[110].

De igual forma, a mudança acerca da constitucionalidade do regime integralmente fechado para os condenados por crimes hediondos, que de constitucional passou a ser tido como ofensivo à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal[111].

Digna de nota também foi a alteração dada pelo Supremo Tribunal Federal acerca da funcionalidade do mandado de injunção, que era tido como instrumento de pouca ou quase nenhuma eficácia, mas, após o writ constitucional, tornou-se instrumento dotado de poderosa carga concretizante dos valores constitucionais[112][113][114].

Outros exemplos de grande repercussão dizem respeito à titularidade dos mandatos eletivos[115], a vedação aos prefeitos itinerantes[116] e o reconhecimento à união estável homoafetiva[117] já referenciada em linhas pretéritas, onde o Supremo Tribunal Federal chegou a destacar que seu novo entendimento se opunha à opção deliberada do constituinte de 1988, decorrente das mudanças valorativas no seio social desde então.

A rigor, o que deve guiar o intérprete constitucional não é determinada concepção embutida no bojo da Constituição, mas o conceito que a lei maior traz em si. Quem muito bem explica a distinção entre concepção e conceito é Dworkin[118], ao narrar a história de um pai que aconselha os filhos a sempre obedecerem à equidade na vida. O que o pai exorta não é a sua concepção pessoal e temporal de equidade, mas que cada filho busque ser equânime em compasso com suas próprias concepções e com o desenvolvimento que o tempo dará ao conceito de equidade.

É por isso que um conceito pode ter determinada concepção num momento histórico e passar a outra concepção diametralmente distinta em outra época.

Tudo isso calha bem de vir à tona quando se trata de pensar numa mutação constitucional a respeito dos Ministérios Públicos de Contas e o reconhecimento de sua autonomia financeira e administrativa pela Constituição, ou, pelo menos, da não proibição que venham a usufruí-las por obra da auto-organização estadual/distrital e do princípio.

Todos os elementos que dão azo a uma mutação constitucional que altere a interpretação do Supremo Tribunal Federal acerca do alcance do art. 130 da Constituição Federal estão presentes.

A repaginação de um Ministério Público de Contas autônomo, por intermédio de intepretação atualizadora, incrementa sobremaneira a independência funcional de seus membros na atuação de fiscal da lei e na condição de representante da sociedade nos processos em trâmite nos Tribunais de Contas.

É compartilhado pela comunidade jurídica em geral, e até mesmo em eloquentes decisões do Supremo Tribunal Federal, que o usufruto de independência funcional plena só pode se dar quando o membro do Ministério Público está inserido numa estrutura institucional independente e que se auto-administre. A ideia de um Ministério Público de Contas autônomo e independente, assim sendo, é mais que aceita pela comunidade jurídica, é tida como premente.

De outra banda, é nos Tribunais de Contas que o princípio republicano de prestar contas ganha contornos mais relevantes, desembocando nesta Corte minudente e estratégico material acerca da legalidade e moralidade dos gastos do erário.

A jurisdição do Tribunal de Contas é, portanto, fundamental para o efetivo combate à corrupção e o exato controle da administração pública, o que induz que deve atuar nessa importante jurisdição de controle externo um Ministério Público tão forte e independente quanto o que funciona perante o Poder judiciário.

A necessidade de fortalecer os órgãos de controle na luta contra os malfeitos ao erário é premissa que quase monopoliza os anseios populares e está consagrada como verdadeira pretensão coletiva[119]. De fato, pulsa na moderna sociedade brasileira clamores pela probidade pública, com a detecção e punição dos responsáveis por atos de improbidade administrativa. Está na pauta do dia das discussões nacionais a eficiência no combate à corrupção, como um dos objetivos fundamentais do Estado. Mote que vem levando milhões de brasileiros às ruas, em instigante capacidade de mobilização poucas vezes vistas na história brasileira[120].

Basta singela atenção ao noticiário nacional para se verificar que grande parte do espaço jornalístico[121][122][123][124] é destinado ao tema anticorrupção e em prol da moralidade administrativa, reforçando que há sinergia de valores e condutas na efetivação do direito fundamental à administração pública proba e eficiente.

Portanto, interpretação em prol da independência do Ministério Público de Contas se amolda à perfeição aos objetivos mais relevantes da sociedade brasileira, em deferência clara com os valores sociais unânimes por um Estado eficiente e probo.

Outro ponto de grande destaque que alimenta a necessidade de mutação do entendimento pretoriano é a adesão brasileira à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, mais conhecida como a Convenção de Mérida.

Dito instrumento internacional tem como foco o combate à corrupção e foi internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Decreto Presidencial 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Em seu art. 6º, item 2, a Convenção de Mérida estatui que os Estados signatários deverão prover seus órgãos de combate à corrupção com a independência necessária para o bom desempenho de suas funções.

É preciso sublinhar: a Convenção de Mérida exige a independência do órgão de combate à corrupção, não se contentando com a independência de determinada categoria de servidores públicos.

A propósito, convém transcrever esse dispositivo do tratado internacional:

Artigo 6

Órgão ou órgãos de prevenção à corrupção

1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, garantirá a existência de um ou mais órgãos, segundo procede, encarregados de prevenir a corrupção com medidas tais como:

a) A aplicação das políticas as quais se faz alusão no Artigo 5 da presente Convenção e, quando proceder, a supervisão e coordenação da prática dessas políticas;

b) O aumento e a difusão dos conhecimentos em matéria de prevenção da corrupção.

2. Cada Estado Parte outorgará ao órgão ou aos órgãos mencionados no parágrafo 1 do presente Artigo a independência necessária, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, para que possam desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida. Devem proporcionar-lhes os recursos materiais e o pessoal especializado que sejam necessários, assim como a capacitação que tal pessoal possa requerer para o desempenho de suas funções.

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Sabendo-se que na doutrina brasileira os tratados internacionais ingressam, via de regra, com o status de lei ordinária, e recapitulando que na ADI 789/DF o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, dentre as interpretações constitucionais possíveis, a opção interpretativa constante na Lei 8.443/92 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União) de inserir o Ministério Público de Contas dependente do Tribunal de Contas da União era possível e legítima, parece bem claro que com a internalização da Convenção de Mérida, houve revogação parcial da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União nesta matéria, de modo que outra opção legislativa – perfeitamente compatível com a Constituição, diga-se – tomou corpo e veio a prevalecer: a de granjear o Ministério Público de Contas da União – órgão nato de combate à corrupção – com a independência necessária a que se refere o item 2 do art. 6º da Convenção de Mérida.

Aqui, a norma posterior – a da Convenção de Mérida – prevalece sobre a anterior – a da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União –, em homenagem ao consagrado critério cronológico[125] posto ser incompatível a independência necessária do órgão a qual se refere a Convenção de Mérida, com sua subordinação administrativa a uma estrutura alheia.

É até de se cogitar que, nesse ponto, a Convenção de Mérida de combate à corrupção traz forte imbricação com os direitos humanos [126], na medida em que visa assegurar que os esforços e poupanças públicas sejam direcionados em benefício de todos, e não em favor do governante de ocasião e seus apaniguados. Exatamente por isso que o combate à corrupção estatal está inserido no conceito de direitos humanos desde a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[127], um dos primeiros e mais notáveis marcos da ideia moderna de direitos humanos.

Sobre a ligação íntima entre corrupção e desrespeito aos direitos humanos, é eloquente a fala de Navy Pillay, Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos:

A corrupção é um enorme obstáculo à realização de todos os direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como o direito ao desenvolvimento. A corrupção viola os princípios fundamentais de direitos humanos da transparência, responsabilização, não discriminação e participação significativa em todos os aspectos da vida da comunidade. Correspondentemente, estes princípios, quando garantidos e implementados, são o meio mais eficaz para combater a corrupção[128].  

Nesse diapasão, não seria exagero enveredar pela linha de pensamento que a Convenção de Mérida seria dotada da supralegalidade conferida a todos os tratados internacionais de direitos humanos[129], posto ser tributária do aperfeiçoamento estatal no combate à corrupção. Corrupção estatal conhecida e reconhecida como um dos maiores obstáculos à efetivação dos direitos humanos, notadamente em países de grandes desigualdades sociais como o Brasil.

Sublinhe-se que, seja qual for o status da Convenção de Mérida no Brasil – se equivalente ao de lei ordinária, ou dotada de supralegalidade – o advento de novas normatizações infraconstitucionais muito podem e devem influenciar a hermenêutica constitucional, porquanto a interpretação dada pelos órgãos legislativos a determinada solução de conformação constitucional merece respeito especial das Cortes Supremas.

Não é por outro motivo que Barroso[130], citando Bruce Ackerman, relembra que boa parte da conquista dos direitos civis pelos negros, na década de 60, ocorreu em virtude do advento de legislação ordinária que veio a repercutir na interpretação da própria constituição, mobilizando uma mutação constitucional.

A Convenção de Mérida é um reforço do que pode representar a “aquisição de direitos civis” do Ministério Público de Contas brasileiro.

Vê-se, portanto, que mutação constitucional que reconheça a independência do Ministério Público de Contas passa bem por todos os requisitos lançados pela doutrina e jurisprudência para a ocorrência de uma mutação constitucional, funcionando a exegese atualizadora como antena de captação para as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.

Por outro lado, além de preenchidos os requisitos para a mutação constitucional, não se constata qualquer óbice para que ela ocorra.

Isso porque mutação constitucional atualizadora da feição institucional do Ministério Público de Contas é perfeitamente conciliável com o texto normativo presente no art. 130 da Constituição Federal, seja por serem indissociáveis as garantias subjetivas deferidas aos membros do Ministério Público de Contas das garantias objetivas do próprio órgão, seja pelo próprio texto conter indicativos claros de que o Ministério Público de Contas é uma institucionalidade própria e distinta do Tribunal perante o qual atua.

 A mutação constitucional, neste ponto, jamais enveredaria por interpretação constitucional fora das possibilidades apresentadas pelo texto normativo.

A intelecção de um Ministério Público independente, ademais, é muito mais consentânea com os princípios constitucionais que regeram a nova feição que o Ministério Público em geral recebeu da Constituição de 1988, não apenas preservando os valores e a identidade da Constituição Federal, mas como potencializando-os. Interpretação atualizadora nessa linha é prestigiosa e respeitadora do sistema constitucional como um todo.

Finalmente, declarar a independência do Ministério Público de Contas, longe de ofender quaisquer das cláusulas pétreas, é agente catalizador delas, uma vez que, ao reforçar o controle externo da administração pública, automaticamente presta-se tributo ao sistema federativo como um laboratório de experiências legislativas exitosas, rendem-se loas ao exercício responsável dos direitos políticos, incrementa-se substancialmente a separação dos poderes com a fragmentação de poder entre órgãos autônomos a protagonizarem o sistema de pesos e contrapesos e finalmente, e em especial, reforça-se substancialmente o direito individual e difuso a uma administração pública proba e eficiente.

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Sobre o autor
Patrick Bezerra Mesquita

Subprocurador de Contas do Estado do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA, Patrick Bezerra. Ministério Público de Contas brasileiro: ser ou não ser, eis a questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4364, 13 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39898. Acesso em: 24 abr. 2024.

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