CONCLUSÃO
O Ministério Público de Contas é instituição permanente, essencial ao controle externo, responsável por promover na jurisdição dos Tribunais de Contas a função de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Encarregado da responsabilidade de exercer a missão de custos legis e de custos constitutionis na estratégica jurisdição dos Tribunais de Contas, já seria intuitivo concluir que a este órgão ministerial se deve guardar o mesmo rol de independência institucional que alcançou seu congênere com atuação perante o Poder Judiciário. Até porque é na jurisdição dos Tribunais de Contas que avulta cotidianamente a defesa do republicanismo e da moralidade administrativa como bandeiras da própria razão de ser do controle externo brasileiro.
Seria mínimo estranho e máximo contraditório imaginar que a Constituição Federal, ao idealizar um Ministério Público com atuação perante os Tribunais de Contas, tenha desejado manietar esse mesmo órgão ministerial das características essenciais que definem o Ministério Público brasileiro.
É como se a Lei Maior, num átimo de esquizofrenia constitucional, dissesse: “ És, mas não és”. Uma contradição que longe de trazer à tona um reflexivo “Ser ou não ser” de Hamlet, provoca um “Ser ou não ser” paralisante, obstáculo quase que intransponível para o pleno aproveitamento social das potencialidades de um Ministério Público de Contas.
O Ministério Público de Contas tracejado pela ADI 789/DF sofre do mal da falta de identidade. Tenta equilibrar-se na confusão interpretativa que impera sobre si e que impede que seja o que constitucionalmente é: um Ministério Público, igual a todos os outros ramos do Ministério Público brasileiro.
Na mesma medida que sonha e briga por bem executar suas atividades de advogado da sociedade no combate à corrupção, frustra-se inevitavelmente diante dos limites que a ausência de autonomia lhe impõe. O Ministério Público de Contas parecer ser aquele que foi, sem nunca ter sido, só para parafrasear um marcante artigo jurídico que ajudou a mudar o rumo do mandado de injunção no país[131].
E nesse dilema de identificação, perde-se muito de sua funcionalidade, esbarrando a todo instante em acrobacias jurídicas sempre voltadas para embaraçar o seu funcionamento e o cumprimento de seu destino constitucional. É o que aconteceu em diversas hipóteses citadas ao longo deste trabalho, que culminaram, invariavelmente, na retaliação ao poder investigativo dos Ministérios Públicos de Contas, na mitigação de sua faculdade recursal, ou na simples e escancarada amputação de estrutura administrativa.
A rigor, se não fosse a notável disposição ao combate de boa parte de seus membros, é bem possível que os Ministérios Públicos de Contas se tornassem aquilo que há mais de cem anos previu Rui Barbosa sobre instituições de controle sem autonomia: um ornato aparatoso e inútil. Um parecerista de luxo, bem remunerado, pouco relevante e sem tarimba para a investigação.
Recusa-se a extrair do art. 130 da Constituição Federal interpretação tão tacanha.
Proclamar um Ministério Público de Contas pertencente à intimidade estrutural da Corte perante o qual atuam, mesmo que com a ressalva da independência funcional de seus membros, é linha interpretativa que, na prática, fulmina a atuação livre e desimpedida dos Procuradores de Contas. Isso porque, ninguém é verdadeiramente livre se mora de favor ou se precisa do cheque alheio para dar conta de seus gastos. Liberdade sem disponibilidade financeira é o pior dos cárceres. Sequer são necessárias grades.
Vimos neste trabalho que o enlace imprescindível entre autonomia financeira e administrativa do Ministério Público com a independência funcional de seus membros é mais do que conhecida e reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Não há razões jurídicas para excepcionar o Ministério Público de Contas dessa conclusão. Logo o Ministério Público de Contas, sempre tão sensível a toda série de perseguições por funcionar numa jurisdição voltada a atuar em nome do republicanismo, num país de tradição clientelista e patrimonialista.
Na verdade, por qualquer ângulo que se ponha a questão, e seja qual for a metodologia, os princípios, os elementos ou as técnicas interpretativas usadas, a conclusão não pode ser outra que não reconhecer que, se foi criado um Ministério Público com atuação nos Tribunais de Contas, gozará este, até por imperativo terminológico, das mesmas características essenciais do Ministério Público com atuação no Poder Judiciário. Do contrário, não haveria razão de nominá-lo de Ministério Público, nem haveria motivo de prevê-lo na Seção do Ministério Público em vez de situá-lo da Seção referente aos Tribunais de Contas.
Não há déficit de normatividade sobre a independência dos Ministérios Público de Contas, o déficit é de interpretatividade do alcance do art. 130 da Constituição Federal. Se é inconteste que todos os direitos dos membros do Ministério Público de justiça são extensíveis aos membros do Ministério Público de Contas, deve-se incluir neste rol, por óbvio, o mais importante desses direitos: o de trabalhar numa instituição autônoma que agasalhe, promova e proteja sua atuação funcional independente.
De outra banda, ainda que num exercício interpretativo mais tímido e descompromissado com a efetividade venha a se definir que a Constituição Federal não teria deferido automaticamente os atributos de autonomia administrativa e financeira aos Ministérios Públicos de Contas, nem o mais apocalíptico dos intérpretes constitucionais chegaria ao ponto de afirmar que essa mesma Constituição teria, além de tudo, vedado que o legislador infraconstitucional pudesse deferir tais prerrogativas institucionais ao órgão ministerial de contas, como se, além da queda, viesse o coice.
Ora, se repousa no princípio federalista uma das bases fundamentais do constitucionalismo brasileiro, e diante da norma ampliativa de direitos que é o art. 130 da Constituição Federal, parece evidente ao menos que resta franqueado aos entes federativos, com fulcro nos seus poderes auto organizativos, ampla margem legislativa acerca do modelo de Parquet de Contas, que só recairá em inconstitucionalidade caso prejudique e degenere a boa atuação do órgão. Por outro vértice, não há inconstitucionalidade em se fortalecer o Ministério Público de Contas. Nada mais constitucional que fortalecer órgãos de controle e de combate à corrupção.
Dito de outra maneira: ainda que se entenda que a Constituição não tenha tornado obrigatória a autonomia institucional dos Ministério Público de Contas, é inadmissível ancorar em linha interpretativa contrária, e virar o leme no sentido da vedação absoluta de autonomia, proibindo-se aos entes federativos a outorga a seus Ministérios Públicos de Contas do máximo aparato de independência institucional possível, potencializadora e concretizadora da independência funcional de seus membros.
À míngua de norma proibitiva, é perfeitamente cabível, e muito mais alinhada aos valores constitucionais, a interpretação local que confira independência aos seus Ministérios Públicos de Contas.
Em tempos em que o combate à corrupção é um dos principais motes de atuação do Poder Público, pôr abaixo as armas de um importante protagonista desta luta – os Ministérios Públicos de Contas –, é mais que fogo amigo, é verdadeira interpretação infiel aos desideratos moralizadores da Constituição.
A bem da verdade, a decisão tomada na ADI 789/DF, embora tenha sido de extrema importância nos idos de 1994 para a sobrevivência de um Ministério Público especializado na jurisdição de contas – um verdadeiro marco de sua existência –, envelheceu com o tempo, desbotou diante 21 anos de desafios que se apresentaram à efetivação dos Ministérios Públicos de Contas brasileiros e tornou-se insuficiente para o desempenho das atividades ministeriais nos Tribunais de Contas.
Uma mutação constitucional urge. Seja para reconhecer que o art. 130 da Constituição Federal diretamente prescreve independência institucional ao Ministério Público de Contas, seja para, ao menos, reconhecer que fica no espaço de conformação legislativa local a possibilidade de as unidades federativas adotarem um Ministério Público de Contas dotado de autonomia financeira e administrativa, em franca homenagem ao princípio federativo como laboratório de experiências legislativas exitosas.
Ser ou não ser Ministério Público, eis a questão?
“Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo”[132].
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