A ilegalidade da cobrança do ISSQN sobre o produto da comercialização de unidades autônomas em incorporações imobiliárias diretas

23/06/2015 às 16:54
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Visa apresentar um pequeno estudo quanto à (não) incidência do ISSQN sobre o produto da comercialização de unidades autônomas nas incorporações diretas, atentando ao entendimento jurisprudencial, e sua aplicabilidade às unidades vendidas "na planta"

1.      A POLÊMICA DA (NÃO) INCIDÊNCIA DO ISSQN SOBRE A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

Há muito tempo vem sendo travado um debate ferrenho entre os Municípios e as construtoras e incorporadoras a fim de dirimir esta dúvida: quando da incorporação imobiliária (regulada pela Lei n.º 4.591/64), incide o ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) sobre o valor da venda das unidades autônomas construídas?

Para encerrar tal discussão e instigar as Construtoras e Incorporadoras a perseguirem seus direitos, precisamos fazer algumas elucidações prévias quanto ao tema.

1.1.        Incorporação direta e indireta: conceitos e diferenças

Primeiramente, devemos conceituar e saber diferenciar uma “incorporação direta” e uma “incorporação indireta”. Tal conhecimento é fundamental para a conclusão quanto à incidência – ou não – do ISSQN.

A incorporação direta é aquela na qual o construtor é o próprio incorporador, que realiza a obra por sua conta e risco, com recursos próprios, sobre um terreno de sua propriedade, para posterior venda das unidades construídas. Ou seja, o construtor e o incorporador são a mesma pessoa.

Já a incorporação indireta é aquela na qual o construtor é um terceiro alheio à incorporação e à venda das unidades autônomas. Geralmente se dá a incorporação indireta quando o incorporador contrata uma empreiteira ou uma construtora para a execução da obra. Neste caso, evidentemente, as pessoas que irão construir as unidades e aquela que posteriormente irá vendê-las (incorporador) são diferentes.

1.2.        ISSQN: Hipóteses de incidência e conceito de serviço

Explicada brevemente a diferença acima (vamos voltar a ela mais tarde), devemos agora nos ater às “hipóteses de incidência” do ISSQN.

Como é de conhecimento comum, o ISSQN é um imposto municipal, que incide sobre serviços. Mais especificamente, incide sobre o preço dos serviços prestados.

Não são quaisquer “serviços”, todavia, que podem ser tributados. Para tanto, eles devem constar da Lista Anexa à Lei Complementar n.º 116/2003 – Lei Federal que estipula “regras gerais” quanto ao ISS, já que as regras específicas são formuladas pelo Município, sempre em obediência à Lei Federal.

E é com base em tal norma (LCP n.º 116/03) que os Municípios enxergam em qualquer incorporação imobiliária (seja direta ou indireta) uma oportunidade de cobrar o ISSQN. Isto porque, conforme pode ser visto da transcrição dos itens 7.02 e 7.05 da Lista Anexa à Lei em comento (abaixo), a legislação ordenou que fosse tributada qualquer execução de obra de construção civil (por administração, empreitada ou subempreitada), bem como quaisquer reparos de edifícios, estradas e congêneres. Vejamos:

Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.

(...)

Lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.

(...)

7.02 – Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras semelhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenagem e irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação e montagem de produtos, peças e equipamentos (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS).

(...)

7.05 – Reparação, conservação e reforma de edifícios, estradas, pontes, portos e congêneres (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador dos serviços, fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS). [houve grifo].

Entretanto, devemos discordar do entendimento dos Municípios que tributam qualquer incorporação imobiliária com ISSQN, vez que se trata de uma generalização completamente equivocada.

E tal equívoco reside na falta de observância a um conceito básico. A conceituação de “serviço”.

Em uma linguagem um pouco mais técnica, o serviço pode ser conceituado como um “bem intangível, imaterial e incorpóreo” – obviamente, ninguém consegue tocar o serviço, mas sim seu resultado – que se traduz no trabalho ou atividade economicamente mensurável, a ser executado por uma pessoa com relação à outra[1].

Para clarear: se a atividade é realizada por alguém sem auferir lucro ou qualquer benefício, ou se é feita apenas para si (e não em benefício de outra pessoa), não há como conceituá-la como serviço.

E não sendo serviço, não pode a atividade ser tributada com o ISSQN.

1.3         Conclusão: a incidência e a não incidência do imposto sobre o preço da construção

Para encerrar o debate, precisamos readequar as hipóteses de incidência do imposto à nossa classificação anterior (incorporação direta e indireta).

Diante do que foi dito, parece suficientemente claro que, na incorporação indireta (aquela na qual o construtor e o incorporador são pessoas diferentes), há incidência de ISS sobre o preço da construção.

Isto porque tal atividade (construção): a) consta da Lista anexa à LCP 116/2003; b) está sendo realizada em benefício de outra pessoa (incorporador) pelo construtor; e, como regra, c) será remunerada. Logo, deve incidir o imposto sobre o preço pago pelo incorporador ao construtor pelo serviço prestado.

Por outro lado, o mesmo não irá ocorrer na incorporação direta (aquela na qual o construtor e o incorporador são a mesma pessoa).

Neste caso, não há um contrato regulando “serviço de construção” da unidade autônoma entre o incorporador e o adquirente. Como dito, o próprio incorporador irá executar a obra por sua conta e risco, para posteriormente vender as unidades autônomas construídas. Portanto, não existe serviço, vez que não há que se falar em “prestar serviço para si próprio”.

Existe, em verdade, um contrato de promessa de compra e venda firmado entre o construtor/incorporador (que é o proprietário do terreno) e o adquirente de cada unidade autônoma.

Notadamente, é aqui que reside o detalhe mais importante, que exonera o incorporador direto do recolhimento do ISSQN nesses casos: o que se contrata não é a prestação de serviços (construção da unidade autônoma alienada), mas sim “a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis”, conforme o artigo 43 da Lei n.º 4.591/64 – que regula as incorporações imobiliárias.

Sendo assim, não incide o ISSQN sobre a construção realizada na incorporação direta.

1.4.        O entendimento jurisprudencial quanto ao assunto

Obviamente, atenta às várias cobranças de ISSQN ilegalmente efetuadas pelos Municípios em face da alienação das unidades autônomas provenientes de incorporações diretas, a jurisprudência já pacificou seu entendimento, alinhando-se às explicações delineadas anteriormente.

Nesse sentido, segue recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto ao tema em debate:

TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ISSQN. INCORPORAÇÃO DIRETA. TRIBUTO INDEVIDO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, "não cabe a incidência de ISSQN na incorporação direta, já que o alvo desse imposto é atividade humana prestada em favor de terceiros como fim ou objeto; tributa-se o serviço-fim, nunca o serviço-meio, realizado para alcançar determinada finalidade. As etapas intermediárias são realizadas em benefício do próprio prestador, para que atinja o objetivo final, não podendo, assim, ser tidas como fatos geradores da exação" (REsp 1.166.039/RN, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda Turma, DJe 11/06/10). 2.  Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1356977/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/03/2013, DJe 25/03/2013). [houve grifo].

Não difere de tal posicionamento o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, traduzido em recente acórdão quanto ao tema:

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS. ISS. CONSTRUÇÃO PELO REGIME DA CONTRATAÇÃO DIRETA. 1. No EREsp nº 884778/MT a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que a construção civil pelo regime de contratação direta entre o incorporador e o adquirente de cada unidade autônoma não constitui fato gerador do ISS, pois a hipótese configura contrato de promessa de compra e venda e não contrato de prestação de serviço. Mesmo julgado ainda assentou que, não obstante a Lista de Serviços Anexa ao Decreto-Lei nº 406/68 preveja a incidência de ISS em relação à execução de obra de engenharia por administração, por empreitada ou subempreitada, não é possível equiparar a atividade de empreitada com a de incorporação e como a referida lista é taxativa, não se cogita da incidência do tributo, sendo que a Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/03 (incidente no caso), no item 7.02 apresenta similar redação. 2. Honorários. Minoração. Descabimento. APELAÇÃO DESPROVIDA. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO. (Apelação Cível Nº 70050281385, Segunda Câmara Cível - Serviço de Apoio Jurisdição, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 25/09/2013). [houve grifo].

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Ante a tal panorama, qualquer cobrança de ISSQN realizada pelos Municípios sobre o produto da venda das unidades autônomas resultantes de incorporação direta deve ser repelida judicialmente, exigindo-se, em já tendo havido cobranças anteriores, o devido ressarcimento.

2.       APLICANDO TAL ENTENDIMENTO ÀS UNIDADES AUTÔNOMAS VENDIDASNA PLANTA

Apesar de ter ficado clara a ilegalidade da cobrança de ISSQN sobre as incorporações diretas, alguns Municípios, negligenciando os posicionamentos dos Tribunais ou pretendendo adequá-los aos seus próprios interesses, continuam a tributar com ISSQN as incorporações diretas quando as vendas das unidades autônomas são realizadas antes da conclusão ou mesmo do início da obra (famigeradas vendas “na planta”).

Afirmam os Municípios para tanto que, por ter sido a unidade autônoma vendida antes da conclusão ou do início da sua construção, presume-se que o contrato firmado entre o incorporador e o adquirente abrangia não apenas a compra e venda do imóvel, mas também a sua construção pelo vendedor – como se fosse uma empreitada –, razão pela qual o tributo sobre serviços deveria ser cobrado, incidindo sobre o preço do imóvel.

Todavia, a jurisprudência afastou este posicionamento, estendendo o caráter de incorporação direta às vendas de unidades autônomas ainda “na planta”, desde que o próprio incorporador efetue a construção dos imóveis por sua conta e risco, como se vê do seguinte acórdão, lavrado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL - TRIBUTÁRIO MUNICIPAL - ISS - CONSTRUÇÃO EM TERRENO PRÓPRIO COM ALIENAÇÃO DAS UNIDADES AUTÔNOMAS AINDA "NA PLANTA", COMO SE DIZ NO JARGÃO POPULAR - INEXISTÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A TERCEIROS, MAS APENAS COMPRA E VENDA – INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA DA ESPÉCIE CONTRATAÇÃO DIRETA ENTRE OS ADEQUIRENTES E O CONSTRUTOR – INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR DE ISS – EXEGESE DO SUBITEM 7.02 DA LISTA ANEXA DA LC 116/03 - PRECEDENTES DO TJRS E DO STJ - RESTITUIÇÃO DO INDÉBITO - JUROS MORATÓRIOS A PARTIR DO TRÂNSITO EM JULGADO (CTN, ART. 167, PARÁGRAFO ÚNICO; STJ, SÚM. 188). À UNANIMIDADE, ELEVAR DE OFÍCIO O VALOR DA CAUSA E PROVERAM EM PARTE A APELAÇÃO. (Apelação Cível Nº 70042262725, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 21/11/2012). [houve grifo].

Este entendimento jurisprudencial também é acertado, a nosso ver, por atender literalmente ao que a Lei de Condomínios e Incorporações (Lei n.º 4.591/64) dispõe em seu artigo 30: “Estende-se a condição de incorporador aos proprietários e titulares de direitos aquisitivos que contratem a construção de edifícios que se destinem a constituição em condomínio, sempre que iniciarem as alienações antes da conclusão das obras” [houve grifo].

Logo, resta pacificado e incontroverso que sobre as incorporações realizadas na modalidade de “contratação direta entre os adquirentes e o construtor/incorporador” não incide ISSQN, sejam as vendas das unidades autônomas realizadas antes (“na planta”), durante (entrega futura) ou após a sua construção.

3.      Conclusão:

O debate sobre a incidência ou não do ISSQN sobre as incorporações imobiliárias deve ser encerrado de maneira singela, visto que o assunto está pacificado nas Cortes Judiciais.

Sobre as incorporações indiretas (nas quais o incorporador e o construtor são pessoas diferentes, havendo prestação de serviços do segundo ao primeiro), como explicado anteriormente, deve incidir o mencionado imposto.

Já sobre as incorporações diretas (nas quais o incorporador constrói ou planeja construir no próprio terreno, por sua conta e risco, para posteriormente alienar as unidades autônomas), o ISSQN não deve incidir, sendo manifestamente ilegal sua cobrança do incorporador nestes casos, vez que não existe prestação de serviços aos adquirentes, mas simples compra e venda de imóvel.

4. Referências Bibliográficas

4.1. SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. [Edição Digital].
4.2. BRASIL. Lei n.º 4.591, de 16 de dezembro de 1964.
4.3. BRASIL. Lei Complementar n.º 116, de 31 de julho de 2003.
4.4. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, AgRg no REsp 1356977/MG, Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, 2013.
4.5. RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Apelação Cível n.º 70050281385, Relator: Des. Ricardo Torres Hermann, 2013.
4.6. RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Apelação Cível n.º 70042262725, Relator: Des. Irineu Mariani, 2012.
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Sobre o autor
Maicon Girardi Pasqualon

Advogado. Especialista em Direito Público pela PUC/MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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