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A constitucionalidade das cotas de inserção do negro no ensino superior

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01/05/2003 às 00:00
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4 - AS AÇÕES AFIRMATIVAS

A Convenção Internacional Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 26 de março de 1968 dispôs que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais, tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades".

Desta forma, o país adentrou ao campo das ações afirmativas, assumindo a postura de atuar positivamente na direção de agente transformador para a efetiva igualização de condições aos grupos e indivíduos.

Todavia, pouquíssimo se fez desde de então, para a implementação de tais ações. Mas, a partir da Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia a Intolerância Correlata, que ocorreu no mês de Setembro de 2001, muito tem se avançado na discussão do tema.

Como resultado de diversas conferências internacionais, em 1990, definiram-se sete metas a serem alcançadas até 2015, no intuito de reduzir drasticamente a pobreza e as condições subumanas de vida, quais sejam:

redução da proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza em 50%;

eliminação de disparidades em gênero na educação(2005);

redução da mortalidade infantil das crianças menores de cinco anos em 75%;

redução da mortalidade materna;

acesso universal a serviços de saúde reprodutiva;

implementação de estratégias nacionais para o desenvolvimento sustentado até 2005, de forma a reverter as perdas de recursos ambientais até 2015.

Como se vê, mais uma vez a questão racial ficou de fora. Contudo, a plataforma de Durban (África do Sul) sanou esse vício, com a criação da oitava meta: a redução ou eliminação das defasagens/gaps raciais e étnicos antes de 2015.

Com o programa de ação aprovado em Durban, importantes assuntos, até então ignorados, passaram a compor a pauta das Nações Unidas, tais como: a efetivação da igualdade como inserção social e econômica da comunidade negra; a liberdade de culto às religiões africanas...

Talvez o maior mérito, foi o reconhecimento da necessidade de promover a integração de todas as pessoas discriminadas através de ações positivas por parte das instituições públicas e privadas.

Em julho deste ano, realizou-se na Cidade do México o Primeiro Seminário Regional de Especialistas para América Latina e Caribe sobre o Cumprimento do Programa de Ação Adotado em Durban.

Reiterou-se a necessidade de efetivação das medidas específicas de combate ao racismo contra os grupos vulneráveis, solicitou-se ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos a criação de uma Convenção Interamericana Contra a Discriminação Racial e sugeriu-se que as agências e organizações de desenvolvimento levantem e apresentem dados anuais em relação às metas almejadas.

O cumprimento da plataforma de Durban é um compromisso do Estado brasileiro com a comunidade internacional e com a população afro-descendente do país. Assim, ele tem dado os primeiros passos nessa direção. Tanto, que o governo tem ostentado em conferências e publicidades, que o tema do novo milênio é a "igualdade de oportunidades".

Dessarte, criou-se um grande debate entre os movimentos sociais e o governo brasileiro, visando à mudança do quadro de desigualdade social no país, mormente no âmbito do trabalho e da educação, através das ações afirmativas. Felizmente, diversos Projetos de Lei e até mesmo o programa de governo do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, indicam uma nova legislação atinente ao tema.

Além disso, a sociedade também começa a apresentar indícios de que entende e propugna pela existência das ações afirmativas. Louvável exemplo foi a primeira recomendação extraída da Conferência Estadual da OAB/MG (Poços de Caldas, junho de 2002). Vejamos:

"Reafirmar os compromissos da OAB/MG com a efetividade dos direitos fundamentais da cidadania e exigir ações concretas do Poder Público em favor da inclusão social".

Após a Conferência de Durban, ressoa mais alto, em todos os níveis e setores, o grito pela real promoção de igualdades.

4.1- Direto x Privilégio

Atualmente, calorosas discussões estão sendo travadas a respeitos das ações afirmativas e, principalmente, em relação à criação de cotas, devido à iminência de sua normatização.

Pelo óbvio, o tema não refoge à característica constante em todas discussões jurídicas, havendo parte da doutrina que questiona a legalidade e a conveniência da criação de cotas para a inserção do negro no ensino superior.

Nessa linha, posicionam-se os professores e juristas William Douglas e Sylvio Motta, em artigo publicado pela revista Consulex (Reserva de Vagas em Universidades Públicas - ano VI – nº127 – 30 de abril de 2002, pg. 28 a 30). O texto expõe as questões contrárias às cotas, valendo suscitar e combater os principais argumentos.

Os autores defendem a inconstitucionalidade de se distinguir as pessoas pela cor da pele.

Ora, a grande maioria da doutrina em todo mundo consente em relação à realização efetiva do princípio da igualdade em consonância com os ideais democráticos, através de medidas positivas.

Se a intenção do princípio fosse manter a situação, sua existência seria dispensável. Ele existe para promover a igualdade, conforme se depreende de toda a constituição, como alhures vergastado.

Estranhamente, ao final do mesmo artigo, em referência e defesa da criação de cotas a população de baixa renda, manifestam-se assim os autores, anotando que "nossas leis estão repletas de tratamentos diferenciados em prol da igualdade: tributos diferenciados, usucapiões especiais, Defensoria Pública, proteções especiais ao índio, ao idoso à criança, ao adolescente, etc".

Então, a diferenciação pela cor da pele também não pode ser vista como inconstitucional, uma vez que a lógica capta perfeitamente a diversidade de situações. E valendo-se de citação do próprio artigo ora questionado, vale reiterar a seguinte passagem bíblica: "não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfermos" -Jesus (Lucas, 5:31).

Outro argumento vastamente utilizado é de que a criação das cotas e das demais ações afirmativas seria a assunção de inferioridade da raça beneficiada, o que seria intolerável.

Contudo, não há que se considerar essa "defesa" quimera à raça negra. Afinal, apesar de não se relacionar com a natureza das raças, que não revela desequiparação, a raça negra, por medidas artificiais, foi realmente colocada em situação de inferioridade. Os dados e o dia a dia comprovam a condição subumana e inferior de vida da grande maioria dos negros.

Impugnam-se as cotas também, por que existiriam em detrimento de outros grupos discriminados, tais como os índios. Acontece, que a justiça para com um grupo determinado apenas criaria um valoroso precedente a outros grupos discriminados, não impedindo em nada, ao contrário, ajudando na conquista de seus direitos.

Além disso, defende-se que "utilizar a desculpa do passado para promover a discriminação para o futuro é apenas reincidir em erros pretéritos, tentar corrigir uma distorção criando novas ou repetindo-as apenas em sentido contrário".

O que é colocado como desculpa do passado, são quase quatrocentos anos de escravidão. Ocorre que o equívoco não se encontra apenas no desprezo em relação a problema tão grave, mas também no tempo verbal.

O erro não ocorreu. Ele ainda hoje é reiterado diariamente. A exclusão continua, pelo que, aqui, defende-se não uma espécie de vingança, mas, apenas, a inserção de todos na sociedade conforme determina a Constituição.

Por derradeiro, menciona-se provavelmente o mais usado argumento em desfavor das cotas, qual seja a suposta impossibilidade de se aferir quem é, ou não, negro.

Inicialmente, o Direito jamais pode se escusar de regular uma situação em vista da possibilidade de existência de fraude. Ninguém contesta a existência do negro. Assim, se existe alguém a quem é dado um direito, cabe ao legislador criar a melhor forma de garanti-lo.

A proposta de cotas deve ser implantada e aperfeiçoada, até prova em contrário. Não é por que no Brasil existem milhares de sonegadores, que se defenda a extinção da cobrança de impostos, mas tão somente a evolução dos meios de cobrança e controle.

Ademais, o ideal do branqueamento é tão forte, que dificilmente um branco se assumiria negro. E ainda que haja, e ao certo acontecerá, diversas soluções podem ser colocadas, como um inquérito genealógico coadunando com a percepção visual.

A verdade, é que nunca se discutiu quem seria o negro para se discriminar. Agora, para se reparar alega-se dificuldades suficientes para que seja suprimido um direito certo. Negro, é quem é tratado como negro.

4.2- A Educação e as Cotas no Ingresso ao Ensino Superior como Fomentadoras de Igualdade

O homem é um ser inacabado, incompleto, assim como uma árvore ou um animal. A diferença, segundo o cultuado educador Paulo Freire, é que o ser humano tem essa consciência e assim busca incessantemente ser mais (Educação e Mudança, pág.27).

Donde conclui-se, que um Estado do Bem Estar Social, como o Brasil, jamais pode escusar-se de ofertar educação a toda população.

Em uma nação que, em tese, pauta-se pela ordem em vistas ao progresso, a educação é primordial, a medida em que ela caminha lado a lado com a idéia de melhoria, conforme mostra a história. Por definição, a "educação é a prática dos meios aptos para o desenvolvimento das possibilidades humanas" (Octavi Fullat, Filosofia da Educação, pg. 149).

Sendo a educação o principal processo socializador, quem é colocado à margem do meio social deixa de progredir e entra em um ciclo que o afasta cada vez mais do meio. Por isso, ao se falar em educação, no seio de uma democracia, que inevitavelmente a humaniza, imperiosa se torna a universalização da educação a todos, até o limite das reais possibilidades de cada indivíduo.

Nessa esteira, dispôs a Constituição Federal de 1988, que "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade".

Agora, cumpre a árdua tarefa de ultrapassar a enfática disposição constitucional e efetivá-la, com consciência de sua importância e da infinidade de positivas conseqüências que podem ser geradas pela educação.

Uma dessas possibilidades, é o atendimento das justas necessidades e a inserção social de grande parcela da população, através da promoção da igualdade entre pretos e brancos.

Com certeza, uma das principais formas de se alcançar essa situação é a criação de cotas para ingresso de negros no ensino superior.

Afinal, a universidade tem função de destaque no prol da sociedade e da cultura. Tanto, que um dos seus principais compromissos é estender a toda a comunidade as idéias e as ações nela cultivadas. O ensino superior não acaba em si e os privilegiados alunos têm um dever para com a sociedade.

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Objetiva-se também a formação de seres humanos capazes de refletir em profundidade as questões de sua especialidade e os problemas sociais de maneira holística.

Diante disso, espera-se que com a inserção efetiva de negros na universidade, em quantidade suficiente, crie-se uma elite negra intelectual atuante e consciente do papel de fundo que sua educação superior representa à comunidade negra e, em última instância, aos cidadãos de toda a democracia.

Nessa área, experiências de sucesso foram e estão sendo realizadas em outros países.

Na Califórnia, Estados Unidos, foram adotados sistemas de cotas durante mais de 20(vinte) anos, e realmente formou-se uma elite intelectual negra, que tem impulsionado o ingresso de outros negros, e têm sabido cobrar a igualização. Os Estados Unidos ainda mantêm universidades para negros, sendo duas públicas.

Na Malásia, implementou-se política de cotas para malaios puros, perante o fato de que somente os descendentes de chineses chegavam a faculdade. Satisfatórios resultados já foram alcançados.

Na Belgica, foram concedidas bolsas de formação a toda a população negra, com duração de um ano. Após seleção, os melhores alunos ganharam bolsas e entraram nas faculdades. Vários intelectuais negros saíram dessa iniciativa, inclusive o Professor de Antropologia da USP, Kabengele Munanga.

Tal exemplo derroga outra afirmação contraria as cotas, a de que cairiam os níveis dos profissionais e da universidade.

Como explicou o próprio Kabengele, no Seminário Nacional de Ações Afirmativas promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, as universidades dispõem de recursos para a eventual necessidade de complementação da formação. Ademais, o diploma não garante o emprego. Logo, os negros, bem como qualquer outro universitário, se empenharão no aperfeiçoamento.

Hodiernamente, sabe-se o acerto das palavras da Rainha Catarina II da Rússia, quando asseverou que "a continuidade dos privilégios da realeza está na razão direta da ignorância do povo".

Cientes disso, o papel da educação contra o racismo ganhou relevo nas discussões de Durban. Defendeu-se que a educação nos direitos humanos deve tornar-se uma constante nos programas de instrução.

Todavia, cumpre anotar a importância de voltar-se a educação para a superação das dificuldades e não para a confrontação dos indivíduos ou grupos sociais.

Somente com o desenvolvimento de uma consciência crítica o homem negro poderá transformar a realidade conforme as determinações constitucionais. Sobre isso, ensina Paulo Freire:

Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos, para saber o que seremos (Educação e Mudança, pág.32).

4.3 - A Temporalidade das Cotas

O princípio constitucional da igualdade posta-se no campo jurídico, ao contrário da ideologia da igualdade, que está mais afeita à filosofia. Logo, a solução do primeiro se dará de acordo com o sistema jurídico. Conforme explica Cármem Lúcia, "o princípio jurídico põe-se no âmbito do sistema normativo da sociedade estatal e é nessa seara que busca o seu continente e o seu conteúdo" (O princípio Constitucional da igualdade, pág 13).

Como o sistema jurídico e a sociedade na qual ele atua são mutantes, o princípio da igualdade pode ser alterado e, além disso, ainda que permaneça o mesmo, poderá variar sua incidência ou não conforme a realidade.

Por isso, faz-se necessário árduo trabalho de compreensão de sua estrutura conforme o direito posto. Mas, cumprida tal tarefa, a maior dificuldade é aferir como se dará a subsunção do princípio à realidade.

Mais ainda, por ser o princípio em tela um agente transformador, cumpre estabelecer até quando é válida e legal a sua aplicação, sob pena de se causar novas desigualdades após a satisfação de suas finalidades.

Resta claro, que hoje o negro está em situação inferior em comparação às outras raças, pelo que faz jus à criação de ações afirmativas decorrentes do princípio constitucional da igualdade. Contudo, espera-se, sendo essa a única razão de ser do princípio, que no menor tempo possível sejam igualadas as oportunidades, e, por conseguinte, percam as ações afirmativas o seu respaldo jurídico.

Como anteriormente salientado, assim ocorreu na Califórnia, Estados Unidos, onde as políticas de cotas permaneceram por vinte anos, alcançando excelentes resultados.

No Brasil, o prazo também será limitado ao tempo de conquista de êxito. No projeto de Lei do senador José Sarney, por exemplo, a reserva de vinte por cento de cota mínima para os negros nas universidades, deverá durar, em princípio, cinqüenta anos, devendo ser a cada dez anos reavaliada a necessidade de mantença da política.

Em verdade, quanto maior a mobilização das instituições públicas, privadas e de toda a sociedade para a efetiva inserção social do negro, menor será o prazo de duração de quaisquer ações afirmativa nesse sentido.

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Sobre o autor
Marcelo Sherman Amorim

acadêmico de Direito da Puc-Minas, Unidade Contagem.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Marcelo Sherman. A constitucionalidade das cotas de inserção do negro no ensino superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4032. Acesso em: 26 abr. 2024.

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