4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto estudado, verifica-se que o fenômeno do uso de drogas vai ao encontro das normas sociais e se caracteriza como um comportamento desviante. Diante da Lei, o usuário ou dependente é um sujeito transgressor e também um problema de saúde pública. É uma questão social, onde o sujeito entra no cenário jurídico para ser penalizado por sua inadequação social, as expectativas não são claras. A assistência jurídica disponibilizada é um procedimento psicossocial, coercitivo, realizado através de um programa de assistência psicossocial, onde a equipe do SERUQ se destaca pela inovação.
Descrever suas ações e avaliar seu impacto é complexo, pois o efeito social do uso de drogas se constitui a partir de uma série de variáveis interligadas tão abrangentes, que falar em proteção, prevenção e reinserção no contexto jurídico requer uma reinvenção de modelo psicossocial, sendo necessário adotar uma postura que mescle: disseminação de informação; reflexão; problematização do uso; desenvolvimento de projetos de vida e, ainda, possibilite o cumprimento da pena, ou seja, o SERUQ se estabelece como executor da pena e fomentador de redes sociais, sem apoio do executivo e sem competência formal estabelecida. Ressalta-se que durante a intervenção os jurisdicionados são tratados pela equipe do SERUQ como beneficiários e, não réus/jurisdicionados, um paradoxo que, no contexto, é o primeiro passo para a conformidade, que deve ser motivada como processo de adequação social elevando o sujeito a cidadão.
Foi possível verificar que a estruturação dessa intervenção diferenciada requer a participação de vários profissionais e a utilização de técnicas, cujo aporte teórico precisa ser abandonado, para dar lugar à experiência prática dos profissionais. A Lei determina a participação em programa socioeducativo (art. 28-III, Lei 11.342/06), o CNJ (provimento 4/2010) estabelece a não intervenção terapêutica, mas a intervenção. O SERUQ assume, então, uma competência de assessoria que torna sua ação investigativa, avaliativa, reflexiva, psicossocial e executora, além de que o usuário/dependente é motivado e informado sobre questões sociais, legais e de saúde que envolve o uso.
Modificar o comportamento de usar drogas é um ideal a ser alcançado, considerando a certeza de uma situação de risco e vulnerabilidade, portanto, motivar a mudança é o desafio. Todo esse procedimento se encontra sob a tutela do Judiciário. É um novo modelo, piloto, onde se almeja “obrigar” o sujeito à tomada de consciência e reflexão sobre droga em sua vida e, possíveis danos. O modelo de intervenção é único, a metodologia estabelecida surge de um longo processo de estudo e capacitação dos profissionais da equipe do SERUQ, para a criação de uma intervenção que satisfaça um modelo de psicologia judicial, assistência social e processo socioeducativo.
O levantamento do perfil demográfico permite realizar conclusões mais consistentes sobre esses sujeitos, porque indicam o modo de vida e a presença de possíveis fatores comuns que facilitam a intervenção. Destaca-se que a maioria dos participantes jovens, são homens e são dependentes da família. A falta de autonomia é latente no grupo, mesmo entre os que moram sozinhos e trabalham, a dependência financeira está presente. Os conflitos familiares e o estresse são relatados pelo grupo assim como a dificuldade de emprego e oportunidades, vários estudos trazem esses fatores como agravantes da vulnerabilidade e risco social. (CECCONELLO; 2003; GIGLIOTTI e GUIMARÃES, 2007; BRASIL, 2012).
É possível estabelecer uma relação causal entre as teorias psicossociais apresentadas e o comportamento dos jurisdicionados, pois esses homens frustrados não encontram na estrutura social a possibilidade de integração. O comportamento anômico se caracteriza na tensão entre a estrutura cultural e a social quando as oportunidades não estão lá. O acesso ao sucesso não está disponível, o usuário se frustra diante da não existência do seu lugar, acreditando que estava garantido. Ferro (2004) descreve esse descompasso que leva o sujeito a negar os valores sociais, adotando um comportamento desviante, adapta-se através da evasão, se exclui da sociedade (FERRO, 2004; BARATTA, 2002).
A prática psicossocial disponibilizada pela SERUQ se apresenta como um espaço psicossocial em construção capaz de avaliar o risco e absorver a demanda. Os critérios utilizados e quais os indicadores de risco avaliados não ficam claros. Durante a intervenção, os temas são trazidos pela percepção da equipe diante da experiência pessoal de cada membro e, dos fatores de risco e vulnerabilidade prescritos pelos estudos e levantamentos feitos SISNAD (2006), ao estabelecer medidas para a prevenção do uso (BRASIL, 2012).
A intervenção se mostrou eficaz para o cumprimento da determinação legal dentro do prazo. Ao se analisar através do follow up as mudanças ocorridas aos usuários, são significativas e representam a eficiência do programa diante da complexidade do tema e sua adequação. Apenas 30% do grupo estava disponível ao estudo do impacto, no entanto, essa parcela é representativa do grupo. Houve mudanças no uso, na frequência, na autonomia e na percepção diante da vida. Os projetos trazidos se mostram consistentes. Verificam-se mudanças, principalmente, na relação com as drogas associada à relação com o trabalho. A intervenção em grupo, na avaliação dos usuários, foi importante para motivação e percepção da vida. Ressaltaram o último encontro com o grupo do HIP-HOP – proativo, onde a troca de experiências teve muita importância, assim, como aspectos de saúde que eram desconhecidos. Ressalta-se que o sujeito que aparentemente não teve mudanças, revela uma alteração significativa no seu uso de drogas quanto à frequência (3ª momento – instrumento) e comparece ao follow up.
O delineamento longitudinal, do primeiro estudo realizado para avaliação do programa, tenta atráves de três momentos de coleta verificar o impacto do programa socioeducativo único, desenvolvido pelo SERUQ. A perda de 70% dos usuários no terceiro momento (follow-up), apesar de representativa, limita sua projeção.
Esse grupo revela que ao entrar no mercado formal de trabalho modificou o uso, aceita as normas sociais e encontra sua oportunidade, o que o conduz para um novo modelo de adaptação, da evasão para a conformidade. Aceita os fins culturais e os meios institucionais e, se inclui (FERRO, 2004; BARATTA, 2002, RIBEIRO). As causas podem ser externas ou internas, mas influenciam na conduta do sujeito que sai da marginalidade, dando um novo significado as suas escolhas e demandas. Alcançando um estado de equilíbrio e bem estar (JESUS, 2010, MACHADO, 2006), que possivelmente encontrava no uso de drogas.
Diante das possiblidades, considera-se que os objetivos foram alcançados, o estudo é pequeno, no entanto, é possível verificar o impacto da intervenção e descrevê-la. As categorias identificadas confirmam os indicadores trazidos pelo SISNAD, 2006 e, expressam uma avaliação significativamente positiva do trabalho, refletindo efetividade no processo de mudança. A perda de participantes não significa, necessariamente, falta de impacto da intervenção.
Os indicadores sócios demográficos permitiram revelar características específicas desse grupo, assim como, o tipo de consumo, conhecer as variáveis facilita a intervenção e prevenção, assim o resultado deste estudo poderá ser utilizado como parâmetro para o planejamento outras intervenções.
Pelos resultados encontrados ao final da discussão e análise, considera-se o estudo como exploratório, se apresenta como uma tentativa de contribuir para a compreensão desse contexto, que embora estimulante deixa antevir muitas questões a serem abordadas no futuro.
Recomenda-se que novas pesquisas sejam elaboradas, considerando uma amostra maior. E, novos grupos sejam avaliados para validação do instrumento, permitindo a construção de novos paradigmas e a identificação de indicadores de avaliação, garantido, assim, a implantação, efetivação e melhoria dos programas, ações e atividades de redução de danos (prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social). Recomenda-se a redução para três meses para realização do follow-up, diante da perda de participantes nesta fase.
Referências
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Notas
(1] SERUQ- Serviço de assessoramento a magistrados sobre usuários de drogas – a competência de atuação trabalho esta definida no art. 244, resolução 13/12 do TJDFT abrange atendimento as 28 Regiões Administrativas do Distrito Federal, assistidas por 21 Juizados Especiais Criminais ou de Competência Geral e quatro Varas de Entorpecentes e Contravenções Penais, instalados em um total de doze Fóruns.
[2] O conceito de anomia de MERTON configura um desenvolvimento da concepção de DURKHEIM, em sua obra o suicídio: “... de relativa ausência de normas em uma sociedade ou grupo”. Em Robert Merton, não obstante as diferentes formulações empregadas prevalecem à ideia de “ruptura da estrutura cultural”. As teorias da anomia de Durkheim e de Robert Merton, não são equivalentes, para ele anomia não é apenas “desmoronamento” ou “crise”, a estrutura sociocultural exerce uma pressão sobre os membros da sociedade que pode levar à anomia e ao comportamento desviante, entre os quais o considerado criminoso. Na percepção de DURKHEIM, o “que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto que esta atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, certo nível que talvez não seja impossível fixar de acordo com as regras precedentes (FERRO, 2004)
[3] Questionário ASSIST- teste de triagem para envolvimento com álcool, tabaco e outras substancias, desenvolvido pela WHO (Henrique, De Micheli, Boerngen, Lacerda, Formigoni, 2004), cujo objetivo é verificar a frequência do uso de substâncias químicas lícitas e ilícitas em inglês significa dar assistência.