O prazo improrrogável do § 4º, do art. 6º, da Lei 11.101/2005 e os créditos trabalhistas

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29/06/2015 às 15:40
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O objeto da pesquisa é o modo como deve ser interpretado o § 4º, do art. 6º, da Lei 11.101/2005, que prevê o prazo “improrrogável” de 180 (cento e oitenta) dias de suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor.

INTRODUÇÃO

A Lei 11.101/2005 (LRF), que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, veio substituir a Lei de Falências de 1945 (Decreto-Lei nº 7.661/45) que, em função dos inúmeros avanços e transformações econômicas, sociais e políticas pelas quais passou o mundo a partir da segunda metade do Século XX, não mais se mostrava como instrumento legal adequado a permitir a recuperação da saúde de uma empresa passando por uma crise econômico-financeira[1].

Como é de conhecimento geral, a recuperação judicial é uma ferramenta que permite ao empresário que atravessa por uma crise econômico-financeira a se reestruturar de forma a superar tal momento de crise e, consequentemente, permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Com isso, promove-se a preservação da empresa, bem como a sua função social e o estimulo à atividade econômica, conforme prevê o art. 47, da Lei 11.101/2005.

É importante notar que a recuperação judicial é o instrumento próprio para aquelas sociedades empresárias que, apesar de enfrentarem um momento de turbulência, ainda apresentam capacidade de soerguer o seu negócio caso recebam alguma ajuda legal. Do contrário, em situações em que não há mais tal possibilidade, o caso será de falência.

Necessário se faz registrar que um dos principais benefícios concedidos ao empresário quando da concessão do deferimento do processamento de recuperação judicial é a suspensão de todas as ações e execuções que correm contra ele, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário, conforme dita o art. 6º, da Lei 11.101/2005.

Essa suspensão, de acordo o parágrafo quarto, do art. 6º, da Lei 11.101/2005, ocorrerá durante o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contados do deferimento do processamento de recuperação.

Assim, transcorrido o referido prazo de 180 (cento e oitenta) dias, em tese, as execuções individuais contra a sociedade empresária poderiam ser retomadas, inclusive as execuções trabalhistas.

Entretanto, há entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em homenagem ao princípio da preservação da empresa, no sentido de que o simples decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias entre o deferimento e a aprovação do plano de recuperação judicial não acarreta a retomada das execuções individuais quando à pessoa jurídica, ou seus sócios e administradores, não pode ser imputada a causa da demora.[2]

Além disso, também tem decidido o Superior Tribunal de Justiça que uma vez aprovado o plano de recuperação judicial, os créditos deverão ser satisfeitos de acordo com as condições ali estipuladas, não sendo possível que as varas trabalhistas executem individualmente créditos trabalhistas por meio de execuções individuais, sob pena de frustrar todo o sentido do instituto de recuperação judicial e se inviabilizar a recuperação judicial da empresa, bem como também correr-se o risco de ser feito um adimplemento dos créditos trabalhistas em menor quantidade do que caso a empresa pudesse se recuperar do modo como previsto no plano.

Ocorre que há inúmeras decisões proferidas pela Justiça Trabalhista que interpretam o § 4º, do art. 6º, da Lei 11.101/2005, de modo literal e, transcorrido o referido prazo, retomam a execução individual dos créditos trabalhistas no próprio juízo laboral, sem obedecer ao que estabelece o plano de recuperação judicial.

Desse modo, nota-se que em tais situações há um conflito de valores que devem ser ponderados. Nesse sentido, importante transcrever o seguinte excerto esclarecedor do voto do Ministro Luiz Felipe Salomão, proferido no CC 68.173/SP, no dia 26/11/2008[3], in verbis:

É que existem dois valores a serem ponderados, a manutenção ou tentativa de soerguimento da empresa em recuperação, com todas as consequências sociais e econômicas dai decorrentes (como, por exemplo, a manutenção de empregos e o giro comercial da recuperanda), e, de outro lado, o pagamento dos créditos trabalhistas reconhecidos perante a justiça laboral.

Ante o exposto, percebe-se a necessidade de que seja discutido o modo como deve ser interpretado o art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005, bem como discorrer acerca da tensão entre o princípio da preservação da empresa e o modo como devem ser adimplidos os créditos trabalhistas reconhecidos pela justiça laboral.

1 BREVES NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DO DIREITO COMERCIAL E DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Para um entendimento mais adequado da história da recuperação judicial, necessário se faz, primeiramente, discorrermos brevemente sobre a história do direito comercial, bem como sobre a atividade do comércio em si.

Como é cediço, o Direito é uma ciência social que por meio de normas jurídicas busca harmonizar o convívio social. Para cada comportamento o Direito estabelece um determinado resultado, em outras palavras, a norma jurídica estabelece que caso ocorra certa situação deverá incidir tal comando. Assim confere segurança jurídica para as relações sociais, já que as pessoas sabem de antemão as consequências de seus atos e também das outras com que convive.

No que se refere ao direito comercial, ele igualmente tem a função de normatizar fatos da vida social, entretanto, como é um ramo especializado do Direito, preocupar-se-á com os fatos que digam respeito, precipuamente, à atividade comercial. Por essa razão, não há como deixar de notar que o aparecimento do direito comercial está umbilicalmente ligado ao surgimento da própria atividade comercial. Nesse passo, Fran Martins[4] preconiza:

Ao estudar-se o desenvolvimento do Direito Comercial não se pode isolá-lo da evolução do comércio. Surgindo para regular relações entre comerciantes, só mais tarde tendo um âmbito maior, de modo a sobrepujar-se ao comércio, para abranger mesmo relações jurídicas de caráter civil, nos primeiros tempos o Direito Comercial foi como que uma decorrência das transações econômicas de indivíduos que tinham por profissão fazer circular as mercadorias. Daí a necessidade de recorrer à história do comércio para conhecer-se a evolução do Direito Comercial.

Portanto, deve-se entender que é a atividade comercial e a necessidade de regulá-la é que irá fazer com que surja a necessidade de um direito comercial.                

Muito se discute entre os comercialistas a respeito de quando teria efetivamente surgido o direito comercial. Como consenso podemos afirmar que os principais doutrinadores apontam para o nascimento de algo que já se pode chamar de direito comercial na Idade Média, nas cidades italianas que realizavam o comércio marítimo de mercadorias. A esse respeito, Fran Martins[5] assevera que:

O Direito Comercial como um conjunto de normas jurídicas especiais, diversas do Direito Civil, para regular as atividades profissionais dos comerciantes, tem a sua origem na Idade Média. Desenvolvendo-se o comércio marítimo no Mediterrâneo, as cidades que ficavam situadas à beira-mar tornaram-se centros comerciais importantes e poderosos.

No mesmo sentido, também apontando as raízes do direito comercial na Idade Média, André Luiz Santa Cruz Ramos[6] preleciona que:

Durante a Idade Média, todavia, o comércio já atingira um estágio mais avançado, e não era mais uma característica apenas de alguns povos, mas de todos eles. É justamente nessa época que se costuma apontar o surgimento das raízes do direito comercial, ou seja, do surgimento de um regime jurídico específico para a disciplina das relações mercantis.

Importante destacar que em momento algum se nega que houve regramentos sobre o comércio já na Antiguidade Grega e Romana, assim como em diversos outros povos, como, por exemplo, o povo hindu, babilônico, fenício, sumério.

É de conhecimento geral que, na Antiguidade, diversas legislações trataram de situações envolvendo o comércio e a troca de mercadorias, entre outras relações mercantis, como, por exemplo, o Código de Ur-Nammu, o Código de Lipit-Ishtar, o Código de Eshnunna e o Código de Hamurabi.[7]

Entretanto, nessa época não se atesta a existência de um corpo de leis especializado e sistematizado que tratasse do direito comercial e, por isso, não se pode falar propriamente de um direito comercial autônomo, que regulasse especificamente a relação entre os comerciantes. Discorrendo acerca das normas de povos antigos, antes da Idade Média, Rubens Requião[8] observa que:

O direito comercial surgiu, fragmentariamente, na Idade Média, pela imposição do desenvolvimento do tráfico mercantil. É compreensível que nas civilizações antigas, entre as regras rudimentares do direito imperante, surgissem algumas para regular certas atividades econômicas. Os historiadores encontram normas dessa natureza no Código de Manu, na Índia; as pesquisas arqueológicas, que revelaram a Babilônia aos nossos olhos, acresceram à coleção do Museu do Louvre a pedra em que foi esculpido há cerca de dois anos a.C. o Código do Rei Hammurabi, tido como a primeira codificação de leis comerciais. São conhecidas diversas regras jurídicas, regulando instituições de direito comercial marítimo, que os romanos acolheram dos fenícios, denominadas Lex Rhodia de lactu (alijamento), ou institutos como o foenus nauticum (câmbio marítimo).

Mas essas normas ou regras de natureza legal não chegaram a formar um corpo sistematizado, a que se pudesse denominar "direito comercial". Nem os romanos o formularam. Roma, devido à organização social estruturada precipuamente sobre a propriedade e atividade rurais, prescindiu de um direito especializado para regular as atividades mercantis. Os comerciantes, geralmente estrangeiros, respondiam perante o praetor peregrinus, que a eles aplicava o jus gentium.

Portanto, assevera-se que é ponto pacífico na doutrina que o surgimento do direito comercial se deu na Idade Média, nas cidades italianas que praticavam o comércio marítimo, como, por exemplo, Gênova, Veneza, Pisa, Florença, Amalfi.

Feita essa breve síntese sobre o surgimento do direito comercial, importante apresentar um breve histórico sobre a recuperação judicial.

A recuperação judicial é instituto que tem como objetivo reerguer uma sociedade empresária que atravessa uma crise econômico-financeira.

A legislação, com base no fato já constatado empiricamente de que as empresas promovem a geração de riquezas e empregos, entende que é preferível tentar recuperar uma sociedade comercial que está com dificuldades de cumprir com suas obrigações por meio da concessão de alguns favores legais do que permitir a sua quebra, que acarreta consequências nocivas econômicas e sociais.

Mister se faz destacar que nos primórdios do direito comercial não se verificava um instituto nesse sentido, o que é bastante compreensível, uma vez que, nessa quadra da história, o devedor era visto como um verdadeiro transgressor da ordem social.

Por essa razão, as execuções das dívidas –  na maioria das civilizações de que se tem notícia – incluíam penas que infligiam lesão ao corpo do devedor ou mesmo a sua morte.

Em Roma, por exemplo, a Lei das XII Tábuas permitia ao credor fazer justiça com as próprias mãos para ver satisfeito o seu crédito. Nesse diapasão, importante trazer à baila um dispositivo bastante cruel da referida lei romana, mencionado por João Batista de Souza Lima[9], em seu livro As mais antigas normas de direito, in verbis:

Se são muitos os credores é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre.

O Código de Hamurábi[10], uma das legislações mais antigas de que se tem conhecimento na historiografia, previa a servidão por dívidas, conforme pode ser comprovado em seu art. 117, Capítulo VIII, intitulado Das sociedades, ipsis litteris:

Art. 117 - Se uma dívida pesa sobre um homem livre e ele vendeu sua esposa, seu filho ou sua filha ou entregou-se em serviço pela dívida: trabalharão durante três anos na casa de seu comprador ou daquele que os tem em sujeição. No quarto ano será feita a sua libertação.

Assim, diante de tamanha brutalidade com que se tratava o devedor, natural que não se observasse um instituto que possibilitasse ao empresário com dificuldades econômico-financeiras vantagens para soerguer o seu negócio. Nesse rumo, Mauricio Moreira Mendonça de Menezes e Carlos Martins Neto[11] expõem com clareza exemplar:

Esclareça-se que o estudo do atual perfil do direito falimentar e recuperacional impõe a desconsideração do exame mais aprofundado do passado remoto acerca da disciplina jurídica da crise vivenciada pelo empresário, porquanto, sem dúvida, os institutos praticados na Antiguidade foram desinfluentes para o desenvolvimento da matéria.

Com efeito, inexistiu na Antiguidade qualquer instituto jurídico que disciplinasse a execução coletiva ou que promovesse o saneamento financeiro do devedor.

Entretanto, em que pese a inexistência da recuperação judicial na Antiguidade como nos moldes da atualidade, não se deve olvidar que alguns comercialistas identificam nos institutos romanos praescriptio mora, pactum remissorium e pactum ut minus solvatu uma espécie de raiz histórica da recuperação judicial.

De acordo com Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn[12], pelo instituto praescritpio mora o Imperador Romano poderia, por liberalidade, dilatar o prazo para que o devedor promovesse a quitação dos seus débitos.

Já os institutos do pacto remissorium e do pactum ut minus solvatu, tratavam da possibilidade de os credores entrarem em acordo para que a dívida do credor tivesse alguma redução ou se estabelecesse alguma condição diferenciada de pagamento para que assim o devedor pudesse honrar com suas obrigações[13].

Destaca-se que apesar desses institutos serem de alguma forma os rudimentos da recuperação judicial com ela não pode ser confundida, uma vez que neles não há nenhuma preocupação em recuperar a atividade produtiva desenvolvida pelo comerciante, mas sim uma forma de que o credor receba o que é seu de direito.

Além disso, destaca-se que tais institutos romanos não tinham sequer uma conotação mercantil, sendo que ao “direito comercial” romano se aplicava o jus gentium (direito das gentes ou direito dos povos). Neste raciocínio, Bruco Haack Villar[14] leciona:

Entretanto, pelas próprias características da sociedade e do direito romanos esses institutos jamais tiveram uma conotação mercantil, que as aproximasse do caráter empresarial da moderna recuperação judicial. Entre os romanos não encontramos um Direito Comercial, cujo papel foi em grande parte exercido pelo ius gentium.

Portanto, reitera-se que não se pode buscar um antecedente histórico na Antiguidade do instituto da recuperação judicial, tendo como consenso os doutrinadores comercialistas que as práticas que se assemelhavam à recuperação judicial e à falência têm sua gênese na Baixa Idade Média, entre os séculos XII à XV. A esse respeito, Franco e Sztajn[15] lecionam:

É assim que, no século XIII, substituem-se as sanções pessoais de execução privada pela decisão coletiva da maioria dos credores, formando um pacto comum com o falido de molde a obter melhor satisfação dos créditos. O acordo era homologado pelo magistrado (cônsul) que presidia o processo e, em consequência, a par de um salvo-conduto que o falido que fugira, a fim de que retornasse, seus bens eram devolvidos para que pudesse se compor com os credores. Para a concessão da concordata bastava a anuência da maioria dos credores, ora por créditos, ora por cabeça, dando-se ao credor dissidente a possibilidade de oposição.

O grande comercialista italiano, Alfredo Rocco [16], também identifica na Baixa Idade Média o surgimento da recuperação judicial, mais precisamente no século XIII, fruto dos usos e costumes das cidades italianas medievais.

Diante do exposto, resta demonstrado que o surgimento do direito comercial vincula-se ao próprio surgimento da atividade comercial. Entretanto, como visto alhures, não se pode identificar um direito comercial na Antiguidade, isto porque não se apresentava como um corpo sistemático de legislações que se aplicariam aos comerciantes.

É no período da Idade Média com o florescimento das cidades italianas por meio do comércio marítimo que surge o direito comercial como direito autônomo, sistematizado como um corpo de leis de aplicação exclusiva àqueles que realizavam o comércio. Nesse mesmo período da história surge também o instituto da recuperação judicial, fruto de usos e costumes desses comerciantes italianos.

2 AS RELAÇÕES ENTRE O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E A ECONOMIA: A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

É ponto pacífico, atualmente, entre os estudiosos do Direito e da Economia que estas duas disciplinas estão em permanente interlocução, sendo que uma influencia a outra a todo instante.

Há vários teóricos dedicados ao estudo do profundo tema da relação entre a Economia e o Direito, podendo ser citados como expoentes da matéria: Ronald Coase, Guido Calabresi, Richard Posner e Oliver Williamson.

No presente estudo não se debruçará sobre o tema nesse nível de profundidade. O que importa nesse presente capítulo é demonstrar a importância do instituto da recuperação judicial para a geração de riqueza de toda a sociedade na qual a empresa está inserida, para a manutenção dos empregos e para o desenvolvimento econômico e social.

Como é cediço, a riqueza de uma sociedade é produzida, grosso modo, por trocas comerciais entre os diversos agentes nela inseridos. Cada agente possui interesse por determinado bem, que é suprido por outro agente, que também tem interesse em outros bens e assim sucessivamente. Desse modo, há uma constante necessidade de trocas comerciais entre os agentes e essas trocas promovem, sem dúvida alguma, o avanço econômico e social da humanidade.

Isto porque, não se deve esquecer que as trocas dos bens entre esses diversos agentes é marcada por constante competição – em mercados saudáveis – de modo que há sempre interesse em oferecer produtos e serviços melhores por preços menores, de forma a arrebatar maior quantidade de compradores e clientes e, consequentemente, maior lucro. À guisa de corroboração, é salutar trazer à baila a lição de Gladston Mamede:[17]

A história da humanidade pode ser contada como a história do desenvolvimento econômico ou, preferindo-se, como a história das iniciativas de desenvolvimento econômico, esforços individuais para auferir riqueza, benefícios pessoais, que acabaram beneficiando toda a humanidade, dando-lhe desenvolvimento e prosperidade. O esforço de incontáveis indivíduos pela riqueza conduziu a sociedade à criação da ideia e da prática de mercado – do espaço de negociação (e negócio é um ato jurídico por excelência) –e, neste espaço de negociação, a busca obstinada por vantagens de mercados (good will of trade). A livre iniciativa, mesmo tendo por motor o comportamento egoístico, agonístico, produziu resultados que, com o passar dos anos, aproveitaram-se para toda a humanidade: o contrato, a matemática, o arado, os diques e a irrigação, a siderurgia, a navegação comercial etc. Em suma, é possível contar a história da humanidade pela ótica da empresa (da organização dos meios e processos de produção), sob a ótica do comércio.

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Não se deve olvidar que para oferecer produtos e serviços para outras pessoas, o indivíduo, normalmente, procura a ajuda de outra pessoa para empreender junto com ele e, com isso, juntar esforços para atuar de forma mais produtiva, conquistando maior excelência na sua atividade e também dividindo os custos a ela inerentes.

Em toda a história não se verifica organizações comerciais duradouras, que realmente trouxeram algum impacto tecnológico, econômico e social para a sociedade, que sejam constituídas por único indivíduo.

Portanto, para exercer a empresa, normalmente, ocorrerá a formação de uma sociedade comercial. É a partir da empresa que os indivíduos irão empreender e produzir riquezas, tanto para eles quanto para a sociedade.

Destaca-se que apenas às empresas será concedido o benefício legal da recuperação judicial, previsto no art. 45, da Lei 11.101/2005, daí a importância de estudar a empresa e os elementos que a caracteriza, o que será feito no próximo item.

Devido à tamanha importância da empresa para o desenvolvimento econômico e social, é patente que não interessa a ninguém a sua falência, já que isso provocará a demissão de seus empregados, a diminuição da geração de riquezas, a estagnação econômica da comunidade em que ela tem atuação, a diminuição do recolhimento de tributos junto aos cofres públicos, entre outros reflexos.

Dentro desse quadro de ideias, a recuperação judicial se mostra como a ferramenta capaz de impedir a falência de uma empresa que ainda possui capacidade de se soerguer e, assim, evitar todas as consequências nocivas econômicas e sociais que o fechamento de uma empresa provoca.

Um dos principais benefícios que a lei 11.101/2005 confere ao empresário que necessita de se recuperar de uma crise econômico-financeira é a concessão de prazos e condições mais favoráveis para a sua empresa honrar com os seus compromissos, de modo que ela possa aumentar o seu capital e, com isso, investir em sua atividade de modo mais contundente.

Além disso, importante gizar como um dos atributos de maior relevo da recuperação judicial a suspensão do curso de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados do deferimento da recuperação judicial, conforme estatui o art. 6º, § 4º, da Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Nesse sentido, Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli[18] lecionam:

A suspensão do curso das ações e execuções contra o devedor em razão do deferimento do processamento da recuperação judicial é uma das mais importantes características do direito concursal. Na recuperação judicial, essa suspensão se inicia automaticamente com o deferimento do processamento da recuperação judicial (automatic stay) e perdura 180 dias (art. 6º, § 4º), por isso, esse período é chamado de stay period.

Por outro lado, apesar de ter direito aos referidos benefícios legais, a empresa em recuperação judicial também terá que cumprir o ônus de obedecer com os compromissos assumidos no plano de recuperação que acordou com os seus credores.

O empresário devedor deve agir de forma leal durante o processamento da recuperação judicial, não promovendo embaraços que prejudiquem o natural desenvolvimento do plano, bem como deve estar atento se a sua empresa está realmente aproveitando desse benefício legal para conseguir reerguer o seu negócio e seguir com suas atividades.

É importante destacar, ainda, que o plano de recuperação judicial deve ser factível para a realidade econômica da empresa. O instituto da recuperação judicial não pode ser manipulado como uma forma de retardar o pagamento dos credores. É justamente por isso que em caso de descumprimento das obrigações assumidas por parte da empresa em recuperação, a Lei 11.101/2005, em seu art. 73, IV, dispõe que o juiz deverá decretar a sua falência.

2.1 A EMPRESA E OS SEUS ELEMENTOS CARACTERIZADORES

Como dito no item anterior, apenas às empresas é que a legislação concede o direito ao regime comercial da recuperação judicial, dessa forma, importante estudar os elementos que caracterizam a empresa.

Inicialmente, nota-se que o Código Civil de 2002, em seu art. 966, adotou a teoria da empresa, não vigendo mais no ordenamento jurídico brasileiro a antiga teoria dos atos de comércio.

Pela teoria dos atos de comércio, o indivíduo seria considerado comerciante caso praticasse alguma das atividades comerciais previstas em lei. Assim, caso exercesse alguma atividade produtiva não prevista no diploma legal como comercial, ele não estaria protegido pelas leis comerciais.

Diante disso, percebe-se claramente uma distorção na teoria dos atos de comércio, já que não conseguia contemplar como comerciante diversos indivíduos que, sem qualquer dúvida, efetivamente praticavam o comércio.

A grande falha da teoria dos atos de comércio é que ela engessava o ato de comércio de forma antecipada numa previsão legislativa, o que é de todo modo descabido, tendo em visto que a atividade empresarial é essencialmente dinâmica e novas formas de produzir riquezas são sempre criadas ao alvedrio da disposição legal.

Dessa maneira, prever legislativamente antecipadamente o que seria um ato de comércio significa deixar diversas sociedades empresárias sem a proteção do direito comercial por razões de uma opção legislativa desatualizada.

Destarte, é evidente que a adoção teoria da empresa pelo Código Civil de 2002, em seu art. 966, representa um verdadeiro avanço para o Direito brasileiro, uma vez que estende a proteção do direto comercial para todo aquele que exerça atividade econômica, de forma profissional e organizada, com o intuito lucrativo.

Dito isto, importante analisar mais pormenorizadamente os elementos que o Código Civil Brasileiro exige para que seja configurada a empresa[19].

Primeiramente, necessário se faz trazer o que dispõe o art. 966, do Código Civil, in verbis:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa[20].

Portanto, nota-se que o primeiro requisito para que se configure a empresa é que essa atividade seja exercida com profissionalismo, o que exclui de forma peremptória a possibilidade de atividades amadoras serem consideradas empresa.

O exercício profissional também não permite que o exercício de atividade que ocorra sem habitualidade seja considerado empresa, isto porque ninguém exerce atividade profissional sem constância, sendo tal postura mais condizente com o que em língua inglesa se denomina hobby do que com o profissionalismo. Acerca desse primeiro requisito, André Luiz Santa Cruz Ramos[21] assevera:

Da primeira expressão destacada, pode-se extrair o seguinte: só será empresário aquele que exercer determinada atividade econômica de forma profissional, ou seja, que fizer do exercício daquela atividade a sua profissão habitual. Quem exerce determinada atividade econômica de forma esporádica, por exemplo, não será considerado empresário, não sendo abrangido, portanto, pelo regime jurídico empresarial.

O segundo requisito que a legislação civil exige para que seja caracterizada a empresa é que a atividade desenvolvida seja uma atividade econômica.

É senso comum que o principal objetivo da empresa é o lucro. É por meio da empresa que o empresário irá obter os recursos necessários para que ele possa sobreviver dignamente, daí é intrínseco à ideia de empresa o objetivo do lucro. Caso uma organização exerça uma atividade profissional com fins humanitários, sem nenhum intuito lucrativo, pode-se estar diante de uma associação, por exemplo, mas não de uma empresa, por isso a necessidade que para a configuração de uma empresa ocorra o exercício profissional de uma atividade econômica.

O terceiro requisito imposto pelo Código Civil Brasileiro para que uma atividade seja considerada uma empresa é que essa atividade econômica exercida de forma profissional seja praticada de forma organizada. A organização refere-se à articulação dos meios de produção (capital, mão de obra, insumos e tecnologia) pelo empresário.[22]

Por fim, a legislação civil exige que essa atividade econômica exercida profissionalmente de forma organizada promova a produção ou a circulação de produtos ou serviços.

Assim, cumprido todos esses requisitos ter-se-á uma empresa e, com isso, a possibilidade de se utilizar do regime comercial da recuperação judicial, caso cumpra alguns requisitos legais, que serão vistos no próximo item.

2.2 REQUISITOS LEGAIS PARA QUE O DEVEDOR POSSA REQUERER A RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Além de ser empresário ou sociedade empresária, para requerer a recuperação judicial a Lei 11.101/2005 exige outros requisitos, que estão dispostos no art. 48, da precitada lei, senão vejamos:

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:

I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes;

II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial;    

III - não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo;        (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei.[23]

A partir da leitura do dispositivo ora em exame, observa-se que, primeiramente, para a empresa requerer a recuperação judicial ela deve exercer regularmente as suas atividades há mais de 2 (dois) anos.

Desse modo, a LFR considera que empresas muito novas, com menos de 2 (dois) anos de funcionamento, não merecem a proteção da recuperação judicial, já que muito provavelmente não são empresas que causam um impacto econômico e social significativo na sociedade que o circunda, de forma que o seu fechamento não irá acarretar consequências econômicas e sociais nocivas.

O inciso I, do art. 48 da Lei 11.101/2005, exige que o devedor que postula o processamento da recuperação judicial de empresas não seja falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes. Importante observar, em espeque nas lições de André Luiz Santa Cruz Ramos[24], que essa norma foi gestada tendo como referência o empresário individual, in verbis:

Além disso, o devedor precisa comprovar também que nunca teve sua falência decretada ou, se teve, que as suas obrigações já foram declaradas extintas por sentença transitada em julgado. Mais uma vez é preciso destacar que essa é mais uma das normas da LRE que foram redigidas tendo como referência o empresário individual. Assim, quando o dispositivo em enfoque utiliza a expressão “falido”, está se referindo ao empresário individual: se ele já teve sua falência decretada, não pode requerer recuperação judicial, salvo se suas obrigações já foram declaradas extintas por sentença transitada em julgado. Tratando-se de sociedade empresária, será óbice ao deferimento de seu pedido a existência de sócios de responsabilidade ilimitada que já tenham tido a sua falência decretada anteriormente ou que tenham participado de outra sociedade que teve sua falência decretada.

O inciso II e o inciso III, do art. 48, da LFR, traz como requisito para ter direito à recuperação judicial que o devedor não tenha obtido há menos de 5 (cinco) anos a concessão de recuperação judicial. Insta asseverar que o inciso III refere-se ao plano de recuperação judicial para Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. Acerca desse requisito, Fábio Ulhoa Coelho[25] explica que:

Se foi concedida a uma sociedade empresária a recuperação judicial nesse período (no quinquênio anterior), e está ela necessitando de novo socorro para reorganizar seu negócio, isso sugere falta de competência suficiente para exploração da atividade econômica em foco.

Por fim, o inciso IV, exige que o devedor que realiza o pedido de recuperação judicial não tenha sido condenado por qualquer dos crimes previstos na Lei 11.101/2005, assim como o administrador ou o sócio da empresa que postula a recuperação judicial.

3 O ART. 6º, § 4º, DA LEI 11.101/2005 E O PRAZO “IMPRORROGÁVEL” DE 180 (CENTO E OITENTA) DIAS DA SUSPENSÃO DO CURSO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES EM FACE DO DEVEDOR

O instituto da recuperação judicial tem como principal objetivo evitar o encerramento precoce de uma empresa por motivo de uma crise econômico-financeira. Desse modo, por meio da recuperação judicial busca-se o restabelecimento da saúde econômica de uma empresa e, por conseguinte, a manutenção dos empregos, do giro comercial, da geração de riqueza, do pagamento de tributos etc.

Destaca-se que a citada crise econômico-financeira pode ter como fundamento as mais diversas razões, como, por exemplo, a incapacidade de determinada empresa acompanhar o avanço tecnológico no seu setor de atuação, a dificuldade em manter a sua rentabilidade devido à excessiva carga tributária que incide sobre a sua atividade, a morte de um sócio que captava um maior número de negócios para a sociedade empresária, uma diminuição inesperada da demanda, entre inúmeras outras situações.

Enfim, pelos mais diversos motivos uma empresa poderá chegar a uma situação de crise econômico-financeira que lhe acarrete dificuldades em honrar com as suas obrigações, impossibilitando a continuação do seu negócio. É justamente nessas situações que o instituto da recuperação judicial tem aplicação. Este se constitui como uma forma de auxílio dado pela legislação ao empresário que se encontra em um momento de dificuldade de honrar com os seus compromissos.

Importante gizar que essa ajuda legal não se constitui como um favor legal arbitrário, que visa apenas beneficiar o empresário que está com problemas econômicos e financeiros.

Muito pelo contrário, a legislação, sabiamente, em observância aos princípios da preservação da empresa e da função social da propriedade, considera que o funcionamento da empresa não tem relevância apenas para o empresário, mas para toda a sociedade que o circunda.

É cediço que as empresas geram empregos, riquezas, movimentam a economia, facilitam as trocas comerciais e, portanto, estimulam o bem estar coletivo. Por isso, não é de bom alvitre que uma empresa tenha a sua atividade econômica terminada por um momento de crise econômico-financeira que poderia ser superada por meio de um adequado plano de recuperação judicial.

A respeito do objetivo do instituto da recuperação judicial e da sua importância social, Sérgio Campinho[26] afirma que:

O instituto da recuperação judicial vem desenhado justamente com o objetivo de promover a viabilização da superação desse estado de crise, motivado por um interesse na preservação da empresa desenvolvida pelo devedor. Enfatize-se a figura da empresa sob a ótica de uma unidade econômica que interessa manter, como um centro de equilíbrio econômico-social. É, reconhecidamente, fonte produtora de bens, serviços, empregos e tributos que garantem o desenvolvimento econômico e social de um país. A sua manutenção consiste em conservar o “ativo social” por ela gerado. A empresa não interessa apenas a seu titular - o empresário -, mas a diversos outros atores do palco econômico, como os trabalhadores, investidores, fornecedores, instituições de crédito, ao Estado, e, em suma, aos agentes econômicos em geral.

Portanto, nota-se que a recuperação judicial tem como principal preocupação a manutenção da empresa ou da sociedade empresária em função dos seus importantes reflexos econômicos e sociais.

Nesse momento, importante trazer à baila o art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005, que trata sobre o instituto da recuperação judicial, in verbis:

Art. 6º. A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

§ 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.[27]

Cumpre observar, como já enfatizado na introdução deste trabalho, que este estudo tratará apenas da recuperação judicial, não estando no âmbito dessa investigação a recuperação extrajudicial nem a falência.

Desse modo, do dispositivo citado, a análise só será feita tendo em vista a recuperação judicial.

Da leitura atenta do já aludido art. 6º, da LFR, claro fica que com o deferimento do processamento da recuperação judicial ficará suspensa o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor.

Ressalta-se que a referida suspensão, de acordo com a lei, se dará pelo prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento de recuperação, restabelecendo-se, após o decurso desse prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial, conforme prevê o parágrafo quarto, do art. 6º, da Lei 11.101/2005.

É justamente na interpretação desse artigo que se encontra as maiores discussões sobre o tema da recuperação judicial. Isso porque, em um primeiro momento, esse prazo de suspensão, até mesmo pela dicção legal – que diz tratar-se de um prazo “improrrogável” –, foi interpretado literalmente.

Desse modo, depois do transcurso de 180 (cento e oitenta) dias, os credores poderiam retomar as suas execuções individuais em face da empresa em processo de recuperação judicial, inclusive os credores trabalhistas.

Em uma interpretação rigorosa do dispositivo essa possibilidade seria admitida, sendo desse modo que interpretam diversos juízos trabalhistas, conforme se pode verificar nas seguintes decisões:

AGRAVO DE PETIÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESA. CRÉDITO TRABALHISTA DEVIDO. Conforme o art. 6º § 4º da Lei de Falência e Recuperação de Empresas serão suspensas todas as ações e execuções em face do devedor, por até cento e oitenta dias, para que seja realizado o plano de recuperação judicial de empresas para o restabelecimento das atividades da empresa, e para que suas obrigações perante os credores sejam satisfeitas. Dessa forma, ultrapassado o prazo de 180 dias estabelecido, o crédito trabalhista constante da ação trabalhista ora em execução, pode ser processado perante a Justiça do Trabalho.[28]

HABILITAÇÃO DO CRÉDITO TRABALHISTA JUNTO AO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NÃO CABIMENTO. O crédito trabalhista é um crédito privilegiadíssimo, reconhecido pelo direito positivo, pela doutrina e pela jurisprudência. O Código Tributário Nacional consagra tal entendimento em seu artigo 186, assim como a legislação falimentar. Assim, não se cogita de habilitação do crédito trabalhista junto ao Juízo da Recuperação ou suspensão da ação, por falta de fundamento legal, devendo o feito prosseguir, até seus trâmites finais, nesta Justiça Especializada.[29]

Também há doutrina que segue o entendimento acima esposado pelos tribunais trabalhistas, como, por exemplo, Sérgio Campinho[30]:

Para as execuções em curso de créditos derivados da relação de trabalho há situação mais especial ainda. Durante o período de suspensão das ações, as execuções de natureza trabalhista ficarão paralisadas, mas após o seu término, retornarão ao curso normal, podendo ser concluídas, ainda que o crédito já se encontre inscrito no quadro-geral de credores da recuperação judicial. (...) Parece-nos aí evidente a garantia com que o legislador resolveu agraciar os créditos trabalhistas em execução. (...) após o interregno, pretendeu o legislador assegurar o eventual prosseguimento de tais execuções, talvez porque o plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a um ano para o pagamento dos créditos trabalhistas vencidos até a data do pedido de recuperação judicial, desejando o legislador, com a providência, estimular o pronto atendimento daqueles em fase executiva."

Assim também se manifesta Carlos Roberto Fonseca de Andrade[31], senão vejamos:

Não se vislumbra, salvo de lege ferenda, como ultrapassar o prazo peremptório de natureza legal, por maiores e melhores que sejam os motivos, diante da dicção tão clara e categórica do texto de lei, prazo este que nem 'ao Juiz é permitido prorrogar.

Entretanto, em que pese a importância da doutrina e da jurisprudência em abono de tal posicionamento, entende-se que tal entendimento não deve prosperar.

Defende-se, com espeque na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como em doutrinadores comercialistas, que o referido prazo não pode ser interpretado literalmente.

Primeiramente, porque, em muitas situações, em função de atrasos frutos da máquina judiciária e da própria burocracia do plano de recuperação judicial são transcorridos 180 (cento e oitenta) dias sem que o requerente do plano tenha qualquer participação em tal demora.

Desse modo, mostra-se descabido imputar um ônus ao devedor sobre uma situação que ele não concorreu com qualquer culpa. Perfilhando o mesmo entendimento, impende seguir o raciocínio da ínclita Ministra Nancy Andrighi, esposado no Conflito de Competência nº 111.614-DF, proferido no dia 12/06/2013, in verbis:

Vale registrar que, após o deferimento do processamento da recuperação judicial, tanto a sociedade recuperanda como o administrador judicial e o próprio juiz da recuperação devem providenciar a consecução de diversos atos e procedimentos dirigidos à apresentação e aprovação do plano de recuperação (arts. 52 e seguintes da LFRE).

Com a apresentação do plano, outra sequência de providências tem lugar, como a publicação de edital aos credores (art. 52, § 1º, da LFRE) e a exibição em juízo de relatórios mensais pelo administrador judicial (art. 22, II, “c”, da LFRE).

Verifica-se, assim, que o processo de recuperação é sensivelmente complexo e burocrático. Mesmo que a recuperanda cumpra rigorosamente o cronograma demarcado pela legislação, é aceitável supor que a aprovação do plano de recuperação ocorra depois de escoado o prazo de 180 dias previsto pelo art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005.

Ademais, evidencia-se que a aprovação do plano de recuperação judicial, por vezes, extrapola o limite temporal precitado em decorrência de motivos inerentes à própria estrutura do Judiciário ou mesmo à dimensão ou ao enredamento das relações jurídicas travadas pela sociedade em recuperação.

Impende ressaltar, diante desse quadro, que permitir a retomada de execuções individuais contra a recuperanda – ainda que ultrapassado o prazo de 180 dias –, equivale a aniquilar qualquer possibilidade de recuperação da sociedade em dificuldades. Essa medida autorizaria aos credores a busca imediata da satisfação de seus créditos, em detrimento do princípio da par conditio creditorum[32].

Também adotando o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Roberto Ayoub e Cássio Machado Cavalli[33] asseveram:

Com efeito, não ocorrerá a retomada das execuções após o decurso de 180 dias caso o plano não tenha ainda sido apreciado pela assembleia-geral de credores em razão de fatos relacionados à administração da justiça, isto é, em razão de fatos não imputáveis à empresa devedora, sob pena de violarem-se os princípios da razoabilidade e da preservação da empresa. Vale lembrar que não é a empresa devedora quem convocará a assembleia-geral de credores. À empresa devedora incumbe o dever de apresentar o plano em até 60 dias após o deferimento do processamento da recuperação. Por isso mesmo, antes da convocação da assembleia não são, de regra, imputáveis à empresa devedora, e, portanto, não deve ela ser penalizada caso não haja apreciação no prazo de 180 dias. Nesse sentido, aliás, é o Enunciado 42, lavrado por ocasião da I Jornada de Direito Comercial da CJF, de teor seguinte: “O prazo de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005 pode excepcionalmente ser prorrogado, se o retardamento do feito não puder ser imputado ao devedor.

Em segundo lugar, ressalta-se que o prazo referido é muito exíguo para que seja processada a recuperação judicial de uma empresa, em especial as de maior porte, em que estão envolvidos muitos credores e uma variedade de ativos e passivos.

Por essa razão, muitas das vezes não é possível realizar a homologação do plano de recuperação judicial no prazo de apenas 180 (cento e oitenta) dias, o que não invalidará o plano de recuperação judicial que for assim aprovado, nem mesmo implicará na possibilidade de que as ações e execuções contra a empresa em recuperação sejam retomadas, nem que os créditos não foram novados, conforme prevê o art. 59 da LFR.

Uma interpretação nesse viés inviabilizaria a aplicação da recuperação judicial justamente para aquelas empresas de maior porte, que são as que geram mais riquezas para a sociedade, o maior número de empregos e um maior valor de recolhimento de tributos.  Nesse sentido, importante trazer as lições de Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli[34]:

Em primeiro lugar, nas recuperações judiciais de grandes empresas, a complexidade da crise da empresa pode acarretar dificuldade da apresentação, negociação e deliberação sobre o plano dentro do prazo de 180 dias. Se se afirmar corrente interpretativa que subtrai o efeito do art. 59 da LFR, caso o plano não seja aprovado dentro do stay period, se estará a incentivar as empresas a apresentar um plano reduzido para que observe o prazo de 180 dias, mas com o excesso propósito e necessidade de ulteriormente se apresentar ao plano a nova assembleia-geral de credores. Esse incentivo deve ser evitado.

Em segundo lugar, a norma do art. 59 da LFR incide quando há aprovação e homologação do plano, independentemente de quando esta ocorre, se durante ou após o prazo de 180 dias. Sustentar o contrário equivale a inviabilizar por completo qualquer recuperação judicial cuja aprovação e homologação não ocorra no prazo de 180 dias, pois se estará a subtrair todos os créditos de sujeitar-se ao plano de recuperação. Por essa razão, a regra do art. 6º, § 4º, da LRF deve ser interpretada em consonância com o princípio da preservação da empresa, contido no art. 47 da LRF.

Portanto, sustentando-se nos dizeres de Ayoub e Cavalli, importante gizar que a intepretação que entenda que o plano de recuperação judicial deve ser obrigatoriamente aprovado e homologado dentro de 180 (cento e oitenta) dias acabará por forçar que as grandes empresas apresentem um plano aquém das suas necessidades, unicamente para cumprir o prazo exigido, e depois apresente um novo plano à assembleia geral de credores, o que não faz nenhum sentido do ponto de vista da economia e da efetividade processual.

Por último, é de relevo ressaltar que sendo julgado procedente o pedido de recuperação judicial e homologado o plano, as execuções individuais de créditos trabalhistas devem observar o que restou estabelecido no plano de recuperação judicial, sob pena de tais execuções provocarem a frustração da recuperação da empresa e, com isso, o próprio adimplemento de uma maior quantidade de créditos trabalhistas. Nessa linha de raciocínio, importante trazer excerto de decisão do Superior Tribunal de Justiça[35], de Relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, ipsis litteris:

Segundo regulamenta a legislação de regência, as ações de natureza trabalhista serão julgadas na Justiça do Trabalho até a apuração do respectivo crédito, cujo valor será determinado em sentença e, posteriormente, inscrito no quadro-geral de credores.

A prudência recomenda concentrar no juízo da recuperação judicial todas as decisões que envolvam o patrimônio da recuperanda, a fim de não comprometer a alternativa de mantê-la em funcionamento.

Destarte, deferido o processamento da recuperação judicial, ao Juízo Laboral compete tão-somente a análise da matéria referente à relação de trabalho, ficando a cargo do Juízo da recuperação judicial todo o questionamento acerca da satisfação do crédito respectivo, nele incluído eventual indisponibilização de bens.

Também no mesmo sentido, importante trazer excerto de voto extremamente lúcido do Ministro Hélio Quaglia Barbosa[36], proferido no Conflito de Competência nº 73.380/SP, de 28/11/2007, in verbis:

Ora, uma vez aprovado e homologado o plano, contudo, não se faz plausível a retomada das execuções individuais após o mero decurso do prazo legal de 180 dias; a consequência previsível e natural do restabelecimento das execuções, com penhoras sobre o faturamento e sobre os bens móveis e imóveis da empresa em recuperação implica em não cumprimento do plano, seguido de inevitável decretação da falência que, uma vez operada, resultará novamente, na atração de todos os créditos e na suspensão das execuções individuais, sem benefício algum para quem quer que seja.

Destarte, o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, de forma perspicaz, nota que se forem retomadas as execuções individuais após o mero decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, sem que se obedeça ao plano de recuperação judicial, ter-se-á a impossibilidade do soerguimento da empresa em recuperação judicial e, com isso, será inevitável a decretação da falência da empresa em recuperação, o que irá provocar a atração novamente de  todos os créditos para o juízo falimentar, bem como a suspensão das execuções individuais, o que não trará benefício para nenhum credor, muito menos para os credores trabalhistas.

Destaca-se, ainda, que a retomada das execuções individuais sem que se observe o plano de recuperação pode acarretar que um crédito trabalhista de maior vulto seja adimplido de forma imediata e, com isso, reste impossibilitado o pagamento de demais credores trabalhistas ou até mesmo da própria recuperação da empresa em crise.

Dessa forma, é patente que obedecer ao plano de recuperação judicial não importará, de maneira alguma, em prejuízo para os credores trabalhistas, o que também não passou despercebido pelo judicioso voto do Ministro Hélio Quaglia Barbosa[37], in verbis:

Nem se alegue que os trabalhadores poderiam ficar reféns, indefinidamente, do plano de recuperação, uma vez permitida a extrapolação do prazo de 180 dias, pois a nova lei, como se sabe, possui regras firmes a serem observadas pelo administrador judicial e pela autoridade judiciária condutores da recuperação, como o prazo não superior a uma ano para pagamento dos créditos trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho (art. 54), além de prever drástica sanção, em seu art. 61, §1º:

§ 1º Durante o período estabelecido no caput deste artigo (dois anos depois da concessão da recuperação judicial), o descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano acarretará a convolação da recuperação em falência, nos termos do art. 73 desta Lei'

Portanto, restou demonstrado que na interpretação da regra encartada pelo § 4º, art. 6º, da Lei 11.101/2005, haverá um confronto entre os valores da preservação da empresa e o adimplemento dos créditos trabalhistas de forma imediata, devendo prevalecer a primeira opção.

Diante da exposição realizada, evidencia-se que o art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005 deve ser interpretado comportando as seguintes exceções: (1) permitindo que o prazo de 180 (cento e oitenta) dias seja prorrogado em situações em que a demora do processamento do plano de recuperação judicial não se deve por fato imputado à empresa devedora, mas pela estrutura do Poder Judiciário e da própria burocracia inerente a este processo; (2) observando a necessidade de que o adimplemento dos créditos trabalhistas seja feito conforme o que foi aprovado no plano de recuperação judicial, e não por meio de execuções individuais no juízo laboral; (3) ressalvando que para recuperações judiciais mais complexas, que envolvam empresas de grande porte, deve ser conferido prazo superior a 180 (cento oitenta) dias para a aprovação e homologação do plano, uma vez que tal prazo é por demais exíguo e incompatível com a realidade de recuperações judiciais de empresas de maior monta.

Dessa forma, com a adequada interpretação do art. 6º, § 4º, da Lei 11.1015/2005, comportando as exceções acima destacadas, as empresas que passam por um momento de crise econômico-financeira e optaram por utilizar o instrumento da recuperação judicial terão maior capacidade de recuperar a sua saúde financeira, garantindo-se os empregos, o giro comercial, o desenvolvimento econômico e social, o recolhimento de tributos e, ao mesmo tempo, não se estará a lesar o direito dos credores trabalhistas, tudo em consonância com o princípio da preservação da empresa.

CONCLUSÃO

A recuperação judicial é instrumento apto para reequilibrar as finanças daquelas empresas que atravessam uma crise econômico-financeiro e, com isso, permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, conforme estatui o art. 47, da Lei 11.101/2005.

É sabido que a principal vantagem conferida pela legislação às empresas que obtém o deferimento do pedido de recuperação judicial é a suspensão do curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, sendo isso o que prevê o art. 6º, § 4º, da LRF.

Importante destacar que essa suspensão, conforme dispõe o § 4º, do art. 6º, da Lei 11.101/2005, dar-se-á pelo prazo “improrrogável” de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso desse prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

Dessa forma, numa interpretação literal do dispositivo acima citado, transcorridos o referido prazo de suspensão, as ações e execuções individuais dos credores retornariam o seu seguimento, inclusive as ações e execuções que tratam dos créditos trabalhistas.

Em que pese à literalidade do artigo, bem como a opinião de parte da jurisprudência laboral e de alguns doutrinadores, defende-se que o art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005, deve ser interpretado com temperamentos, de modo a dar efetividade ao instituto da recuperação judicial, bem como em homenagem ao princípio da preservação da empresa.

Por essa razão, pugna-se que a interpretação do art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005, deve ser interpretado comportando as seguintes exceções: (1) permitindo que o prazo de 180 (cento e oitenta) dias seja prorrogado em situações em que a demora do processamento do plano de recuperação judicial não se deve por fato imputado à empresa devedora, mas pela estrutura do Poder Judiciário e da própria burocracia inerente a este processo; (2) observando que mesmo após o decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, uma vez aprovado e homologado o plano de recuperação judicial, o adimplemento dos créditos trabalhistas deverá ser feito conforme o que foi aprovado no plano, e não por meio de execuções individuais no juízo laboral; (3) ressalvando que para recuperações judiciais mais complexas, que envolvam empresas de grande porte, deve ser conferido prazo superior a 180 (cento oitenta) dias para a aprovação e homologação do plano, uma vez que tal prazo é por demais exíguo e incompatível com a realidade de recuperações judiciais de empresas de maior monta.

Portanto, feitas tais observações à interpretação do art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005, estar-se-á dando mais efetividade à recuperação judicial, permitindo que ela seja um mecanismo adequado para o soerguimento de empresas que passam por um momento de crise econômico-financeira e, ao mesmo tempo, se estará garantindo o adimplemento de um valor maior de créditos trabalhistas.

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Sobre o autor
Henrique de Souza Pimenta

Advogado (OAB/ES nº 20.558). Graduado pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). L.L.M em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduando em Direito Médico, Hospitalar e da Saúde pela Emescam. Fluente em inglês.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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