INTRODUÇÃO
Diante da indisfarçada impotência que o Poder Judiciário tem demonstrado em promover a entrega da tutela jurisdicional no menor tempo possível, a despeito das inúmeras alterações legislativas já levadas a efeito, deve-se reconhecer, sobremaneira, a força e importância que os contratos desempenham nas relações sociais.
Com efeito, as origens históricas demonstram, de forma irretorquível, que o escopo precípuo desta modalidade de ato jurídico visa justamente conferir harmonia e estabilidade às relações sociais, sendo ainda uma maneira de se fomentar a economia, promover o avanço das relações jurídicas e também a circulação de riquezas.
Portanto, sendo o contrato o ato de manifestação de vontade com o fito de criar, extinguir, modificar ou resguardar direitos, conforme definição fornecida por CLÓVIS BEVILÁQUA, sempre houve, com justo motivo, uma aplicação quase que irresistível do princípio da força vinculante das obrigações, que decorre, certamente, da autonomia da vontade.
MARIA HELENA DINIZ define os contratos como "o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial." (Curso de Direito Civil Brasileiro, Volume III, 10ª Edição, São Paulo, 1995, p. 22)
Todavia, não raras vezes os contratos deixam de alcançar esse desiderato, tornando a situação de um dos contraentes por demais onerosa, seja porque são celebrados na modalidade de adesão (onde a impossibilidade de discussão torna a obrigação demasiadamente onerosa), seja porque a verificação de determinados acontecimentos torna impossível o cumprimento da obrigação tal qual pactuada.
De fato, a partir do momento em que se aceita que o contrato é uma forma de se garantir o equilíbrio das relações sociais, bem como incentivar a realização de negócios, deve-se entender que aquilo que está pactuado deve, na medida do possível, tornar-se imutável, como ocorre com a coisa julgada, de modo a conferir-se a necessária segurança aos contraentes de que seus direitos serão respeitados.
Em última instância, a imutabilidade das convenções pressupõe o respeito ao princípio da segurança jurídica, pois, do contrário, o credor de determinada obrigação jamais encontraria naquele instrumento jurídico o respaldo necessário a efetivação de seus direitos.
Daí decorre o princípio pacta sunt servanda, largamente utilizado na esfera do direito contratual, donde deverão ser observados os termos da convenção, sendo induvidoso que a sua aplicação indiscriminada, na forma preconizada pelos ordenamentos antigos e defendida até há pouco por doutrinadores de escol como WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO e CARVALHO SANTOS, coloca em patamar elevado o patrimônio, muitas vezes em detrimento da pessoa humana.
Neste sentido, com a evolução das sociedades e da economia como um todo, em especial com o fenômeno implacável da globalização, não se pode negar que, a contrario sensu do que ocorreu por ocasião da elaboração do Código de Napoleão (período da Escola da Exegese), não mais é possível que os diplomas legais possam prever toda a sorte de relações jurídicas, bem como a solução a ser aplicada em cada caso.
Assim, concluiu-se que não é possível a concepção de um instrumento legislativo capaz de prever todos os negócios jurídicos decorrentes das relações travadas entre os indivíduos de uma sociedade, o que se mostrou particularmente verdadeiro em situações onde acontecimentos imprevisíveis e irresistíveis tornavam a obrigação demasiadamente onerosa para uma das partes.
Portanto, tendência que não pôde ser evitada foi da mitigação ou relativização do princípio da força obrigatória dos contratos, tendo em vista que a sua aplicação irrestrita acaba por prejudicar interesses outros que desfrutam do mesmo prestígio na sociedade, como é o caso da dignidade da pessoa humana.
Neste ponto ganha importância a aplicação da teoria da imprevisão, como forma de justificar a atividade do Poder Judiciário no sentido de rever relações jurídicas que, devido a situações extraordinárias, tenham se tornado excessivas para as partes.
Deve-se destacar que esse entendimento não foi aceito de forma pacífica na doutrina e jurisprudência sem algumas reticências, tendo em vista o forte enraizamento do princípio pacta sunt servanda, onde a força vinculante das obrigações exercia inegável preponderância, sendo que se tratou de um progresso paulatino de desenvolvimento a possibilidade de admitir-se a revisão contratual de maneira a restabelecer o equilíbrio da relação jurídica.
O Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade de revisão de contratos, desde que a obrigação, por qualquer motivo, tenha se tornado onerosa para a parte mais fraca – o consumidor – sendo que o conceito previsto pelo artigo 2º deste diploma legal ganhou elastério que muitas vezes não é compatível com o desejo do legislador.
Todavia, a teoria da imprevisão já vinha sendo aceita de modo pacífico, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência mais autorizada e atualizada.
O Novo Código Civil, em atendimento aos anseios cada vez mais relevantes sobre a necessidade de regulamentação do tema, inseriu alguns dispositivos esparsos, assim como um capítulo específico para tratar da possibilidade de revisão dos contratos em caso de onerosidade excessiva.
Nesta seara, o objetivo deste estudo é demonstrar a aceitação da teoria da imprevisão na sistemática atual, e de igual forma traçar os limites a que deve obedecer a atividade jurisdicional quando provocada a readequar a relação jurídica, e ainda, a necessidade de revisão do conceito de consumidor, previsto na Lei 8078/90, diante da promulgação do novo Código Civil.
EVOLUÇÃO DO DIREITO CONTRATUAL
O Código de Napoleão é um dos monumentos ao direito, sendo de se ressaltar a importância do trabalho realizado, que serve de base e parâmetro não somente para ordenamentos jurídicos que já se encontram em vigor, mas também para aqueles que ainda virão a fazer parte do mundo do direito.
De outro tanto, não se pode negar que a França sempre exerceu influência na elaboração dos diplomas legislativos em nosso país, notadamente aqueles relativos a questões afetas ao direito civil, o que se verifica de maneira insofismável quando se analisa a Codificação de 1916.
Diante da importância desempenhada pelo diploma alienígena referido, não se pode deixar de analisar o contexto histórico em que se elaborou o Código de Napoleão, como forma de se buscar um entendimento mais explícito das razões pelas quais determinados princípios foram adotados, bem como da maneira como interferiram na elaboração legislativa no Brasil.
Com efeito, o Código de Napoleão tinha como objetivo indisfarçado evitar a ocorrência de fatores como aqueles verificados antes da Revolução Francesa, onde o Poder Judiciário transformou-se não somente em palco de vergonhosa corrupção, mas sobremodo em campo fértil para o exercício do abuso de poder, que em outras palavras significa promover a injustiça e a insatisfação social.
De outro tanto, a experiência demonstra sempre que períodos de um entendimento radical em determinado norte são precedidos de outros, da mesma forma intransigentes, em sentido diverso.
Neste sentido, RENATO JOSÉ DE MORAES pondera que "O ponto de vista do jurista em relação aos institutos com que trabalha é devedor da sua concepção de mundo. Assim sendo, é natural que as diversas fases do pensamento humano acabem por influenciar a visão que os juristas têm do mundo jurídico e seus elementos, levando a que uma postura determinada seja predominante em certa época." (Cláusula Rebus Sic Standibus, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 01)
Assim, a tendência do Código Civil Francês, dado o contexto histórico (pós Revolução Francesa – tendo sido publicado em 1804) em que está inserido, demonstra de forma cabal o receio em se conceder exacerbado poder ao julgador, razão pela qual tentou-se, na medida do possível, esgotar as possibilidades de relações jurídicas que existiam e eventualmente viessem a surgir, limitando dessarte o processo hermenêutico.
Não se pode olvidar, da mesma forma, que Revolução Francesa marcou a ascensão da burguesia como classe social detentora do poder econômico, sendo-lhe reconhecida a importância que desempenhava na sociedade da época.
Diante dessa situação, o diploma em referência concedeu notável importância ao patrimônio, relegando a segundo plano o indivíduo enquanto sujeito de direitos decorrentes das relações jurídicas entabuladas.
Neste contexto, o princípio da força vinculante das obrigações – pacta sunt servanda – desempenha papel de inegável preponderância, tendo em vista que conferia a necessária segurança às relações jurídicas firmadas entre os particulares, em especial no que concerne à satisfação de direitos.
Essa força e prestígio do pacta sunt servanda foi transportada de forma indelével para o direito pátrio, tendo sido acolhida na integralidade pela maioria expressiva dos juristas e julgadores.
Também analisando o contexto histórico de nosso país pode-se entender o motivo pelo qual sempre foi privilegiado referido princípio, sob a justificativa de se conferir segurança jurídica às relações negociais, em detrimento de valores outros, como a dignidade humana.
Essa situação perdurou e encontrava justificativa constitucional, inclusive no Texto Político de 1967, bem como na Emenda Constitucional de 1969, em especial porque estava o país em um regime ditatorial, onde valores referentes à pessoa humana não poderiam ser aceitos em sua integralidade, ainda que mínima, dada a contradição daí imanente.
Referido panorama ganhou novos nortes a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que já em seu preâmbulo prestigia valores inerentes ao Estado Democrático de Direito, como os direitos sociais e individuais (em especial), a liberdade, segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, harmonia social, dentre outros.
Da mesma forma, o Texto Político alça a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito naquele ato representado, conforme previsto no artigo 1º, inciso III.
Ora, não se pode negar que a Constituição Federal de 1988, além das inovações em termos de garantias que trouxe ao cidadão de um modo geral, bem como da importância histórica desempenhada, deu início a uma nova fase de interpretação das relações jurídicas, em especial aquelas decorrentes dos contratos.
Outrossim, o patrimônio, representado pelo direito de propriedade, inatingível em vários ordenamentos jurídicos antigos, acaba por encontrar limitações a seu exercício, ao autorizar o artigo 184 do Texto Político, que o Poder Público proceda à desapropriação das propriedades que não estejam desenvolvendo sua função social.
Este, certamente é o exemplo típico do valor maior que foi conferido ao indivíduo neste diploma legal, e que irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, pois reconhece que o direito de propriedade, outrora inatingível, deve ser interpretado em consonância com sua função social.
Também o artigo 186 da Constituição Federal, em seu inciso IV, ao determinar sobre a propriedade que a "exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores", deixa clara a conotação de que função social é justamente proporcionar empregos, gerar desenvolvimento, ampliar divisas, e alcançar, na medida do possível, a minimização das diferenças sociais, ou seja, atingir aqueles escopos previstos no preâmbulo e artigo 1º.
Diante dessas observações, perfeitamente factíveis da análise dos dispositivos citados, não se pode negar, por conseguinte, que com o advento da Constituição Federal de 1988, o ser humano acabou por suplantar a diferença até então existente em sua relação com o patrimônio.
Portanto, não mais se tornou possível e satisfatória a aplicação ampla e irrestrita de determinados valores e princípios, como por exemplo a força obrigatória dos contratos, dado que não mais atingia-se o fim precípuo previsto no ordenamento jurídico para a atividade jurisdicional, bem como para assegurar a harmonia das relações sociais.
Aliado a este fato, a velocidade atingida pelo desenvolvimento das relações sociais, bem como da interferência cada vez mais crescente de fatores externos nas economias de países em desenvolvimento (nova denominação para países do Terceiro Mundo) fez com que os operadores do direito buscassem formas de se autorizar o Judiciário, quando provocado a tanto, proceder a revisão de determinadas relações jurídicas, de modo a restabelecer o equilíbrio originariamente existente entre as partes.
Neste quadro, a antiga concepção interpretativa dos contratos, em especial no que diz respeito à sua força vinculante, teve de ser revista, sendo que a mudança foi acolhida pela doutrina e jurisprudência de forma pacífica, sendo necessária somente a regulamentação da matéria, de modo a conferir maior segurança na solução dos casos concretos.
A TEORIA DA IMPREVISÃO
A teoria da imprevisão encontra raízes no antigo direito romano, na então denominada cláusula rebus sic standibus, valendo ressaltar que, apesar de algum dissenso doutrinário em torno do assunto, pode-se dizer que existe um certo consenso a respeito de que as primeiras manifestações no sentido de revisão contratual foram verificadas no direito romano.
Ainda em sede de escorço histórico, importante mencionar que a I Guerra Mundial teve papel preponderante para autorizar a aplicação da teoria da imprevisão. Com efeito, em decorrência das catastróficas conseqüências trazidas aos países envolvidos no conflito, especialmente àqueles que restaram vencidos, ocorreu o colapso financeiro, tornando obrigações anteriormente assumidas, em outro panorama econômico, impossíveis de serem adimplidas.
Assim, o Poder Judiciário, mormente na Alemanha, viu-se na contingência de autorizar a revisão de negócios jurídicos, por absoluta impossibilidade prática de cumprimento das obrigações, dada a imprevisibilidade dos acontecimentos posteriores à celebração do oblato, em inevitável mitigação do princípio da força vinculante das avenças.
Também na França, em decorrência da Primeira Grande Guerra foi necessária a normatização a respeito da possibilidade de revisão de contratos, em decorrência da imprevisibilidade das situações, o que veio a ocorrer efetivamente em 1918, através da Lei Failliot.
O Código Italiano de 1942, por seu turno, apesar de prever a força obrigatória das convenções, não se desvinculou da teoria da imprevisão, o que se percebe da leitura do artigo 1467, in verbis:
"Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione de una delle parti à divenuta eccesivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevidibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, com gli effetti stabiliti dall’art. 1458."
Note-se que também no diploma italiano para que se possa argumentar em favor da onerosidade excessiva, mister que se tratem de contratos de execução diferida no tempo, e que se esteja diante de acontecimentos supervenientes e imprevisíveis, de maneira a tornar a obrigação demasiadamente onerosa, ou mesmo impossível de ser adimplida, requisitos esses que, em linha geral, foram seguidos no direito brasileiro.
No Brasil, desde o ano de 1930 existem julgados que enfrentaram a matéria, aceitando a invocação da teoria em comento, sendo que em 1938 houve a primeira manifestação acerca do instituto pelo Supremo Tribunal Federal (RT 116/224), em sentido de acolhimento da possibilidade da revisão contratual.
Como dito na introdução deste estudo, não foi assente e livre de embates o firmamento sobre a possibilidade de revisão dos contratos – dada a importância desempenhada pela força vinculante das convenções – ainda que fatores exógenos e alheios à vontade das partes o tenham tornado iníquo, com obrigações desproporcionais.
No entanto, além dos fatores históricos noticiados, o desenvolvimento das relações sociais, a massificação dos contratos, extremamente necessária para o avanço tecnológico então experimentado, trazendo como conseqüência o surgimento de situações imprevisíveis até mesmo para o homem médio, ocasionando o desequilíbrio de situações antes pautadas na equivalência de obrigações, deflagrou a necessidade da atividade jurisdicional no sentido de readequar a relação jurídica.
A teoria da imprevisão encontra fundamento, portanto, em princípios como da justiça, da eqüidade, do devido processo legal, do amplo acesso ao Judiciário, que, diga-se, estão previstos de forma explícita no ordenamento pátrio, sendo alçados ao status de garantia fundamental na Constituição Federal.
RENATO JOSÉ DE MORAES, em excelente monografia sobre o tema, traça um panorama interessante a respeito da cláusula rebus sic standibus em nosso direito:
"Efetivamente, a revisão judicial dos contratos, ou de outros atos jurídicos, é um elemento instigante no direito contemporâneo, e teve defensores convictos, bem como adversários acérrimos.
O porquê desse interesse está, em nossa opinião, no fato de a cláusula rebus sic standibus referir-se a vários pontos fundamentais da teoria do direito, obrigando a que se tome uma posição a respeito deles. A importância da vontade nos atos jurídicos; a relação entre segurança e justiça no direito; os limites da visão sistemática do ordenamento jurídico; a interdependência entre os conceitos jurídicos e a realidade dos fatos; a aplicação da lei de forma flexível ou estrita; tudo isso é levantado quando se trata de examinar com maior profundidade e cuidado a possibilidade de revisão dos contratos e outros atos jurídicos."
(ob. cit., p. XIX)
Portanto, a necessidade de revisão dos contratos, em face de situações imprevisíveis, que tornem a obrigação por demais onerosa para uma das partes, fez com que valores outros, até então relegados a plano secundário, emergissem como relevantes no ordenamento jurídico, de forma a propiciar a atividade do Poder Judiciário no sentido de readequar a relação jurídica.
CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO, ressaltando a importância desempenhada pela doutrina e jurisprudência no sentido de fazer valer a revisão dos contratos, e como que antevendo os requisitos a serem traçados por ocasião da promulgação do novo Código Civil, traça importante esquema a respeito dos requisitos para o acolhimento da teoria da imprevisão:
"Graças ao lavor constante da doutrina e da jurisprudência, cristalizaram-se, em nosso sistema, alguns pressupostos de admissibilidade da teoria da imprevisão, a saber:
a)o contrato não deve ter sido totalmente executado (uma prestação, pelo menos, tem de estar ainda pendente);
b)o acontecimento deve ser imprevisível, anormal e exogeno (incomum, anormal e estranho à vontade das partes);
c)deve haver onerosidade excessiva para um dos contraentes e benefício exagerado para o outro;
d)tem que ocorrer alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do instante de sua formação;
e)deve inexistir mora antes do acontecimento;
f)a alegação da teoria não deve dizer respeito à inflação, que é fato previsível, pois nossa economia é inflacionária."
(Teoria da Imprevisão, Dos Poderes do Juiz, Editora Revista dos Tribunais São Paulo, 1993, p. 17/18)
Note-se que diante dessas situações, os princípios que justificavam a imutabilidade dos contratos, fundados eminentemente na segurança jurídica, tiveram de ceder espaço a outros, como o que prescreve a proibição do enriquecimento sem causa, da dignidade da pessoa humana, da eqüidade, que após o devido sopesamento verificaram-se como sendo mais importantes.
Como é cediço, o conflito de princípios não tem o condão de anulá-los, por entender-se que algum deles é inaplicável ao caso, sendo necessário somente haver a efetiva análise da situação concreta para que se possa aferir em cada caso qual deles deverá prevalecer, segundo o autorizado ensinamento de RONALD DWORKIN.
Sobremais, pode-se dizer que a contingência de determinadas realidades sociais acabou por tornar fundamental uma regulamentação a respeito da teoria da imprevisão, tendo em vista que o modelo clássico liberal de contrato não mais atendia aos anseios sociais. Cita-se, por importante, o ensinamento de ROGÉRIO FERRAZ DONNINI:
"Independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares, não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportada por uma das partes, seja considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada a as partes são livres para contratar."
(A Revisão dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 06)
Diante dessas situações e ante a ausência de normatização do instituto, foi o trabalho da doutrina e jurisprudência, como oportunamente mencionado por CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO, que tornou possível o acolhimento da teoria no direito brasileiro, sob o fundamento muitas vezes utilizado de que, se o Código Civil de 1916 não continha dispositivos que regulassem a revisão contratual, certamente não vedava a sua possibilidade.
Embora a corrente liberal a respeito do contrato tivesse a igualdade entre os contraentes o fundamento para a obrigatoriedade das convenções, isso não foi elemento suficiente para repelir questionamentos quanto a situações que reclamavam a intervenção do Poder Estatal, para reequilibrar as posições. Neste sentido, utiliza-se novamente do escólio de ROGÉRIO FERRAZ DONNINI:
"O contrato, nesse modelo liberal, faz lei entre as partes, e sua força é reconhecida no brocardo pacta sunt servanda. Destarte, se os contratantes são livres para celebrar um pacto e o fazem, passavam a assumir todas as obrigações convencionadas, segundo a vontade manifestada, devendo, pois, ser cumprido o que foi acordado."
(ob. cit., p. 03-04)
Contudo, arremata o autor em enfoque, dizendo que "O liberalismo marcante do século passado fez do contrato o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre as pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma ética." (ob. cit., p. 04)
A despeito do trabalho realizado pela doutrina e jurisprudência, no sentido de acolher, paulatinamente, casos em que se fizesse necessária a revisão judicial dos contratos, deve-se reconhecer que foi o Código de Defesa do Consumidor quem primeiramente tratou do tema, permitindo a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;" (art. 6º, V)
Consoante se depreende do dispositivo em comento, o requisito para que se possa requerer a intervenção estatal em contrato regido pelo direito do consumidor, reside tão somente na verificação de fato superveniente que torne a obrigação demasiadamente onerosa ou excessiva, sendo dispensável, a questão da imprevisivilidade e extraordinariedade, que, como será vista, fazem parte dos requisitos constantes do artigo 478 do novo Código Civil.
De toda sorte, o Código de Defesa do Consumidor veio trazer significativo avanço ao direito contratual, porquanto restrito às relações jurídicas com características específicas, não se pode negar que irradiou seus efeitos pela jurisprudência e doutrina pátria, o que se mostra particularmente correto dizer quando da análise da nova Lei Civil.
A única observação que deve ser feita reside no fato de que antes do advento do Código Civil de 2002, a jurisprudência exigia como requisitos para que se autorizasse a revisão contratual, a existência de fatos imprevisíveis e irresistíveis, sendo que sem a presença destes deveria fazer prevalecer a força obrigatória dos contratos.
Como o objetivo deste estudo é demonstrar que o direito brasileiro não mais comporta o conceito ampliado que tem sido dado à figura do consumidor, em especial pela conotação que pode atingir a expressão destinatário final (art. 2º, CDC), mister se faz tecer considerações a respeito das inovações trazidas pelo novo Código Civil, no que tange a conceder uma proteção mais eficaz aos jurisdicionados de modo geral.