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A possibilidade alteração dos contratos no novo Código Civil e a necessária revisão do conceito de consumidor previsto na Lei nº 8.078/90

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01/05/2003 às 00:00
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O NOVO CÓDIGO CIVIL E O ACOLHIMENTO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

O Código Civil de 2002 trouxe em seu bojo significativas alterações, a despeito de ter pecado pela excessiva timidez em alguns casos, que contudo não lhe retira o mérito pelos avanços obtidos, em especial no que diz respeito ao direito contratual e no campo da responsabilidade civil.

Denota-se fundamentalmente a preocupação do legislador com a questão da finalidade a que se destina o contrato, como meio de circulação de riquezas e fomento da economia, mas principalmente, atingindo seu fim social, em detrimento do pensamento eminentemente patrimonialista existente no Código Civil de 1916.

Exemplo disso reside no artigo 421, ao estabelecer que "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

É o que se pode denominar de socialização dos contratos, sendo importante o pensamento de CLÁUDIA LIMA MARQUES, invocando a lição de EMILIO BETTI, a respeito do assunto:

"Para o grande mestre italiano, Betti, a autonomia da vontade não seria a fonte única da obrigação. Na sua famosa definição, a autonomia da vontade deveria ser entendida como auto-regulamentação de interesse de particulares. O contrato seria um ato de auto-regulamentação de interesse das partes, e, portanto, por excelência, um ato de autonomia privada, mas este ato deveria ser realizado nas condições permitidas pelo direito, pois só assim a lei dotaria de eficácia jurídica o contrato. A posição dominante, portanto, é da lei."

(Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 177)

Ao depois, arremata a jurista em comento aduzindo que sobre referido fator "O direito dos contratos socializado redescobre o papel da lei, que não será mais meramente interpretativa ou supletiva, mas cogente (veja art. 1º do CDC). A lei protegerá determinados interesses sociais e servirá como instrumento limitador do poder da vontade.(...). Como resultado desta mudança de estilo de pensamento, as leis passam a ser mais concretas, mais funcionais e menos conceituais. É o novo ideal de concretude das leis, que para alcançar a solução dos novos problemas propostos pela nova realidade social (título 2.2), opta por soluções abertas, as quais deixam a larga margem de ação ao juiz e à doutrina, usando freqüentemente noções-chaves, valores básicos, princípios como os de boa fé, eqüidade, equilíbrio, equivalência de prestações e outros." (ob. cit., p. 178-179)

Portanto, a visão do legislador, no que deve ser observada pelos demais operadores do direito, necessariamente será direcionada para a atenção a certos valores na análise do caso concreto.

Por função social entende-se o desiderato que a parte na relação jurídica deverá atingir, pautada na conduta proba e de boa fé dos contraentes (art. 422), bem como na indispensável proteção que deve ser conferida ao mais fraco no negócio, inclusive possibilitando a intervenção do Poder Judiciário em casos específicos.

Da leitura do artigo 422 do Código Civil chega-se à inolvidável conclusão de que o princípio da boa fé objetiva veio a ingressar definitivamente à sistemática dos contratos, valendo citar novamente o indispensável escólio de CLÁUDIA LIMA MARQUES:

"Boa-fé objetiva significa, portanto, atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitndo-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes."

(ob. cit., p. 181-182)

Neste contexto é que ganha importância o acolhimento da teoria da imprevisão na sistemática nacional, tratada nas linhas do direito civil geral, em consonância com os princípios que embasam a moderna teoria do direito contratual, sendo de relevo que isso se verifique no Código Civil, diploma geral, e não somente naqueles de natureza específica, como de fato ocorria no Código de Defesa do Consumidor.

A experiência brasileira, pode-se dizer, assemelha-se à verificada na Alemanha, onde o BGB trata das relações negociais em sua parte geral, inclusive da possibilidade de alteração das relações jurídicas contratuais, desde que se verifiquem determinadas situações, o que antes somente ocorria em legislações esparsas.

Deve-se frisar que existem vários aspectos positivos na posição adotada pelo novo Código Civil brasileiro, no sentido de conferir ao jurisdicionado de um modo geral, e não somente àqueles que podem ser considerados como consumidores, a proteção necessária em casos de desequilíbrio da relação contratual.

Pois bem, o Código Civil, em seu artigo 317, faz uma primeira alusão à possibilidade de alteração das relações jurídicas em caso de manifesta desproporcionalidade, ao preceituar que:

"Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação."

Ora, esse dispositivo, por si só, já seria bastante para afirmar que a teoria da imprevisão veio a ser definitivamente aceita no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista sua clareza ao dispor sobre a alteração da relação jurídica firmada entre as partes, desde que presentes determinados requisitos.

De toda sorte, o legislador fez questão de dedicar seção específica para a teoria da imprevisão, denominada Resolução por Onerosidade Excessiva, que em seus artigos 478 a 480 prevê as hipóteses onde será admitida a revisão ou mesmo solução dos contratos em que se verifique a alteração radical da situação fática que ensejou a celebração do negócio.

O Código Civil, ao prever a possibilidade de revisão da relação jurídica nos artigos mencionados, e considerando-se ainda a excepcionalidade da hipótese, faz menção a certos pressupostos que deverão ser observados, a saber: a) tratar-se de contrato de execução continuada ou diferida; b) ocorrer situação de extrema onerosidade para uma das partes, ao mesmo tempo ensejando manifesta vantagem para a outra; c) a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

A primeira observação a ser feita reside na análise de quais contratos admitem a revisão sob o argumento da onerosidade excessiva. Parece estreme de dúvidas, consoante a leitura do artigo 478 do Código Civil, que somente os contratos comutativos de execução diferida no tempo podem verificar a necessidade de interferência do Judiciário.

De fato, não se pode deixar de concluir que os contratos aleatórios não se prestam a revisão judicial por desproporcionalidade da obrigação, especialmente porque o risco e a incerteza são traços característicos de sua formação, onde os contraentes assumem posições de dúvida quanto à exata extensão de sua prestação. A propósito, cita-se o entendimento de CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO:

"Não é a todos os contratos que se aplica a teoria da imprevisão – seu campo de incidência não é ilimitado. Pode ser invocada essa teoria, com efeito, somente em se tratando de certas espécies contratuais, de acordo com os lindes traçados pela doutrina e pela jurisprudência.

Assim, é plenamente possível a utilização da teoria em apreço em se tratando de contratos comutativos de execução diferida, continuada ou periódica, não se podendo dela cogitar para a resolução de contratos aleatórios, ou unilaterais."

(ob. cit., p. 23)

Por certo, aceitar a invocação da teoria da imprevisão em contratos aleatórios, que têm como principal característica o risco assumido pelas partes no que toca à extensão das obrigações, seria o mesmo que negar a existência dessa modalidade contratual.

Requisito que também deverá ser observado para que se possa invocar a teoria da imprevisão é a onerosidade excessiva decorrente da extraordinariedade e imprevisibilidade de certos acontecimentos como fator condicionante da possibilidade de alteração do contrato.

Por fatos extraordinários e imprevisíveis deve-se entender aqueles que não eram pretendidos pelas partes no momento da contratação, nem mesmo passíveis de previsão. Importante, nesse sentir, transcrever o ensinamento de SÍLVIO RODRIGUES:

"A idéia é evitar que nos contratos comutativos em que, por definição, há uma presumível equivalência das prestações, o tempo desequilibre a antiga igualdade, tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa em relação à da outra. Se isso ocorrer e inspirado no preceito que evita o enriquecimento sem causa (...), permite o legislador que, a pedido do interessado, o juiz determine a rescisão do contrato.

Note-se que o desequilíbrio das prestações deve derivar de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, pois a fonte inspiradora do codificador de 2002 foi a conhecida teoria da imprevisão."

(Direito Civil, Volume III, Editora Saraiva, 28ª Edição, São Paulo, 2002, p. 132)

Dessarte, resta inescondível o intuito do legislador brasileiro em conferir maior proteção ao jurisdicionado em geral, com intento de manter o equilíbrio nas relações contratuais.

Deve-se ressaltar que o objetivo e principal vantagem do reconhecimento explícito da teoria da imprevisão no sistema normativo pátrio reside justamente no fato de que existe um norte para o operador do direito seguir na solução do caso concreto, o que, em última análise, aumenta a segurança jurídica das partes envolvidas na questão.

Outrossim, como conseqüência das inovações trazidas a respeito da resolução dos contratos por onerosidade excessiva, que atingem os jurisdicionados de um modo geral, sendo indiferente a posição por eles ocupada na relação negocial, não se pode negar que tornou-se necessária uma revisão do conceito de consumidor, ou melhor dizendo, da teoria a ser aplicada para delimitar qual categoria de pessoas gozaria da proteção concedida pelo Código de Defesa do Consumidor.


DAS INOVAÇÕES NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Diante das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 no tocante à responsabilidade civil, como forma de se alcançar de forma satisfatória a reparabilidade plena, inegável que houve uma tendência do legislador, independente da qualidade de consumidor da pessoa física ou jurídica que esteja envolvida em determinado litígio, em aproximar-se dos ideais modernos de justiça e do processo civil, como instrumento de pacificação social.

A inclusão do parágrafo único ao artigo 927 do Código Civil traz a inafastável conclusão de que a responsabilidade objetiva veio a ser definitivamente abraçada pelo direito pátrio, não mais como foros de excepcionalidade, mas como regra geral a ser buscada no intento de se conceder a devida indenização pelos danos causados a outrem. A respeito, transcreve-se o dispositivo em enfoque:

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"Art. 927. (...)

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

Com efeito, não se pode negar que a expressão utilizada pelo legislador, no sentido de mencionar que responderá objetivamente pelos danos causados a outrem aquele que pratique atividade que cause risco a terceiros é ampliar por demais os casos de responsabilidade objetiva, quase que tornando geral essa regra.

Assim, o jurisdicionado, ainda que não seja encarado como consumidor, poderá valer-se de todos os meios protetivos necessários, ainda que a relação não seja efetivamente regida pelo CDC, para fazer valer seus direitos, dado que o Código Civil ampliou consideravelmente as possibilidades de indenização ao utilizar-se da expressão risco para os direitos de outrem. Neste sentido, importante transcrever o ensinamento de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

"Trata-se da mais relevante inovação introduzida no atual Código Civil, no que tange à responsabilidade civil. Antes, a responsabilidade independentemente de culpa somente existia nos casos especificados em leis especiais. Atualmente, mesmo inexistindo lei que regulamente o fato, pode o juiz aplicar o princípio da responsabilidade objetiva (independente de culpa), baseando-se no dispositivo legal mencionado, "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

(Comentários ao Código Civil, Volume XI, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 313)

Este também é o posicionamento de SÍLVIO RODRIGUES, ao comentar o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, ao ponderar que "A segunda hipótese é de considerável interesse, pois se inspira diretamente na teoria do risco em sua maior pureza. Segundo esta, como vimos, se alguém (o empresário, por exemplo), na busca de seu interesse, cria um risco de causar dano a terceiros, deve repará-lo, mesmo se agir sem culpa, se tal dano adveio. (...) Muito aplauso merece o legislador de 2002 pela inovação por ele consagrada. Em conclusão, poder-se-ia dizer que o preceito do novo Código representa um passo à frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porte para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando no prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade." (Direito Civil, Volume IV, Editora Saraiva, 19ª Edição, São Paulo, 2002, p. 162)

Ainda no tocante à responsabilidade civil, merece destaque o artigo 931 do Código Civil, ao preceituar que "Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação."

O dispositivo citado, ao determinar que os empresários, sejam individuais, ou constituídos sob a forma de sociedade, responderão ainda que sem culpa, pelos danos decorrentes dos produtos (devendo-se entender serviços também) colocados em circulação, torna inconcussa a conclusão de que nem todas as relações de consumo podem ser enquadradas na Lei 8.078/90.

Com efeito, partindo-se de uma interpretação ampla (teoria maximalista) quase que a totalidade das relações comerciais atualmente podem ser consideradas como se de consumo fossem, dado que existe sempre a aquisição de produtos ou serviços, muitos deles a serem retirados da cadeia produtiva.

Todavia, o que resta indisfarçável no artigo 931 do Código Civil é justamente que não se pode mais conceber, à luz das inovações trazidas pelo novo diploma, uma conceituação ampla e irrestrita da expressão de consumidor, como vinha ocorrendo antes de seu advento, porquanto existe agora um diploma geral que confere a mesma proteção aos jurisdicionados de um modo geral, sem que seja necessário o recurso à legislação específica.

Vale ainda menção aos artigos 936 a 940, que tratam da responsabilidade objetiva dos detentores de animais, proprietários de imóveis ou construções, bem como do credor que demandar por cobrança de dívida já paga, denotam a tendência que já se mostrava anteriormente irreversível, em se aumentar as hipóteses de indenização sem culpa.

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Sobre o autor
Gustavo Passarelli da Silva

Advogado e Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - UFMS, Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP, em cursos de graduação e pós-graduação, de Direito Civil na Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul e Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro - UGF/RJ, Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia/ESA da OAB/MS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Passarelli. A possibilidade alteração dos contratos no novo Código Civil e a necessária revisão do conceito de consumidor previsto na Lei nº 8.078/90. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4046. Acesso em: 18 abr. 2024.

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