Os Reintegráveis

29/06/2015 às 23:49
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A discussão sobre ressocialização por uma perspectiva da rotulação, muitas vezes indevida, ao individuo.

Trataremos alguns conceitos empregando o termo “reintegráveis” designando as pessoas que são selecionadas pela força punitiva do Estado, ou seja, o sistema penal, a fim de encontrar situações que possam servir de escopo para a justificativa da ressocialização que é inexistente, e, a grande dificuldade da aceitação social desses reintegráveis em questão. 

 O sistema

            Em seu conceito de identidade HALL[1] preocupa-se com o sujeito deslocado diante a uma crescente globalização e mudanças de valores, costumes e normas, causando uma crise de identidade. As mudanças societárias que ocorrem faz com que paradigmas sejam rapidamente esquecidos por outros novos, que são impostos pela sociedade que caminha a passos largos. Em seus escritos no livro intitulado “A identidade cultural na pós modernidade” duas escolas foram pesquisadas: O sujeito do Iluminismo tinha como base o conceito de centralidade na pessoa humana e sua racionalidade. Já o sujeito sociológico seria caracterizado por sua capacidade de interação com o mundo e o sujeito pós-moderno seria composto por várias identidades.

            Essas formas de se reconhecer como individuo de uma sociedade é totalmente aceita quando vivemos não apenas uma cultura mas um turbilhão de pensamentos, vontades, formas de se enxergar o mundo que podemos chamar também de multiculturalismo. Dessa forma, voltamo-nos ao sistema penal e sua forma de “ressocialização” que serve não apenas para rotular a imagem do presidiário que cumprira sua pena mas também para aniquilar com sua identidade.

            O sistema penal é lascivo no sentido em que a luta do ser humano se faz para sua afirmação identificadora dentro do grupo que convive. Quanto mais negado pelo grupo e ao mesmo tempo sem defesa perante esse grupo mais a identidade sofre um desvio automático. O sistema penaliza não apenas o corpo e sua liberdade mas também a forma com a qual o ser humano se identifica perante aos outros e sua interação com o mundo, aniquilando as varias identidades que traz o mundo pós moderno descrita por Hall.

            Quanto mais exaurido de si mesmo menos é a vontade do preso de persistir com sua identidade num ambiente que não o aceita. A partir do momento que há a integração do sujeito no sistema prisional recai sobre ele uma nova identidade que vai cerceando a antiga e tomando formas novas. Essa nova visão de si mesmo é adaptada ainda mais com suas novas necessidades dentro do presídio. Do lado de fora, outra identidade é construída, uma nova forma de ser humano é pensada, o ex-presidiário[2]. Esse rótulo torna mais fácil localizar o individuo, uma vez que ele já fez parte do sistema penal. Alem de rotulado, sua identidade faz parte do rol de pessoas que provavelmente voltem a cometer crimes. A partir do momento da teoria supracitada, passou-se a estudar cada vez mais o criminoso, e menos o crime ou seus motivos, o porquê de haver mais homicídios em um lado da cidade, mais latrocínios em outros etc.. O estudo do individuo como criminoso portador do rótulo e da marca que lhe é imputada no sistema penal é uma previa peculiar do que acontece nos dias atuais no âmbito criminológico: a perseguição e a marcação cerrada dos órgãos de controle em cima de pessoas que possuem o estereotipo marginal, ou seja, aquele que vive como um Outsider vivendo em seu grupo e margeando a sociedade. A construção de identidade de HALL desta forma é avaliada conforme os órgãos máximos do Estado pregarem contra o sujeito que uma vez fez parte de seu sistema carcerário.

            A partir do momento que as penas privativas de liberdade têm a função simples de privar o individuo de sua liberdade e apenas isso, ela está formando um novo caráter, uma nova identidade. FREUD[3] em O Mal estar da Civilização diz que:

“Uma satisfação irrestrita de todas as necessidade apresenta-se como método mais tentador de conduzir nossas vidas, isso porem, significa colocar o gozo antes da cautela, arrecatando logo seu próprio castigo.”

            Freud salienta que o individuo é inimigo da civilização uma vez que em todos os homens existem tendências destrutivas, anti sociais e anti culturais. A civilização portanto, trava uma luta constante contra o homem isolado e sua liberdade, substituindo o poder do individuo para o poder da comunidade. A civilização distingue o homem delinqüente como aquele que saiu da prisão, pois ele é aquele que não teve o domínio de suas pulsões e de fato colocou suas tendências destrutivas a mostra. A força da comunidade em não aceitar o reintegravel em seu meio ganha mais adeptos ainda mais quando o Estado não o prepara para interagir com essa comunidade, e muito menos, a sociedade para com ele.

STONEQUIST (1937), “o homem marginal é aquele que através da migração, educação, casamento, ou alguma outra influência, abandona um grupo social ou cultura sem realizar um ajustamento satisfatório em outro, e encontra-se na margem de ambos, sem pertencer a nenhum.” Então incluímos nessa lista de Stonequist o homem que por crime fora privado de liberdade porém, apenas a pena e as pessoas de dentro do presídio foram sua companhia por determinado tempo, sem qualquer tipo de preparação, de formação e educação, acompanhamento familiar, reuniões familiares, consultas com profissionais de inúmeras áreas da saúde, palestras e serviços prestados a comunidade. O preso comum hoje no Brasil é o assassino maior no futuro pela falta de programas como esses citados acima, por esmero capricho. Gasta-se mais o bolso do contribuinte, os impostos não foram feitos para manter os encarcerados educados ou com visão de futuro, certamente, não há aqui nem um estimulo de Estado de Bem Estar Social[4].

            Stonequist diz que a medida em que as culturas forem conflitantes pode-se enfrentar algum tipo de problema, nesse caso estudado, um real perigo. A partir do momento em que, posto em liberdade, não há aceitação nem de sua experiência e menos ainda de sua vida, um estopim é aceso. Estudos recentes vêm demonstrando que essa situação de estar entre duas culturas pode dar origem a uma terceira, que se expressa não em um só indivíduo, mas como categoria social que, face às barreiras culturais, está impedida de participar plena e legitimamente do grupo que a influencia. Essa dialética pode ser para pior, criando um grupo outsider totalmente desregrado e contra uma sociedade a qual ele deveria fazer parte, a mesma que hoje ele também não aceita e declarou indiferença. Nesse ínterim, afirmamos que a tentativa de ressocialização é inexistente em todos os âmbitos uma vez que não há interesse estatal, não há também interesse do detento já que o rotulo recai sobre ele em uma sociedade que não é incentivada a reintegrá-lo.

            Vivemos em uma sociedade global de riscos, em que tudo pode ser transformado em uma bomba altamente destrutiva. Todas as decisões se tornam imprevisíveis e podem gerar um risco grandioso. Tratar a liberdade do detento como mera quinquilharia é um risco enorme, como vimos, transforma sua identidade, primeiro a destruindo e depois a tornando diferente para a sociedade. Depois, sem alguma preparação esse individuo é reposto na comunidade sem qualquer responsabilidade estatal, e por fim ainda sofre um rótulo eterno que o demarca como gado em um rebanho, nesse nosso caso, em um grupo.

            A partir do momento que, sem educação, sem apoio familiar muitas vezes, sem suporte, morando em lugares considerados de risco, e, alem de tudo isso rotulado, o reintegravel passa a ser não apenas mais uma pessoa na comunidade. Passa a ser o ex presidiário. O que acontecer de diferente pode muito bem ser por causa dele, ou seja, quando algo sai errado é o primeiro a ser lembrado. O perigo dessa rotulação que não é feita apenas pela policia, é o individuo começar a aceita-la de fato, mediante a falta de perspectiva e chances. Aceitando-a, o reintegravel passa a ser realmente um obstáculo para a sociedade, agindo de forma marginal a ela, e ainda, tendo motivos que ele considera serem corretos para isso. Agir contra a comunidade pode ser, subjetivamente, uma regra integra e correta para aquele que por ela não foi aceito. Ulrich BECK traz a sociedade de risco:

“Vivemos numa sociedade mundial do risco, não só no sentido de que tudo se transforma em decisões cujas conseqüências se tornam imprevisíveis, ou no sentido das sociedades de gestão do risco, ou naquele das sociedades do discurso sobre o risco. Sociedade do risco significa, precisamente, uma constelação na qual a idéia que guia a modernidade, isto é, a idéia da controlabilidade dos efeitos colaterais e dos perigos produzidos pelas decisões tornou-se problemática, uma constelação na qual o novo saber serve para transformar os riscos imprevisíveis em riscos calculáveis, mas deste modo produz, por sua vez, novas imprevisibilidades, o que constringe a reflexão sobre os riscos. Através desta "reflexividade da incerteza", a indeterminabilidade do risco no presente se torna, pela primeira vez, fundamental para toda a sociedade, de modo que devemos redefinir nossa concepção da sociedade e nossos conceitos sociológicos.”

            Seguindo então o pensamento de Beck, estamos formando e idealizando dessa forma a sociedade de risco, transformando indivíduos que provavelmente poderiam ser reintegráveis a sociedade em bombas relógio que podem explodir a qualquer momento, pela destruição de sua perspectiva de vida, de aceitação e de sua própria identidade. 

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           2 Conclusão

   Dessa maneira afirmamos que não há ressocialização, não há planejamento do Estado e nem preparação para nenhum dos pólos em questão: o presidiário, que chamamos aqui de reintegrável e da sociedade que o acolhe após sua saída da penitenciaria. Há sim, uma transformação daquilo que o ser humano traz consigo, sua identidade que se forma com o decorrer da vida é transformada e refeita nas carceragens e, a pulsão do ódio contra o outro que não o aceita pode transformar o individuo em um risco muito maior ainda, o que, vem a fazer sofrer a sociedade que ele vive, pois transforma-se em uma sociedade de risco. A cultura conflitante do ex preso diante a cultura das pessoas fora dos muros prisionais se colidem a partir do momento da não aceitação, quase que majoritária da comunidade. A falta de perspectiva junto com a descrença para com o individuo, os anos que ele passou “emperrado” em um local desumano sem ganhos intelectuais ou de experiências positivas transformam o individuo em uma identidade avassaladora, irreconhecível, pronta para retornar a qualquer momento a prisão.

            A maneira qual um rótulo é posto e imposto ao reintegravel é sobretudo desumana, pois mediante seu estereotipo, suas vestimentas e seu local de habitação há a probabilidade de serem outras pessoas próximas também rotuladas, a fim de facilitar o reconhecimento pela força de policia do Estado de quem é culpado, pois quem é inocente não faz parte dessa massa. Há aí a elitização.

            O suposto rotulo de quem é selecionado pela força penal e segue para as prisões permanece com o individuo, diante a sociedade e diante ao Estado e a policia, porem, não vemos políticas sócio educativas a fim de acabar com essa disparidade que existe, muito menos auxilio na transição ex detento – novo cidadão, que deveria começar dentro dos presídios.

[1] Natural de Kingston – Jamaica, nascido em 03 de fevereiro de 1932, Stuart Hall, vive na Grã-Bretanha desde 1951. Estuda o conceito de identidade tendo como base de seu trabalho o estudo da identidade Iluminista e Sociológico.

[2] Becker, Howard S. – Outsiders, 1960. Estudos sobre a Teoria do Etiquetamento ou Labeling Approach.

[3] Freud, Sigmund – O mal estar da Civilização , 1929, Escrito às vésperas do colapso da Bolsa de Valores de Nova York (1929), é uma investigação sobre as raízes da infelicidade humana, sobre o conflito entre instintos e cultura e a forma que ele assume na civilização moderna.

[4] Beck distingue dois processos de modernização na história recente das sociedades. A primeira modernização é identificada como aliada ao processo de industrialização e construção da sociedade de massas. Nesta era industrial o centro da estrutura cultural e social era a família. Já a segunda modernização ou modernização reflexiva, própria da sociedade atual, tende à globalização e está em constante desenvolvimento tecnológico, rompendo com a centralidade do núcleo familiar e dando lugar à individualização. No bojo deste processo aumenta a incerteza do indivíduo e instaura-se a Sociedade do Risco. Estas mudanças afetam não só o plano pessoal como o plano das instituições, a partir de novas políticas de governo muitas vezes aliadas a concepção econômica neoliberal.

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Sobre o autor
Iverson Kech Ferreira

Advogado especializado em Direito Penal. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional (2014) e Pós Graduação pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal. É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com enfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal. Associado aos quadros de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil desde Março 2015.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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