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A interligação entre as bacias hidrográficas como pressuposto para a proteção do equilíbrio ambiental e da qualidade de vida

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24/09/2017 às 10:40
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3. DOS RECURSOS HÍDRICOS

Os recursos hídricos presentes no território nacional são imensos, conforme comprova levantamento da Agência Nacional de Águas- ANA, em 2007, transcrito na parte em que interessa:

No País, a precipitação média anual é de 1.797 mm. As maiores precipitações anuais são observadas nas regiões Amazônica (2.239 mm), Tocantins/ Araguaia (1.837 mm), Atlântico Nordeste Ocidental (1.790 mm) e Uruguai (1.785 mm); ao passo que os menores valores ocorrem nas regiões hidrográ- ficas do São Francisco (1.037 mm), Atlântico Leste (1.058 mm), Parnaíba (1.117 mm) e Atlântico Nordeste Oriental (1.218 mm).

[...]

A vazão média anual dos rios em território brasileiro é de 179 mil m3/s, valor que corresponde a aproximadamente 12% da disponibilidade mundial de água doce. A região hidrográfica Amazônica detém 73,6% dos recursos hídricos superficiais.

Ou seja, a vazão média desta região é quase três vezes maior que a soma das vazões das demais regiões hidrográficas. Considerando a contribuição de vazões em território estrangeiro, a vazão média anual total atinge valor da ordem de 267 mil m3/s, que corresponde a 18% da disponibilidade mundial. A segunda maior região, em termos de vazão média, é a do Tocantins/Araguaia, com 13.624 m3/s (7,6%), seguida da região do Paraná, com 11.453 m3/s (6,4%). As bacias com menor vazão são, respectivamente: Parnaíba, com 763 m3/s (0,4%); Atlântico Nordeste Oriental, com 779 m3/s (0,4%) e Atlântico Leste, com 1.492 m3/s (0,8%).

[...]

Em épocas de estiagem, a vazão no País chega a 85 mil m3/s (vazão com permanência de 95%). Considerando as séries temporais de vazões existentes no Brasil, o período considerado crítico, ou seja, aquele correspondente às menores vazões observadas, estende-se de 1949 a 1956. Com exceção da região hidrográfica do São Francisco, que teve o seu período crítico entre 1999 a 2001, quando ocorreu racionamento de energia elétrica em todo o País. As maiores vazões de estiagem (vazão com permanência de 95%) estão nas regiões Amazônica, Paraná e Tocantins/Araguaia, ao passo que as menores estão nas bacias do Atlântico Nordeste Oriental, Parnaíba e Atlântico Leste. As bacias localizadas em terrenos cristalinos, com regime de chuva irregular, possuem vazões de estiagem muito baixas, em geral, inferiores a 10% da vazão média. (ANA, 2007, p. 113) (destacamos)

Os recursos hídricos, todavia, não são aproveitados nem geridos adequadamente. Bem ressalvam Bittencourt e Pereira (2014, p. 98) que “o nítido e acelerado aumento da população e o desenvolvimento industrial e tecnológico têm trazido graves prejuízos ambientais”, notadamente “relacionados à água, tanto através de esgotos domésticos, como de escoamentos industriais e da chuva” em áreas urbanas, por vezes se misturando ao lixo e poluindo “de forma generalizada e alarmante”, e que há, ainda, “a poluição causada por acidentes ecológicos, que podem ser gigantescos e atingir diversas comunidades e localidades ao mesmo tempo”. Não se ignora, pois, que “enquanto o índice de atendimento da população no abastecimento de água atingiu 81,2% em 2008, o atendimento na coleta de esgoto foi de apenas 43,2%”, dos quais 66% recebia tratamento (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2010, p. 6-7) e que, dos 100 maiores municípios brasileiros, “57 investem 20% ou menos do que arrecadam” em saneamento básico[5] (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2014, p. 29); tampouco que da água tratada para o abastecimento humano quase 35% se perca somente na distribuição (BARROS e THOMAS, 2015, p. 70)[6].

Não bastasse a degradação ambiental, que torna a água imprópria para consumo e revela o subaproveitamento dos recursos hídricos, as modificações climáticas globais agravam a questão da seca no semiárido brasileiro e reduzem os índices pluviométricos em inúmeros Estados, sobremaneira nos da região Sudeste[7]; sazonalmente, ademais, inúmeros Estados sofrem com eventuais transbordamentos de cursos d’água ao longo dos anos[8], resultando em grandes transtornos sociais e em elevado prejuízo à economia[9]. Essa situação gera uma oscilação no volume dos cursos d’água: nas regiões que recebem maior quantidade pluvial, ultrapassa a média, e naquelas que recebem menor quantidade de chuvas, fica muito aquém; existem regiões, ainda, que sofrem as consequências de um aumento da vazão pelo degelo da Cordilheira dos Andes e pelas chuvas, antes de ingressaram no território nacional[10]. E na região em que tradicionalmente há escassez de chuvas, como no semiárido, empioram as dificuldades.

Daí porque, entre 1990 e 2010, aproximadamente 86 milhões de pessoas, direta ou indiretamente, sofreram, no Brasil, por conseqüência da seca ou das enchentes, sendo que 5,5 milhões “foram diretamente expostas a esses desastres”; nesse período, “1.780 pessoas morreram nos eventos que ocasionaram os desastres”, mas “o número de mortes efetivamente causadas por eles chega a 460 mil, caso se incluam doenças e outros males desencadeados pelas tragédias” (LISBOA, 2013)[11]. E sem reversão do aquecimento global, a tendência é de agravamento dessa situação:

Os números mostram que, até 2100, as mudanças seriam consideráveis. A previsão é que o clima local ficaria muito mais seco que o atual, com redução de até 45% das chuvas, e mais quente, com aumento de temperatura variando de 5°C a 6°C - compatível com os piores cenários produzidos pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. O levantamento revela, no entanto, que o problema não está tão distante quanto parece. Os primeiros efeitos já seriam sentidos nos próximos 30 anos, quando as chuvas poderão ser reduzidas em 10%.

Na caatinga, a situação seria semelhante, indicando que as recentes secas registradas no Nordeste devem estar incluídas num contexto maior de mudanças climáticas. Nas próximas três décadas, as chuvas seriam reduzidas em até 20% nessa área já tão árida. Esse percentual de queda poderia chegar a alarmantes 50% até o fim do século, com sério agravamento do déficit hídrico do Nordeste. A tendência da redução de chuvas e aumento das temperaturas também aparece para o cerrado, o Pantanal e a porção da Mata Atlântica no Nordeste. (O GLOBO)

3.1 A QUEM PERTENCEM OS RECURSOS HÍDRICOS

A Constituição Federal, no art. 20, III, dispõe que, dentre outros, são bens da União “os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”.

Já no art. 26, I, da Carta Magna, estão arrolados, dentre os bens estaduais, “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Como explica Mercier (2013, p. 200- 2001):

As águas fluentes são os rios. Rio é toda corrente contínua de água mais ou menos caudalosa, que flui em direção a outro rio, ao mar ou a um lago. A Constituição da República adotou o critério da situação territorial para separar os rios de domínio da União dos rios dos Estados. Assim, os rios que banham mais de um Estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham são rios de domínio da União (art. 20, III, CF), e os rios que tenham sua nascente e foz apenas no território de um Estado Federado pertencem a esse Estado Federado.

Ao dispor sobre bens públicos, o Código Civil estabelece, no art. 99, I, que, dentre eles, estão “os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”. Essa disposição, aliás, já estava presente no art. 66, I, da revogada legislação civil de 1916. 

A Lei nº 9.433/97 reconhece que água é um bem público:

Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I - a água é um bem de domínio público;

II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;

IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;

V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. (destacamos)

A água, portanto, “é um dos elementos do meio ambiente”, fazendo “com que se aplique à água o enunciado do art. 225 da CF”, lembra Machado (2013, p. 499), que conclui:

Salientamos as conseqüências da conceituação da água como “bem de uso comum do povo”: o uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão absoluta dos outros usuários em potencial; o uso da água não pode significar a poluição ou a agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado e a concessão ou a autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público. (MACHADO, 2013, p. 500)

3.2 DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

Inúmeros eram os argumentos favoráveis e contrários às obras para que as águas do Rio São Francisco fossem transpostas para outras regiões do semiárido brasileiro (PALLADINO, 2005). Todavia, com a aprovação da Resolução nº 47, de 17 de janeiro de 2005, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos concedeu autorização para início dos trabalhos. No endereço eletrônico do Ministério da Integração Nacional está posto que        

O Projeto de Integração do Rio São Francisco é a mais relevante iniciativa do governo federal dentro Política Nacional de Recursos Hídricos. O objetivo é garantir a segurança hídrica para mais de 390 municípios Nordeste Setentrional, onde a estiagem ocorre freqüentemente.

A região Nordeste possui 28% da população brasileira e apenas 3% da disponibilidade de água, o que provoca grande irregularidade na distribuição dos recursos hídricos, já que o rio São Francisco apresenta 70% de toda a oferta regional.As bacias beneficiadas pela água do rio São Francisco serão: Brígida, Terra Nova, Pajeú, Moxotó e bacias do Agreste, em Pernambuco; Jaguaribe e Metropolitanas, no Ceará; Apodi e Piranhas-Açu, no Rio Grande do Norte; Paraíba e Piranhas, na Paraíba. Essas bacias têm uma oferta hídrica per capita bem inferior à considerada como ideal pela Organização das Nações Unidas (ONU), que é de 1.500 m3/hab/ano. A disponibilidade no Nordeste Setentrional por habitante ao ano é de 450 m3, em média.Este empreendimento, além de recuperar 23 açudes, vai construir outros 27 reservatórios, que funcionarão como pulmões de água para os sistemas de abastecimento do agreste, fornecendo 6 m³ por segundo.

  Entrementes, em que pese os inquestionáveis benefícios para as populações que terão acesso à água por consequência da transposição, a obra consiste na retirada de certa quantidade de água de um curso e na sua transferência para outro curso[12]. Ou seja, da regular vazão do Rio São Francisco será extraído constantemente determinado volume suficiente para atender grande parcela do semiárido.    

3.3 DA INTERLIGAÇÃO DAS BACIAS HIDROGRÁFICAS PARA A TRANSFERÊNCIA DO EXCEDENTE

Afloram, ocasionalmente, notadamente nos períodos de forte estiagem nas regiões mais populosas, ideias de transferir água dos grandes rios da região Amazônica para suprir a escassez desse recurso essencial à vida. Como declarou a Superintendência Regional do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), seria possível a transferência de 1% da vazão do Rio Amazonas para as regiões Sudeste e Nordeste, o que supriria a necessidade de abastecimento: “Os grandes rios estão longe das grandes concentrações populacionais do país. Os problemas com abastecimento de água poderiam ser solucionados com obras que levassem água do Rio Amazonas para as regiões afetadas” (SEVERIANO, 2015).

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A questão, contudo, não se limita à análise da possibilidade de uma bacia hidrográfica suprir eventual deficiência de outra em território nacional, e do impacto ambiental que essa transferência ocasionaria. Isso porque essa contínua transferência resultaria tão só num acréscimo constante na quantidade de água disponível nas regiões beneficiadas[13], apenas isso, e não o enfrentamento dos problemas oriundos das ocasionais chuvas torrenciais e conseqüentes enchentes e inundações: essa quantidade a mais de água disponibilizada continuaria a ser mal utilizada e desperdiçada.

Destarte, a solução hídrica nacional exige, além da utilização racional da água, do tratamento universal dos efluentes e do saneamento básico, com o consequente tratamento dos esgotos e disponibilização de água tratada e própria ao consumo, da constituição de uma rede de interligação entre as diversas bacias hidrográficas nacionais, e dentro delas, entre seus cursos d’água.

O escopo primeiro não seria atender a uma região que, sazonalmente, sente a escassez da água, mas sim em estabelecer um fundo hídrico com o excedente dos cursos d’água nacionais. E tão somente dos excedentes, conferindo uma destinação útil ao volume que excedesse as margens. Houvesse algo similar, as grandes chuvas que acometeram a região Sudeste em 2013, e que fizeram transbordar inúmeros rios, seriam adequadamente armazenadas; as previsíveis inundações causadas pelos abruptos aumentos nas vazões de rios da Amazônia, como o Amazonas e o Madeira, seriam evitadas, porque o excesso de água seria retirado dos leitos antes de atingir os centros urbanos[14].

As necessidades ocasionais de recursos hídricos, bem como a regular assistência à região do semiárido, seriam satisfeitas com aqueles armazenados nos diversos depósitos, verdadeiros lagos artificiais, que receberiam o constante afluxo dos excessos da universalidade das bacias hidrográficas brasileiras. Dito de outro modo, com a interligação entre os cursos d’água, e entre suas respectivas bacias, arrecadando o volume que excedesse a vazão máxima aceitável, seriam minimizados os efeitos nocivos da elevada pluviosidade e, observado o limite máximo variável conforme as peculiaridades locais, seriam evitadas enchentes, inundações e toda a gama de tragédias, prejuízos e dissabores que lhes são indissociáveis; além disso, como consequência desse processo preventivo, haveria um ativo ambiental hídrico inegável, pois a água armazenada nos depósitos teria o objetivo de funcionar como um regulador desse sistema integrado, assegurando a vazão mínima aceitável entre os cursos d’água da rede, minimizando a amplitude entre o máximo e o mínimo, conforme os ecossistemas envolvidos.

Deste modo, grande parte dos problemas causados pelo excesso de chuvas seria minimizada, porque os cursos d’água não transbordariam; o excesso na vazão, extraído por meio de estações de coleta estabelecidas ao longo das margens, seria conduzido ao depósito e devidamente armazenado. Da mesma forma com os rios da Amazônia, que hodiernamente transbordam também pelo excesso de água recebida ainda antes de adentrarem em território nacional, constituiriam importantes fontes de suprimento à mantença do armazenamento controlado de água e consequente regulador do sistema.

A interligação entre as diversas bacias hidrográficas, nos campos macro e micro, se por um lado exigem grandes investimentos, por outro representam a efetiva atuação do Poder Público na proteção da qualidade de vida não apenas às gerações presentes, mas principalmente àquelas que hão de vir.

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Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. A interligação entre as bacias hidrográficas como pressuposto para a proteção do equilíbrio ambiental e da qualidade de vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5198, 24 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40728. Acesso em: 23 abr. 2024.

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