INTRODUÇÃO
Zygmunt Bauman apresenta uma leitura perspicaz da situação em que se encontram as "cidades globais". O presente artigo traça as linhas fundamentais daquilo que se pode considerar a dinâmica básica em torno da qual giram as principais cidades do mundo. Uma espécie de destino que parece indicar o futuro.
Nos últimos anos, sobretudo na Europa e em suas ramificações no ultramar, a forte tendência a sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras. Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana. Castel atribui a culpa por esse estado de coisas ao individualismo moderno. Segundo ele, a sociedade moderna, substituindo as comunidades solidamente unidas e as corporações (que outrora definiam as regras de proteção e controlavam a aplicação dessas regras) pelo dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo, foi construída sobre a área movediça da contingência: a insegurança e a idéia de que o perigo esta em toda parte são inerentes a essa sociedade[1].
CONFIANÇA E MEDO NAS CIDADES GLOBAIS
Um dos principais desafios do Estado moderno sempre foi o de enfrentar a tarefa desencorajadora de administrar o medo. Foi obrigado a tecer de novo a rede de proteção que a revolução moderna havia destruído, e repará-la repetidas vezes, à medida que a modernização, promovida por ele mesmo, só a deformava e desgastava. Ao contrário do que se é levado a pensar, no coração do "Estado social", êxito inevitável da evolução do Estado moderno, havia mais proteção (garantia coletiva contra as desventuras individuais) que redistribuição da riqueza. Para as pessoas desprovidas de recursos econômicos, culturais ou sociais (de rodos os recursos, exceto da capacidade de realizar trabalhos manuais), a proteção só pode ser coletiva.
Os medos modernos tiveram início com a redução do controle estatal, a chamada desregulamentação e suas conseqüências individualistas, no momento em que o parentesco entre homem e homem, aparentemente eterno ou pelo menos presente desde tempos imemoriais, assim como os vínculos amigáveis estabelecidos dentro de uma comunidade ou de uma corporação, foi fragilizado ou até rompido. O modo como a modernidade sólida administrava o medo tendia a substituir os laços "naturais", irreparavelmente danificados por outros laços artificiais, que assumiam a forma de associações, sindicatos e coletivos. A solidariedade sucedeu a irmandade como melhor defesa para um destino cada vez mais incerto.
Quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos - escassos e claramente inadequados. A corrosão e a dissolução dos laços comunitários nos transformaram, sem pedir nossa aprovação, em indivíduos de direito, mas circunstâncias opressivas e persistentes dificultam que alcancemos o status implícito de indivíduos de fato. Se, entre as condições da modernidade sólida, a desventura mais temida era a incapacidade de se conformar, agora, depois da reviravolta da modernidade líquida, o espectro mais assustador é o da inadequação[2].
Mais ou menos do mundo inteiro, começam a se evidenciar nas cidades certas zonas, certos espaços, fortemente correlacionados a outros espaços de valor, situados nas paisagens urbanas, na nação ou em outros países, mesmo a distâncias enormes, nos quais, por outro lado, se percebe muitas vezes uma tangível e crescente sensação de afastamento em relação às localidades e às pessoas fisicamente vizinhas, mas social e economicamente distantes[3].
Nesse nosso mundo que se globaliza, a política tende a ser cada vez mais apaixonada e conscientemente local. Como foi banida do ciberespaço, ou teve seu acesso vetado, ela se volta para as questões locais, as relações de bairro. Para a maioria de nós, e na maior parte do tempo, elas parecem ser as únicas questões em relação às quais se pode fazer alguma coisa, sobre as quais é possível influir, recolocando-as nos eixos, melhorando-as, modificando-as. O nosso agir ou não agir só pode fazer a diferença quando se trata de questões locais, enquanto para as outras questões, declaradamente supralocais, não existem alternativas. Acabamos por suspeitar, com os recursos penosamente inadequados de que dispomos que esses assuntos seguirão seu curso, não importa o que façamos ou nos proponhamos a fazer de maneira razoável.
Em poucas palavras: as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. Os cidadãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar e resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para contradições globais. Daí o paradoxo destacado por Castells: políticas cada vez mais locais num mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Houve uma produção de sentido e de identidade: a minha vizinhança, a minha comunidade, a minha cidade, a minha escola, a minha árvore, o meu rio, a minha praia, a minha igreja, a minha paz, o meu ambiente. As pessoas desarmadas diante do vórtice global fecharam-se em si mesmas[4].
A política local e particularmente a política urbana, encontra-se hoje desesperadamente sobrecarregada, a tal ponto que não consegue mais operar. E nós pretendíamos reduzir as conseqüências da globalização incontrolável justamente com os meios e com os recursos que a própria globalização tornou penosamente inadequados.
As cidades contemporâneas são os campos de batalha nos quais os poderes globais e os sentidos e identidades tenazmente locais se encontram, se confrontam e lutam, tentando chegar a uma solução satisfatória ou pelo menos aceitável para esse conflito: um modo de convivência que possa equivaler a uma paz duradoura, mas que em geral se revela antes um armistício, uma trégua útil para reparar as defesas abatidas e reorganizar as unidades de combate. É esse confronto geral, e não algum fator particular, que aciona e orienta a dinâmica da cidade na modernidade líquida, de todas as cidades, sem sombra de dúvida, embora não de todas elas no mesmo grau[5].
O terreno no qual presumivelmente nossas perspectivas de vida têm fundamento é evidentemente instável, assim como os trabalhos que realizamos e as empresas que oferecem esses trabalhos, nossos parceiros, nossa rede de amizades, a posição que ocupamos na sociedade mais ampla, assim como a auto-estima e a confiança em nossas capacidades, que derivam dessa posição. O progresso, antes manifestação extrema de otimismo radical e promessa de uma felicidade duradoura e universalmente compartilhada, resultou no contrário do que prometia.
A arquitetura do medo e da intimidação espalha-se pelos espaços públicos das Cidades, transformando-a sem cessar, embora furtivamente, em áreas extremamente vigiadas, dia e noite. A inventividade não tem limites nesse campo. Nan Ellin menciona alguns engenhos, na maioria de origem norte-americana, mas amplamente imitados, à prova de mendigos: bancos de forma mais ou menos cilíndrica que contêm sistemas de irrigação e foram colocados nos parques de Los Angeles (Copenhague foi além, eliminando todos os bancos da estação central e obrigando os passageiros a espera de baldeação a se acomodarem no chão), ou sistemas de irrigação combinados a um ensurdecedor estrondo de música eletrônica, muito úteis para afastar desocupados e vagabundos dos arredores dos discount[6].
A alternativa à insegurança não é a beatitude da tranqüilidade, mas a maldição do tédio. É possível derrotar o medo e ao mesmo tempo suprimir o tédio? Podemos suspeitar que esse seja o maior dilema que arquitetos e planejadores têm de enfrentar, um dilema para o qual ainda não foi encontrada uma solução convincente, adequada e indiscutível, uma questão à qual não se pode dar resposta totalmente satisfatória. No entanto, é um problema que (talvez exatamente por isso) continuará a levar arquitetos e planejadores a experimentações cada vez mais radicais e a saídas cada vez mais audaciosas.
O autor acrescenta que hoje compreendemos que esse progresso para a civilização não é uma conquista, mas uma permanente luta cotidiana. Combate jamais totalmente vitorioso, que muito provavelmente não alcançará sua meta, mas que continua a ser encorajado pela esperança de vencer[7].
Retomando trechos de uma conferencia proferida pelo autor no congresso “confiança e medo na cidade”, em Milão, em março de 2004, são importantes as colocações de Bauman no sentido de que para explicar seu ambiente e sua origem, devemos recordar antes de mais nada que as cidades nas quais vive atualmente mais da metade do gênero humano, são de certa maneira os depósitos onde se descarregam os problemas criados e não resolvidos no espaço global. São depósitos sob muitos aspectos. Existe, por exemplo, o fenômeno global de poluição do ar e da água e a administração municipal de qualquer cidade devem suportar suas conseqüências, deve lutar apenas com os recursos locais para limpar as águas, purificar o ar, conter as marés. O hospital do bairro onde vocês moram pode estar em crise, e essa crise reflete tais problemas, as preocupações financeiras, reflete o desconhecido e remoto conflito em curso entre os colossos farmacêuticos, que têm se batido pelos chamados direitos de propriedade intelectual, que colocam no mercado determinados fármacos e tratam logo de aumentar os preços, de tal modo que o seu hospital não consegue mais cuidar dos pacientes[8].
Essa não é uma história nova. Sempre, e em todo lugar, desde o início da modernidade, existe gente supérflua ao nosso redor. Mas agora há uma diferença. Saibam, pois, que a modernização, esse novo estilo de vida que produz gente supérflua, antes estava limitada a algumas zonas da Europa, era um privilégio. Nessa época, o resto do mundo podia servir de depósito para a superfluidade produzida de início na Europa e depois em suas ramificações. A modernidade venceu, e celebramos o triunfo mundial do moderno estilo de vida: livre mercado, economia e consumo livres (e McDonald’s para todos)[9].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, o que o autor pretende dizer é que essas cidades são laboratórios nos quais se descobrem, experimentam e aprendem certos requisitos indispensáveis para a solução dos problemas globais. Isso é o contrário do que eu afirmei antes, quando falei da supremacia do espaço global, que descarrega seus problemas sobre nós, sobre as pessoas do local. Agora estou falando de algo que vai no sentido oposto. Aqui, na cidade, podemos dar nossa contribuição aprendendo essa arte que será indispensável para construir uma coexistência segura, pacífica e amigável no mundo inteiro.
A sociedade humana é diferente do bando de animais. Nela, alguém poderia ajudar um inválido a sobreviver. Ela é diversa porque tem condições de conviver com inválidos, tanto que poderíamos dizer, historicamente, que a sociedade humana nasceu com a compaixão e com o cuidado do outro, qualidades apenas humanas. A preocupação contemporânea está toda aí: levar essa compaixão e essa solicitude para a esfera planetária. Sei que gerações precedentes já enfrentaram essa tarefa, mas vocês terão de prosseguir nesse caminho, gostem ou não, a começar por sua casa, por sua cidade e já.
REFERÊNCIAS
[1] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. trad. Eliana Aguiar. Zahar: Rio de Janeiro, 2009. p. 16.
[2] 2009. p. 21.
[3] 2009. p. 25.
[4] 2009. p. 32.
[5] 2009. p. 35.
[6] 2009. p. 63.
[7] 2009. p. 73.
[8] 2009. p. 78.
[9] 2009. p. 81.