Direito ao esquecimento: comentários ao acórdão no REsp 1.335.153/RJ

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4. Direito ao Esquecimento e o caso Aida Curi

Após essa breve introdução ao conceito de direito ao esquecimento e suas aplicações práticas no ordenamento jurídico brasileiro, cabe analisar, especificamente, a sua atuação no Caso Aida Curi. Surge aqui um conflito entre direitos fundamentais: o direito à informação e o direito à honra, à intimidade e à imagem. Como nenhum desses é absoluto e todos encontram-se positivados no texto constitucional, para resolver eventuais conflitos, aplica-se o chamado método da ponderação. Ao pleitear a ação de danos moras, materiais e à imagem, os irmãos Curi alegam violação do direito à imagem, à honra e à intimidade (que se desdobram em direito ao esquecimento).

Verifica-se, então, uma colisão entre liberdade de informação e os direitos da personalidade, ambos de estatura constitucional, envolvendo Aida Curi e seus familiares. O STJ ao analisar o caso aceitou a tese de que a liberdade de imprensa possui algumas limitações, como:

(I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi)

(REsp 801.109/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2012).

Os irmãos de Aida Curi alegam, nos autos, que a ausência de contemporaneidade da notícia provocou a reabertura de feridas já cicatrizadas e proclamam o seu direito ao esquecimento, ou seja, de não ter, contra a sua vontade – visto que previamente mostraram-se contra a confecção do material feito pela Globo – divulgado o caso de sua irmã.

Surge aqui, uma questão importante da colisão: até que ponto a divulgação do nome e da imagem de Aida Curi eram imprescindíveis para tratar do caso? Não poderia a editora, respeitando a vontade dos irmãos, usar nome fictício no programa? Por outro lado, aparece uma outra questão ímpar no caso: até que ponto deve se levar em consideração o sofrimento alegado pelos parentes? Será que realmente houve uma reabertura de feridas tão grave? São questionamentos como esses que fazem com que as pessoas e, inclusive, os julgadores competentes tomem posições diferentes.

Considerando que o caso trata justamente de Aida, a omissão da sua figura levaria uma informação imprecisa ao público e a emissora de televisão estaria sofrendo uma espécie de censura prévia. O documentário trata de um acontecimento que faz parte da história daquela sociedade e, portanto, a audiência deveria ter acesso na íntegra – impossibilitando, assim, a não divulgação da imagem e do nome de Aida.

Um outro ponto a ser considerado é que, nesse caso, a aplicação do direito ao esquecimento diferencia-se da aplicação majoritária nos tribunais: o mais comum é a busca do impedimento de divulgação de informações para facilitar a ressocialização do condenado que já cumpriu a sua pena. Entretanto, objetiva-se, com essa ação, evitar a divulgação porque a família não quer relembrar fato tão marcante. Acredita o grupo que é uma argumentação fraca dos autores da ação visto que não é possível aferir que realmente houve um dano por parte da família.

A passagem do tempo, em relação a familiares de vítimas de crimes, opera um efeito inversamente proporcional: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um ‘direito ao esquecimento’, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes. Portanto, o direito exigido pelos irmãos Curi não parece, ao ver do colegiado, relevante o suficiente para justificar indenização por parte da ré.

Schreiber enuncia uma relação entre a carência de informações a respeito dos casos tratados e o programa exibido pela emissora:

Ao final do programa, o telespectador estará convencido da versão apresentada, não restando qualquer dúvida de que os fatos se passaram daquela forma. A culpa do criminoso está definitivamente comprovada. Saltam aos olhos, entretanto, os riscos que podem advir de tal certeza. Não é difícil verificar em alguns casos a fragilidade da versão dos fatos apresentados na televisão

(SCHREIBER, Simone. A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 362-363).

E é por isso que há de se ter sempre um compromisso com a veracidade dos fatos buscando tratar os envolvidos da forma mais respeitosa possível.

Os defensores da liberdade de imprensa afirmam que o direito ao esquecimento funciona como uma censura prévia e permite com que desapareçam informações, afrontando, assim, o direito à memória de toda uma sociedade. Usam, ainda, o termo “delírio da modernidade”, pois acreditam que os direitos buscam regular a relação indivíduo-sociedade, enquanto esse busca fingir que aquela relação não existe. Paulo R. Khouri apresenta uma leitura mais particular, no sentido de que se deve “ponderar caso a caso os valores em jogo e pode ocorrer que o direito ao esquecimento deva ser sacrificado em prol da liberdade de informação”. 3

A indenização do uso da imagem de Aida não procede visto que, como reconhecido pelas instâncias inferiores ao STJ, não houve utilização da imagem de forma degradante ou desrespeitosa. Nos moldes da jurisprudência, não houve uso indevido com fins comercias que justificassem a indenização. Eis aqui uma sentença importante e que ilustra bem esse ponto:

[...] a ré ateve-se à reprodução dos fatos ocorridos na época, enaltecendo, inclusive, a imagem da vítima (irmã dos autores), ao ressaltar seu comportamento recatado, sua ingenuidade, e religiosidade, chegando a compará-la a Maria Gorete: “... uma camponesa italiana que resistiu à fúria de um tarado sexual pois não queria perder a pureza. Maria Gorete foi santificada pela Igreja Católica (fl. 864, com grifo no original)

Os familiares afirmam que, durante a reportagem exibida pelo Linha Direta, somente uma imagem de Aida Curi fora revelada ao público e o restante fora feito por atores contratados. Fato que corrobora a negação da indenização, visto que reforça a ideia de que a reportagem tratava do crime em si e não da vítima especificamente.

O direito ao esquecimento ainda ganha espaço na doutrina brasileira e é uma consequência dos direitos constitucionais à honra, à vida privada e à intimidade. Não foi possível a sua aplicação no caso de Aida visto que, já falecida, o argumento dos irmãos não fora forte o suficiente para convencer os julgadores de que o crime não deveria ser exibido em rede nacional. Ainda tendo muito que percorrer, o direito ao esquecimento é um elemento importante em nosso ordenamento e, principalmente com as inovações tecnológicas, é um ponto em que temos que avançar de modo a garantir, cada vez mais, uma defesa consistente dos direitos a personalidade.


5. Comentários acerca da decisão final do STJ

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como visto anteriormente, negou provimento ao recurso dos irmãos de Aida Curi, que visavam obter indenização pelo dano moral causado pelo documentário exibido pela TV Globo, beneficiando, nesse sentido, a liberdade de informação em detrimento do direito ao esquecimento, apesar de reconhecer a aplicação e importância do instituto. Diante disso, nosso grupo, após análise exposta no decorrer do presente trabalho, caminhou para o mesmo entendimento: reconhecemos a importância do direito ao esquecimento, mas acreditamos, ao analisar o caso em questão, que este não deve prevalecer.

Segundo o entendimento de Nelson Rosenvald o direito ao esquecimento é o “direito de impedir que dados e fatos pessoais de outrora sejam revividos, repristinados, no presente ou no futuro de maneira descontextualizada”. Percebe-se, assim, que para que se justifique uma possível “proibição” à remontagem de determinado acontecimento, este deve ser retratado de forma a expor a vítima a situação vexatória ou constrangedora, sem que se verifique razão ou motivo plausível para tal. No entanto, ao analisarmos o Caso Aida Curi, torna-se evidente, que a emissora televisiva utilizou sua imagem para a elaboração de um documentário, que para muito além da simples personificação de Aida Curi, abordou de maneira clara e objetiva o problema grave que gira em torno do abuso sexual. Além disso, como abordado na explanação acerca do caso, apenas uma imagem original de Aida fora utilizada; no decorrer do documentário as cenas foram gravadas por atores, enfatizando que, para o documentário, o principal “personagem” era o caso e não a vítima em si.

Ademais, cumpre ressaltar o longo período decorrido do fato até a data da apresentação do documentário. Passados cinquenta anos do acontecimento, diminui-se a dor e o constrangimento que envolve o caso, permitindo, dessa forma, que se trate da questão sem invadir de forma pejorativa a esfera pessoal da vítima. Assim, apesar de se reconhecer o direito a ser esquecido, ou seja, o direito de não mais ser lembrado por fato pretérito que de alguma forma reabra certas feridas, não se pode defender sua utilização irrestrita. Portanto, por mais que se reconheça a relevância do direito ao esquecimento, deve-se analisar o caso concreto e ponderar de forma razoável sua aplicação, como sintetiza, precisamente, Nelson Rosenvald:

O simples reconhecimento da existência efetiva de um direito ao esquecimento não conduz, por si só, ao imperativo dever de abster da informação (ou de indenizar a informação já publicada). [...] é preciso, pois, ponderar os interesses em conflito (personalidade, de um lado, liberdade de imprensa, do outro) para que se possa, caso a caso, deliberar a melhor solução.


6. Considerações Finais

O direito ao esquecimento é um desdobramento do preceito constitucional de proteção à intimidade e à vida privada que vem sendo aprofundado no ordenamento jurídico brasileiro nos últimos anos. Com o avanço tecnológico, acredita-se que a aplicação desse instituto se dará com mais frequência e nos diversos moldes possíveis.

Aliado a falta de normatização específica no Brasil, tem-se a jurisprudência ínfima sobre o assunto, não havendo, portanto, um consenso sobre a discussão. A doutrina, como pode se observar ao longo do presente artigo, assume posições divergentes e bem estruturadas. Acredita-se que a não aceitação do direito ao esquecimento no caso Aida Curi não acarreta uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana visto que a liberdade de informação lícita é um dos pilares do Estado democrático de Direito.

O grupo acredita que há de se fazer uma legislação específica sobre o tema no ordenamento brasileiro para que haja estabilidade e segurança jurídica.


Referências Bibliográficas

BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Disponível em: <https://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Bucar-civilistica.com-a.2.n.3.2013.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2015.

CABRAL, Bruno; ROSA, Raissa. “The right to be let alone”: considerações sobre o direito ao esquecimento. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28362/the-right-to-be-let-alone-consideracoes-sobre-o-direito-ao-esquecimento>. Acesso em: 10 jul. 2015.

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FONTES, Jamile. O direito ao (não) esquecimento como um direito humano. Disponível em: <https://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2014_1/jamile_fontes.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2015.

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REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 29 dez. 2014. Aplicação do direito ao esquecimento será julgada pelo Supremo. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-dez-29/aplicacao-direito-esquecimento-julgada-supremo>. Acesso: 10 jul. 2015.

RODRIGUES JUNIOR, Otávio. Brasil debate direito ao esquecimento desde 1990. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-nov-27/direito-comparado-brasil-debate-direito-esquecimento-1990>. Acesso em: 10 jul. 2015.

RULLI JÚNIOR, Antônio; RULLI NETO, Antônio. Direito ao esquecimento e o superinformacionismo: apontamentos no direito brasileiro dentro da sociedade da informação. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, n. 1, 2012.

SALIBA, José Carlos. O direito de ser esquecido. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/31705/o-direito-de-ser-esquecido>. Acesso em: 10 jul. 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direito Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, 5ª edição.

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SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013.

STEINER, Renata. Breves notas sobre o direito ao esquecimento. Disponível em: <https://www.academia.edu/10549595/Breves_notas_sobre_o_direito_ao_esquecimento>. Acesso em: 10 jul. 2015.


Notas

1 STJ, REsp nº 1.335.153/RJ, Quarta turma, rel. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJE 28.05.2013.

2 MORAES, Maria Celina Bodin de; KONDER, Carlos Nelson. Dilemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p.287).

3 KHOURI, Paulo R. O direito ao esquecimento na sociedade de informação e o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil. Revista de Direito do Consumidor, v. 89, set. 2013, p. 463.


Abstract: The following article aims to study the right to be forgotten and its applications in Brazilian territory with special focus in Aida Curi’s case. The subject does not take place in Brazilian juridical legislation, but, with constitutional interpretation and the creation of enunciations, getting space in national canary. The concrete study retracts it very well. It will be explained not only the goal and objective of this institute but also this adequacy or not to Aida Curi’s case.

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Sobre os autores
Vinicius Jóras Padrão

Estudante de Direito na Universidade do Estado do RIo de Janeiro - UERJ.

Miguel Rodrigues de Alcantara Salomão

Estudante na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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