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Estupro de vulnerável menor de 14 anos: presunção absoluta ou relativa?

30/07/2015 às 09:26
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O presente artigo estuda a possibilidade de relativização da vulnerabilidade sexual no crime previsto no art. 217-A do CP

 

A Lei dos Crimes contra a Dignidade Sexual – Lei 12015/2009, trouxe o tipo do art. 217-A do CP - estupro de vulnerável. Embora nova a referida tipologia penal, o que fez a lei foi estabelecer em um único tipo o estupro e o atentado violento ao pudor de vulneráveis, realizando a fusão do que antes estava tipificado no art. 213 e art. 214 c/c art. 224 do CP, aumentando, ainda, a pena. Mas não foi só isso que a lei mudou. Ao contrário da redação anterior que se falava em presunção de violência, agora a lei fala em vulnerabilidade.

 

 

Em outras palavras, o art. 217-A do CP sanciona a prática de conjunção carnal ou atos libidinosos contra vulneráveis, estabelecendo as hipóteses de sujeitos sexualmente vulneráveis.

 

Registre-se, apenas, que ato libidinoso é qualquer conduta – capaz de satisfazer a lascívia do agente – diverso da conjunção carnal. Trata-se de conceito, portanto, abrangente.

 

Encontra-se consolidado, no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que o delito de estupro, na atual redação dada pela Lei 12.015/2009, inclui atos libidinosos praticados de diversas formas, incluindo os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos, consumando-se o crime com o contato físico entre o agressor e a vítima. Precedentes: STJ, REsp 1.154.806/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, DJe de 21/03/2012; REsp 1.313.369/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, DJe de 05/06/2013; STJ, HC 154.433/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe de 20/09/2010. (STJ. AgRg no REsp 1359608/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2013, DJe 16/12/2013)

 

Essa vulnerabilidade, conforme o art. 217-A do CP, se dá em três hipóteses: a) menor de 14 anos; b) portador de enfermidade ou deficiência mental que em razão da patologia não tem o necessário discernimento para a prática do ato; c) aquele que em razão de qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

 

Trataremos das três hipóteses. Começamos pelas duas últimas.

 

A vulnerabilidade do portador de enfermidade ou deficiência mental que em razão da patologia não tem o necessário discernimento para a prática do ato, deve ser lida no sentido de que o crime só ocorrerá se a patologia que acomete a vítima lhe retirar o discernimento para a relação sexual (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Forense. p. 1055), no sentido de incapacidade biopsíquica de entender o ato sexual e de se autorreger com base nesse entendimento. Em outras palavras, crime só ocorrerá se provada a imaturidade biopsicoética, que afeta a livre determinação no plano das atividades sexuais. E não basta isso, o crime só ocorrerá quando o agente conhecer e se aproveitar dessa situação (MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Especial. Vol. 3. 5ª ed. Método. p. 55). Afinal, não se pode tolher daquele que possua uma enfermidade ou deficiência mental, o direito de amar e ter uma vida sexual. Assim, inclusive, prevê o Estatuto da Pessoa com Deficiência (art. 6º II da Lei 13146/2015).

 

A vulnerabilidade daquele que em razão de qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, abrange todos os motivos que retirem de alguém totalmente a capacidade de resistir ao ato sexual. Aqui se enquadram os casos de embriaguez completa por álcool e drogas, além de outras hipóteses (ex.: médico que dopa suas pacientes para com elas ter relações sexuais), que pode ser provocada pelo agente ou apenas aproveitada por ele. A vulnerabilidade de que aqui se cuida é aquela de caráter duradouro ou ao menos extensa o bastante para tornar impossível a resistência. Uma mera distração não é suficiente para caracterizá-la.

 

A vulnerabilidade do menor de 14 anos é a que mais desperta discussões. Duas posições se estabeleceram. A primeira, considera que a presunção de violência, agora transformada em vulnerabilidade, não é absoluta, podendo ser relativizada em casos excepcionais. Pugna essa doutrina que a vulnerabilidade pode ser relativizada, quando as circunstâncias do caso concreto indicarem que não houve violação (ou ameaça de lesão) ao bem jurídico tutelado – a dignidade sexual da vítima, aplicando-se, portanto, o princípio da ofensividade e da lesividade.

 

Para essa doutrina, circunstâncias como a maturidade da vítima, seu consentimento, sua experiência sexual anterior ou mesmo sua promiscuidade ou prostituição poderiam relativizar a vulnerabilidade. Como também poderia relativizar a vulnerabilidade a prática de relações sexuais ou atos libidinosos decorrentes de relacionamentos amorosos entre o agente e a vítima, aqui se valendo do princípio da adequação social, pois no mundo atual os jovens iniciam seus relacionamentos de forma cada vez mais precoce.

 

Defensor da possibilidade de relativização: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 4: parte especial, 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 100. Da mesma forma, Guilherme de Souza NUCCI, todavia, admitindo a relativização tão somente quando a vítima menor de 14 anos for adolescente (12 ou 13 anos):

 

 

A proteção conferida aos menores de 14 anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, subsumida na figura da vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. Se durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência – se relativo ou absoluto -, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo penal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real. O legislador brasileiro encontra-se travado na idade de 14 anos, no cenário dos atos sexuais, há décadas. É incapaz de acompanhar a evolução dos comportamentos na sociedade. Enquanto o ECA proclama ser adolescente o maior de 12 anos, a proteção ao menor de 14 anos continua rígida. Cremos já devesse ser tempo de unificar esse entendimento e estender ao maior de 12 anos a capacidade de consentimento em relação aos atos sexuais. Porém, assim não tendo sido feito, permanece válido o debate acerca da relatividade da vulnerabilidade do adolescente, vale dizer, do maior de 12 anos e menor de 14. A proteção à criança (menor de 12 anos), segundo nosso entendimento, ainda merece ser considerada absoluta no cenário sexual. (NUCCI. Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. RT. p. 37).

 

Para outra corrente exegética, o que a lei sempre trouxe ao presumir a violência – e agora com muito mais rigor ao trazer o conceito de vulnerabilidade – foi um dever geral, objetivo e absoluto de abstenção de relações sexuais com menores de 14 anos, visando evitar a precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes. Em outras palavras, a vulnerabilidade não admite relativizações, não importando o consentimento da vítima (que no caso não é válido), a experiência sexual anterior (ou que é pior, a prostituição infantil, que deve ser combatida de forma implacável) ou o relacionamento amoroso entre autor e vítima (incapaz de afastar o tipo penal).

 

Defensores da impossibilidade de relativização: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, v. III, Parte Especial, 9. ed. Niterói: Impetus, 2012, p. 532-534; MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Especial. Vol. 3. 5ª ed. Método. p. 53.

 

O STJ assim pacificou seu entendimento, em recurso repetitivo:

 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, "a", do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010). 2. No caso sob exame, já sob a vigência da mencionada lei, o recorrido manteve inúmeras relações sexuais com a ofendida, quando esta ainda era uma criança com 11 anos de idade, sendo certo, ainda, que mantinham um namoro, com troca de beijos e abraços, desde quando a ofendida contava 8 anos. 3. Os fundamentos empregados no acórdão impugnado para absolver o recorrido seguiram um padrão de comportamento tipicamente patriarcal e sexista, amiúde observado em processos por crimes dessa natureza, nos quais o julgamento recai inicialmente sobre a vítima da ação delitiva, para, somente a partir daí, julgar-se o réu. 4. A vítima foi etiquetada pelo "seu grau de discernimento", como segura e informada sobre os assuntos da sexualidade, que "nunca manteve relação sexual com o acusado sem a sua vontade". Justificou-se, enfim, a conduta do réu pelo "discernimento da vítima acerca dos fatos e o seu consentimento", não se atribuindo qualquer relevo, no acórdão vergastado, sobre o comportamento do réu, um homem de idade, então, superior a 25 anos e que iniciou o namoro - "beijos e abraços" - com a ofendida quando esta ainda era uma criança de 8 anos. 5. O exame da história das ideias penais - e, em particular, das opções de política criminal que deram ensejo às sucessivas normatizações do Direito Penal brasileiro - demonstra que não mais se tolera a provocada e precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes por adultos que se valem da imaturidade da pessoa ainda em formação física e psíquica para satisfazer seus desejos sexuais. 6. De um Estado ausente e de um Direito Penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos, paulatinamente, para uma Política Social e Criminal de redobrada preocupação com o saudável crescimento, físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil de nossa população, preocupação que passou a ser, por comando do constituinte (art. 226 da C.R.), compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, com inúmeros reflexos na dogmática penal. 7. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas - em menor ou maior grau - legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar. 8. Não afasta a responsabilização penal de autores de crimes a aclamada aceitação social da conduta imputada ao réu por moradores de sua pequena cidade natal, ou mesmo pelos familiares da ofendida, sob pena de permitir-se a sujeição do poder punitivo estatal às regionalidades e diferenças socioculturais existentes em um país com dimensões continentais e de tornar írrita a proteção legal e constitucional outorgada a específicos segmentos da população. 9. Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida nos autos da Ação Penal n. 0001476-20.2010.8.0043, em tramitação na Comarca de Buriti dos Lopes/PI, por considerar que o acórdão recorrido contrariou o art. 217-A do Código Penal, assentando-se, sob o rito do Recurso Especial Repetitivo (art. 543-C do CPC), a seguinte tese: Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime. (STJ. REsp 1480881/PI, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 10/09/2015)

 

E em enunciado sumular (súmula 593 do STJ):

 

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

O precedente (vinculante - por força do art. 927 III e IV NCPC) do STJ deve prevalecer. Tanto é que posteriormente a lei 13718/18 veio a consagrar parcialmente referido entendimento, estabelecendo no art. 217-A § 5º que as penas do crime de estupro de vulnerável aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

 O art. 217-A do CP deve ser lido com as lentes voltadas à Constituição Federal, ante o princípio da proteção integral (art. 227 §§ 1º e 3º e art. 229 da CF) e da proteção suficiente (art. 5º LIV da CF). Não se pode interpretar a legislação infraconstitucional de outro modo. Ante a superioridade das normas constitucionais, bem como o papel da Constituição de norma central do sistema, toda a legislação infraconstitucional deve ser obrigatoriamente interpretada à luz da Constituição, e não o contrário.

Deve-se observar que a criança e adolescente tem merecido especial proteção do Estado brasileiro, máxime a partir da nova ordem constitucional. Não é sem motivo que o art. 227 da Constituição Federal estabelece como dever não só da família e da sociedade, mas do Estado, “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. E, logo adiante, no parágrafo 4º do mesmo dispositivo constitucional, reforça-se o comando de que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.

Como princípio norteador dos direitos das crianças e adolescentes, especial ênfase deve ser dado ao princípio da proteção integral, que se baseia na ideia de que as crianças e adolescentes não são objeto de proteção, mas sim sujeitos de direito, merecedores de uma proteção diferenciada, eis que pessoas em condição de desenvolvimento biopsíquico. Ademais, a proteção deve ser integral, assegurando às crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais capazes de garantir a dignidade infantojuvenil, colocando-os a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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Lado outro, o art. 227 § 4º da CF trata do que o constitucionalismo moderno chama de mandato constitucional de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas. Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Exatamente o que acontece no dispositivo em referência (art. 217-A do CP). Portanto, não pode o legislador infraconstitucional, tampouco o exegeta, olvidar esse mandamento constitucional, como um verdadeiro imperativo de tutela.

 

Desta forma, a CF, expressamente, determinou a criminalização severa da iniciação prematura e precoce de crianças e adolescentes em atividades sexuais, tendência essa que se observa em quase todos os países do mundo, ante os riscos que tal comportamento pode ocasionar à personalidade – ainda em formação -  e ao desenvolvimento biopsíquico de crianças e adolescentes. Visa a CF, ao proibir e sancionar penalmente a prática de relações sexuais com menores de 14 anos, impedir a antecipação de experiências da vida adulta, evitando, em razão de comportamentos libidinosos prematuros, a marca de cicatrizes futuras, muitas das vezes escondidas no silêncio das palavras não ditas e na sombra de pensamentos perturbadores de almas marcadas pela infância roubada.

 

Assim, o legislador infraconstitucional, não pode proteger de forma insuficiente o bem jurídico que a Constituição expressamente determinou que deveria ser alvo de tutela criminal severa. Invoca-se aqui o princípio da proteção suficiente, como vertente do princípio da proporcionalidade.

 

Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. (STF. HC 104410, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012)

 

Com base no princípio da proteção suficiente - ou proibição da insuficiência - não pode o legislador, em matéria penal, agir de forma insuficiente, deficitária, a ponto de desproteger os bens jurídicos tutelados pelo sistema penal. Isso também se aplica ao hermeneuta.

 

O Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar [...] É nesse sentido que  - como contraponto da assim designada proibição do excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição da insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado). (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição do excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Org. Marcelo Novelino. LumenJuris. p. 269)

É sabido que a previsão dos direitos fundamentais, no corpo de uma Constituição reforça o compromisso do Estado para a sua proteção, cabendo ao intérprete e aplicador da norma extrair-lhe a máxima efetividade. Se a proteção da criança e adolescente e a preservação de sua dignidade sexual são metas prioritárias do Estado brasileiro, não se mostra ajustada ao novo paradigma constitucional a interpretação da norma que dificulte ou mesmo impeça essa proteção.

Daí a necessidade de uma interpretação constitucional do dispositivo (art. 217-A do CP), extraindo dele a proteção integral e suficiente ao bem jurídico tutelado – a dignidade sexual das crianças e adolescentes.

      Os costumes, a tecnologia e a modernidade, próprios de um mundo globalizado, não são inimigos da proteção infanto-juvenil. Ao contrário, são aliados dela.

 

Assim, reconhece a lei penal, em consonância com a CF, que aquele jovem menor de 14 anos pode até possuir conhecimento objetivo do que é o ato sexual, mas certamente não terá a maturidade psicoética, a plena e livre determinação no plano das atividades sexuais, capaz de entender o ato sexual e de se autorreger com base nesse entendimento. Isso dificilmente existe numa pessoa menor de 14 anos. Daí se legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce e prematura de crianças e adolescentes menores de 14 anos, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que uma criança ou adolescente de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar.

 

Não importa se a vítima já possui experiência sexual, mesmo assim o crime se perfaz, porquanto, ainda assim, estaria a conduta do agente a mantê-la em comportamento que a lei quer evitar. Ainda mais se a vítima, menor de 14 anos, for explorada sexualmente, comportamento que deve ser combatido de forma implacável.

 

Admite-se, é verdade, a incidência de erro de tipo (art. 20 do CP), passível de ocorrer, desde que devidamente provado, quando o agente, em razão de falsa percepção da realidade, ante as circunstâncias do caso (aparência física, relato da vítima, efemeridade de relacionamento, etc.), acredita sinceramente que a vítima possui mais de 14 anos, mantendo com ela relações sexuais ou libidinosas. A mera dúvida não afasta o crime. Lado outro, incabível a alegação de erro de proibição, ao argumento de desconhecimento da ilicitude do fato, ante a maciça publicidade brasileira contra a pedofilia.

 

O erro quanto à idade da ofendida é o que a doutrina chama de erro de tipo, ou seja o erro quanto a um dos elementos integrantes do erro do tipo. A jurisprudência do tribunal reconhece a atipicidade do fato somente quando se demonstra que a ofendida aparenta ter idade superior a 14 (quatorze) anos. Precedentes. (STF. RHC 79788, Relator(a):  Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 02/05/2000, DJ 17-08-2001 PP-00052 EMENT VOL-02039-01 PP-00142)

 

 

Fora dessa hipótese excepcionalíssima (erro de tipo), incidirá o art. 217-A do CP, tutelando de forma suficiente e integral a dignidade sexual de crianças e adolescentes menores de 14 anos, pessoas ainda em desenvolvimento mental, psíquico e biológico, quando vítimas de conjunção carnal ou atos libidinosos.

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Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Estupro de vulnerável menor de 14 anos: presunção absoluta ou relativa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4411, 30 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41151. Acesso em: 5 nov. 2024.

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