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Pedofilia no Estatuto da Criança e Adolescente: art. 241-E e sua interpretação constitucional

09/08/2015 às 15:33
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O presente artigo interpreta o art. 241-E do ECA sob a ótica dos princípios constitucionais da proteção integral e suficiente.

Pedofilia é uma forma doentia de satisfação sexual. Trata-se de uma perversão, um desvio sexual, que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças. Apesar da divergência conceitual entre médicos e psicanalistas, tendo-se como base a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, que no item F65.4, define pedofilia como preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade.

Os pedófilos podem se transformar em agressores sexuais ao converterem suas fantasias em atos reais, porém nem todos necessariamente assim fazem, pois a perversão sexual pode ficar em estado oculto, latente, sem manifestação exterior. Por outro lado, nem todos aqueles que agridem sexualmente de crianças são necessariamente pedófilos no sentido clínico. Assim, tecnicamente é mais adequado utilizar o termo agressor sexual para descrever as pessoas que mantém relações sexuais com crianças e adolescentes, já que este conceito inclui os pedófilos, mas não se limita a eles (RODRIGUES, William Thiago de Souza. A pedofilia como tipo específico na legislação penal brasileira. In http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5071).

Todavia, no âmbito estritamente jurídico, a pedofilia é comumente conceituada como o abuso sexual de crianças e adolescentes, ensejando inúmeros crimes previstos tanto no ECA, quanto no CP.

Assim, temos no CP os crimes contra a dignidade sexual, possuindo capítulo específico acerca dos crimes sexuais contra vulneráveis: art. 217-A do CP – estupro de vulnerável; art. 218 do CP – mediação de menor de 14 anos para satisfazer a lascívia de outrem; art. 218-A do CP – satisfação da lascívia mediante a presença de menor de 14 anos; 218-B do CP – favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável. O ECA também trata de crimes envolvendo a pedofilia: art. 240 do ECA – utilização de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica; art. 241 do ECA – comércio de material pedófilo; art. 241-A do ECA – difusão de pedofilia; art. 241-B do ECA – posse de material pedófilo; art. 241-C do ECA – simulacro de pedofilia; art. 241-D do ECA – aliciamento de crianças.

O art. 241-E do ECA trata-se de norma explicativa dos crimes previstos no art. 240, art. 241, art. 241-A a art. 241-D do ECA.

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.

A doutrina não tem poupado críticas a esse dispositivo, que a pretexto de aclarar, trouxe maiores perplexidades. De qualquer forma, o dispositivo não deve ser interpretado restritivamente, mas sim extensivamente.

A interpretação extensiva situa-se no processo de hermenêutica das leis e do Direito, diante da necessidade de solução do caso concreto submetido à jurisdição. Considera-se interpretação extensiva aquela em que seja necessária a ampliação do sentido da lei (OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. LumenJuris. 12ª ed. p. 24). Na interpretação extensiva, o texto da lei ficou aquém do que desejava. Necessita-se ampliar o seu alcance, para que assim possamos atingir o seu significado (TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Editora Juspodivm. 3ª ed. p. 39). A interpretação extensiva é admitida em matéria penal, mesmo se tratando de tipos penais incriminadores, ainda que venha a prejudicar o réu (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. Forense. 10ª ed. p. 37):

 

A interpretação extensiva no direito penal é vedada apenas naquelas situações em que se identifica um desvirtuamento na mens legis. (STF. RHC 106481, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011).

 

Assim vejamos. O legislador trouxe o conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica, compreendo qualquer situação que envolva crianças ou adolescentes em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou a exibição de órgãos genitais de crianças ou adolescentes para fins primordialmente sexuais. Quando o legislador trouxe o conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica, compreendo qualquer situação que envolva crianças e adolescentes em atividades sexuais, não limitou a expressão à prática de conjunção carnal ou atos libidinosos envolvendo crianças e adolescentes. Atividade sexual é expressão abrangente, capaz de abarcar a conjunção carnal, atos libidinosos e outros comportamentos eróticos, capazes de satisfazer a lascívia alheia, tal qual a exibição do corpo vestindo apenas roupas íntimas, a exibição dos seios, abrangendo, ainda, o streap-tease, dança sensual, utilização de uma fantasia erótica, etc., envolvendo crianças e adolescentes. Basta a conotação sexual, libidinosa ou erótica. Basta o fim primordialmente sexual previsto na norma explicativa.

O objetivo foi evidentemente não criminalizar as fotos, imagens e vídeos familiares, pois muito comum que pais registrem fotos e vídeos de seus filhos, muitas das vezes despidos, todavia, sem qualquer fim sexual, libidinoso ou erótico. O mesmo se diga no tocante às imagens de órgãos genitais de crianças e adolescentes, constantes em livros de medicina, não cabendo sua criminalização.

A definição legal de pornografia infantil apresentada pelo artigo 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente não é completa e deve ser interpretada com vistas à proteção da criança e do adolescente em condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º do ECA), tratando-se de norma penal explicativa que contribui para a interpretação dos tipos penais abertos criados pela Lei nº 11.829/2008, sem contudo restringir-lhes o alcance.  É típica a conduta de fotografar cena pornográfica (art. 241-B do ECA) e de armazenar fotografias de conteúdo pornográfico envolvendo criança ou adolescente (art. 240 do ECA) na hipótese em que restar incontroversa a finalidade sexual e libidinosa das fotografias, com enfoque nos órgãos genitais das vítimas - ainda que cobertos por peças de roupas -, e de poses nitidamente sensuais, em que explorada sua sexualidade com conotação obscena e pornográfica. (STJ. REsp 1543267/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 03/12/2015, DJe 16/02/2016)

Como se não bastasse, deve-se invocar ainda a interpretação conforme a Constituição, ante o princípio da proteção integral (art. 227 §§ 1º e 3º e art. 229 da CF) e da proteção suficiente (art. 5º LIV da CF).

Não se pode interpretar a legislação infraconstitucional de outro modo. Como sabido, o constitucionalismo contemporâneo é chamado de neoconstitucionalismo. Este apresenta algumas características: a) a normatividade das regras e dos princípios; b) a superioridade das normas constitucionais; c) a centralidade da Constituição, assumindo o papel de norma centralizadora do sistema (BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. JusPodivm. 3ª ed. p. 152). Ante a superioridade das normas constitucionais, bem como o papel da Constituição de norma central do sistema, toda a legislação infraconstitucional deve ser obrigatoriamente interpretada à luz da Constituição, e não o contrário.

Deve-se observar que a criança e adolescente tem merecido especial proteção do Estado brasileiro, máxime a partir da nova ordem constitucional. Não é sem motivo que o art. 227 da Constituição Federal estabelece como dever não só da família e da sociedade, mas do Estado, “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. E, logo adiante, no parágrafo 4º do mesmo dispositivo constitucional, reforça-se o comando de que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.

Como princípio norteador dos direitos das crianças e adolescentes, especial ênfase deve ser dado ao princípio da proteção integral, que baseia-se na ideia de que as crianças e adolescentes não são objeto de proteção, mas sim sujeitos de direito, merecedores de uma proteção diferenciada, eis que pessoas em condição de desenvolvimento biopsíquico. Ademais, a proteção deve ser integral, assegurando às crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais capazes de garantir a dignidade infantojuvenil, colocando-os a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Lado outro, o art. 227 § 4º da CF trata do que o constitucionalismo moderno chama de mandato constitucional de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas. Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Exatamente o que acontece no dispositivo em referência. Portanto, não pode o legislador infraconstitucional, tampouco o exegeta, olvidar esse mandamento constitucional, como um verdadeiro imperativo de tutela.

            Desta forma, a CF, expressamente, determinou a criminalização severa da exploração sexual de crianças e adolescentes. Assim, o legislador infraconstitucional, não pode proteger de forma insuficiente o bem jurídico que a Constituição expressamente determinou que deveria ser alvo de tutela criminal severa. Invoca-se aqui o princípio proteção suficiente, como vertente do princípio da proporcionalidade.

Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. (STF. HC 104410, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012)

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Como sabido, o princípio da proporcionalidade (na sua dupla acepção: proibição do excesso e proibição da insuficiência) possibilita a ponderação das circunstâncias do caso concreto para a obtenção do resultado mais justo e coerente com o sistema jurídico-constitucional.

 

Com base no princípio da proteção suficiente (ou proibição da insuficiência), não pode o legislador, em matéria penal, agir de forma insuficiente, deficitária, a ponto de enfraquecer o sistema penal, e, consequentemente, desproteger os bens jurídicos tutelados pela norma penal.

É sabido que a previsão dos direitos fundamentais, no corpo de uma Constituição reforça o compromisso do Estado para a sua proteção, cabendo ao intérprete e aplicador da norma extrair-lhe a máxima efetividade. Se a proteção da criança e adolescente e a preservação de sua dignidade são metas prioritárias do Estado brasileiro, não se mostra ajustada ao novo paradigma constitucional qualquer norma que dificulte ou mesmo impeça essa proteção.

Daí a necessidade de uma interpretação constitucional do dispositivo (art. 241-E do ECA), extraindo dele a proteção integral e suficiente ao bem jurídico tutelado – a dignidade sexual das crianças e adolescentes.

Críticas a essa exegese certamente virão, à luz do garantismo penal-constitucional. Todavia, sob minha ótica, pensar dessa maneira é visualizar de forma estrábica e míope o Direito Penal Constitucional.

 

Em outras palavras, ao se levar ao extremo o garantismo, observamos um enfraquecimento do sistema penal e processual penal, e, consequentemente, dos aparatos estatais atuantes na persecução criminal, atenuando, por conseguinte, o poder-dever estatal de punir criminosos, de desmantelar grandes organizações criminosas, de coibir graves crimes (como a pedofilia), enfim, mitigando a possibilidade de transformar a realidade social em prol da paz, segurança e do bem comum, exatamente o que se espera do sistema judicial e em especial do sistema judicial-penal.

 

O que se propõe é uma nova perspectiva, à luz do constitucionalismo moderno, que pode ser chamada de direito penal funcional-garantista. A norma penal e processual penal não estão unicamente direcionadas às limitações e garantias atribuídas ao acusado, mas também estão estruturadas de modo que não se tornem obstáculo aos objetivos de política criminal de bons resultados (MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. Quartier Latin. p. 294-295). Em outras palavras, a eficiência na atuação do jus puniendi pressupõe um direito penal e processual penal garantistas e, a um só tempo, funcionais, no qual os direitos fundamentais do acusado são respeitados e os bens jurídicos tutelados são suficientemente protegidos.

 

 

Conclui-se, portanto, que o art. 241-E do ECA deve ser interpretado extensivamente e à luz da Constituição Federal, com base nos princípios da proteção integral e da proteção suficiente.

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Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Pedofilia no Estatuto da Criança e Adolescente: art. 241-E e sua interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4421, 9 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41178. Acesso em: 22 nov. 2024.

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