Os governos da França, do Reino Unido e a empresa Eurotúnel deflagraram um embate verbal após novos incidentes envolvendo imigrantes em suas tentativas de cruzar clandestinamente a fronteira do Canal da Mancha. Na noite entre terça e quarta-feira passada, cerca de 2.300 imigrantes procuraram alcançar o solo inglês a partir da cidade francesa de Calais, e um deles, de origem sudanesa, morreu atropelado por um caminhão. Desde junho, já são nove mortes registradas em invasões similares no local, numa média de 1.500 a 2.000 tentativas de intrusão diárias. Já em Paris, um jovem egípcio de 17 anos morreu ontem eletrocutado ao pular sobre o teto de um trem na estação Gare du Nord.
Calais vira “nova selva” e abriga campos de migrantes no coração da Europa. Mas a situação ali não é nova, pois, a cerca de dois quilômetros dali, proliferam-se campos de migrantes, não conhecidos de forma oficial nem pela França nem pela comunidade internacional.
Sem esse status, os estrangeiros são considerados clandestinos e não contam com apoio da ONU, que estipula padrões sanitários mínimos para seus campos.
O Eurotúnel é a nova rota utilizada pelos imigrantes na sua fuga da miséria e da pobreza. Milhares deles tentam cruzar o Eurotúnel para o Reino Unido.
A extrema-direita francesa denuncia o que considera “a frouxidão das políticas migratórias europeias”.
Temos notícias de que imigrantes ilegais caminham por trilhos que levam ao Eurotúnel em Calais, na França. Aliás, o país reforçou o policiamento em resposta à crise migratória após um sudanês morrer tentando travessia para o Reino Unido.
O líder do UKIP (Partido Independente do Reino Unido), Nigel Farage, defendeu o uso das Forças Armadas britânicas para buscar imigrantes ilegais nos veículos que chegam ao país.
De um lado, o governo do Reino Unido permanece a pensar o seu território se utilizando da repressão penal e administrativa para impedir a entrada desses famintos seres humanos que buscam uma esperança: a vida.
De outro, devem estar os que entendem o problema como uma questão humanitária. E é.
É certo que há um vácuo de poder causado pela queda de chefias autoritárias no oriente médio e no norte da África, sem que se fossem instalados regimes estáveis na região, o que se soma ao surgimento de grupos terroristas, como o Estado Islâmico, que ganharam território.
Não há dúvida de que a Líbia é uma bomba migratória para as portas da Europa.
Estima-se que mais de 90% dos migrantes que chegam à costa italiana passam pela Líbia, que, hoje, parece ser um Estado fantasma, dominado por centenas de milícias onde os jhardistas do Estado Islâmico (EI), grupos terroristas que trazem o horror, estão a se implantar. A isso se soma a ação de traficantes de seres humanos que estão gozando de impunidade com milícias e pseudo-policiais.
De toda sorte, o pano de fundo envolve perseguições por motivo de raça, religião, por alguém pertencer a determinado grupo social ou ter determinada opinião contrária ao status quo que se formou.
O governo italiano sabe que a Líbia, com a maior costa da África do Norte, com 1.770 quilômetros e 5.000 quilômetros de fronteiras terrestres com países vizinhos em áreas desérticas, representa algo que, após a queda de Muhamar Khadafi, ficou fora de controle.
Fala-se que Khadafi controlava os fluxos migratórios, ora impulsando, ora travando-os. Fala-se, ainda, que as máfias do tráfico humano naufragam deliberadamente os barcos quando se aproximam das costas. É um negócio sinistro em crescimento, estimando-se que trinta e cinco mil migrantes tenham viajado à Europa apenas neste ano.
Metade dos sírios já foram deslocados pela guerra civil, incluindo quatro milhões que fugiram para o exterior como refugiados, anunciou nesta quinta-feira o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em um comunicado. O êxodo na Síria é o maior já registrado desde 1992, quando o número de refugiados do Afeganistão atingiu 4,6 milhões. Dentro do território sírio, há 7,6 milhões de deslocados.
Por certo há a situação do refugiado que deve ser estudada e que é diversa do asilo. Enquanto o asilo é regulado por tratados multilaterais bastante específicos no âmbito regional, o refúgio tem suas normas elaboradas por uma organização (com alcance global) de fundamental importância vinculada às Nações Unidas, qual seja o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e seu Protocolo de 1966, são os textos magnos dos refugiados em plano global. Tem-se, da leitura da Convenção de 1951, o termo “refugiado”, aplicável a toda pessoa que, “em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (art. 1º, A, § 2º). Mais: além dessa limitação temporal, o mesmo artigo 1º, B, § 1º, alínea a, também colocava uma limitação geográfica à concessão do refúgio, ao dizer que apenas pessoas provenientes da Europa poderiam solicitar refúgio em outros países.
Em razão disso, é salutar anotar a lição de Valério de Oliveira Mazzuoli (Curso de direito internacional público, 3ª edição, pág. 677) quando diz que “essa definição, por não mais convir aos interesses da sociedade internacional foi então ampliada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1966, que, em seu art. 1º, §§ 2º e 3º, respectivamente, estabeleceu: “Para os fins do presente Protocolo o termo ‘refugiados’, salvo no que diz respeito à aplicação do § 3º do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as palavras ‘em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951' e as palavras '.... como consequência de tais acontecimentos’ não figurassem do § 2º da Seção A do artigo primeiro”. E que: “o presente Protocolo será aplicado pelos Estados-partes sem nenhuma limitação geográfica....”.
A concessão do status de refugiado se dá não em virtude de uma perseguição politica (como ocorre no caso de asilo), mas sim em virtude de perseguição por motivos de raça, religião ou de nacionalidade, ou ainda pelo fato de pertencer a determinado grupo social ou ter determinada opinião.
Não se desconhece que a Líbia é um espaço utilizado para fuga de milhares de pessoas que fogem da guerra na Síria e das misérias na África que são acrescidas pela formação de grupos radicais.
Não se pode esquecer que esses milhares tentando entrar na Inglaterra representam uma fração dos que estão no Líbano, na Jordânia (de acordo com a UNRWA, a Jordânia era o lar de 1.951.603 refugiados palestinos em 2008, a maioria deles cidadãos jordanianos e cerca de 338 mil deles estavam vivendo em campos de refugiados da UNRWA) e na Turquia (que parece entender que o pior inimigo é o povo curdo e não os terroristas do Estado Islâmico). O Líbano, por sinal, é um caso emblemático: o país tem um órgão executivo totalmente paralisado em razão dos profundos desacordos internos e ainda em razão da inexistência, na Constituição, de regras definindo com precisão o mecanismo inerente a qualquer tomada de decisão governamental, vendo-se que vários dos 24 membros do gabinete de governo se outorgaram um direito de veto, bloqueando mais de 200 decretos pendentes sendo alguns de máxima urgência, como o caso da indicação de um novo comandante do Exército e de um novo chefe do Estado-Maior, uma vez que os mandatos dos atuais titulares vai se expirar em breve, num pais que tem o Parlamento (que apenas consegue se reunir para ratificar os empréstimos e doações internacionais fornecidos ao país) incapaz de eleger um novo chefe de Estado, por falta de quórum. Com tudo isso, Beirute deixou de ser a Paris do Oriente e o Líbano deixou de ser um dos países mais cosmopolitas do mundo para ser uma nação impregnada por disputas religiosas e pelo terrorismo.
Tudo isso próximo a um lugar onde colonos israelenses incendiaram uma casa na Cisjordânia e queimaram vivo um bebê palestino, numa atitude criminosa.
As autoridades falam em diversas ações para enfrentar essa bomba migratória que levou diversas pessoas a perecerem: esforço militar e civil para capturar e destruir embarcações usadas no transporte de migrantes ilegais; reuniões periódicas entre agências de fronteira, de asilo e de defensoria para mapear os fluxos ilegais; envio de equipes de asilo da União Europeia à Itália e à Grécia para fazer o processamento conjunto de pedidos; registro de impressões digitais de todos os imigrantes pelas autoridades europeias; elaboração de um projeto-piloto voluntário para a recolocação de imigrantes em países do bloco; abordagem dos países próximos à Líbia através de esforços conjuntos entre a Comissão Europeia e a diplomacia da União Europeia; envio de funcionários de imigração a outros países para melhor compreender os fluxos migratórios.
De tudo isso, parece razoável o entendimento de que a União Europeia pode estar dando contribuições quando se produzem crises na Síria, Líbia, Palestina e África, investindo muito dinheiro. Mas terá ainda que desenvolver projetos que melhorem a infraestrutura dos países em dificuldade, sendo certo que a União Europeia não pode se eximir de responsabilidades deixando que os imigrantes morram. A ONU tem ainda papel vital nesse processo.
A questão da imigração deve preocupar as autoridades brasileiras.
Nos últimos quatro anos, o Brasil se tornou o principal destino de refugiados sírios na América Latina. Segundo estatísticas do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), o país abriga atualmente cerca de 1.600 cidadãos sírios reconhecidos como refugiados – o maior grupo entre os aproximadamente 7.600 refugiados que vivem no país, de mais de 80 nacionalidades diferentes.