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O regime jurídico do tombamento e a proteção do patrimônio cultural

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01/09/2015 às 12:23
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6 Efeitos jurídicos do tombamento 

Com a finalização do processo administrativo, diversos são os efeitos jurídicos decorrentes do tombamento previstos Decreto-Lei n° 25/37. Tais consequências referem-se, principalmente, às restrições ao uso e à alienação do bem tombado. Para Di Pietro (2011, p. 145), os efeitos em face do proprietário podem ser divididos em três tipos de obrigações: positivas (de fazer); negativas (de não fazer), e; de suportar.

As obrigações positivas impõem aos titulares dos bens o dever de promover medidas de conservação necessárias sua preservação. Na ausência de condições financeiras para a adoção dessas medidas, o proprietário do bem deve informar ao Poder Público; em caso de desrespeito a tal disposição, poderá ser aplicada multa correspondente ao dobro do valor em que foi avaliado o dano sofrido pela coisa.

Sob pena de nulidade do negócio jurídico, em se tratando de alienação onerosa, haverá direito de preferência da União, dos Estados e Distrito Federal e dos Municípios, nessa ordem. Além da nulidade, também são previstos, se violado o direito de preferência, o sequestro do bem e a imposição, em face do alienante e do adquirente, de multa de 20% do valor da coisa – essas sanções são aplicadas pelo Poder Judiciário. O direito de preferência não inibe o proprietário de gravar livremente a coisa tombada, de penhor, anticrese ou hipoteca. Em se tratando de bem público, haverá a possibilidade excepcional de alienação, desde que se trate de transferência para outro ente federativo.

No que se refere às obrigações negativas, o proprietário fica proibido de destruir, demolir ou modificar as coisas tombadas. Para repará-las, pintá-las ou restaurá-las, é necessário a prévia autorização do órgão técnico responsável, sob pena de multa de 50% do dano causado. Em caso de bem móvel, o titular não pode retirá-lo do país, sem o prévio consentimento do órgão técnico, a não ser que seja por um prazo curto, para fins de intercâmbio cultural; caso seja desrespeitada essa regra, a coisa fica sujeita a sequestro e o seu proprietário às penas previstas para o crime de contrabando e multa.

De acordo com o Decreto-Lei regulador do tombamento, é prevista, ainda, a obrigação de suportar: o titular deve permitir e contribuir para a fiscalização do bem pelo órgão técnico estatal, sob pena de sofrer sanção pecuniária.

Não são apenas os proprietários que sofrem restrições. O Decreto-Lei n° 25/37 determina que, em se tratando de imóveis, os vizinhos não podem, sem prévia autorização do órgão técnico competente, fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade da coisa tombada, nem sobre ela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser determinada a destruição da obra ou a retirada do objeto, impondo-se, neste caso, multa de 50% do valor do objeto retirado.

Segundo Di Pietro (2011, p. 146), o instituto utilizado, no caso da vizinhança de imóveis tombados, tem natureza de servidão administrativa, em que dominante é a coisa tombada, e serviente, os prédios vizinhos. Em suas palavras, trata-se de servidão que “resulta automaticamente do ato do tombamento e impõe aos proprietários dos prédios servientes obrigação negativa de não fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade da coisa tombada e de não colocar cartazes ou anúncios”.

Ressalte-se que apenas mediante a presença de dois requisitos é possível se estabelecer a referida servidão administrativa: a vizinhança da coisa tombada e a construção que impeça ou reduza sua visibilidade.

Por outro lado, um ponto que gera dissenso doutrinário é saber se o tombamento gera direito à indenização em favor do proprietário. Sobre o tema, há autores que defendem sempre existir direito à indenização (MELLO, 2004, p. 364).

Entretanto, para grande parte dos autores, o direito à indenização não é automático em caso de tombamento. Como explica Carvalho Filho (2012, p. 803),

nem há amparo constitucional ou legal para tal conclusão, nem há, como regra, prejuízo decorrente do ato, que retrata mera restrição ao uso da propriedade. Além disso, é preciso considerar que, dependendo da singularidade da situação, pode o ato de tombamento gerar vantagens decorrentes da valorização do bem, especialmente bem imóvel, e não prejuízo, para o proprietário. É o caso, por exemplo, de tombamento de edificações em avenida central da cidade, utilizadas por lojas comerciais de diversos ramos; o tombamento, nesse caso, alia-se ao aspecto turístico, ensejando a atração de maior número de consumidores.

Contudo, é preciso destacar que será devida a indenização, de qualquer modo, desde que comprovado o prejuízo capaz de gerar o dever de indenizar. Assim, provados os requisitos caracterizadores da responsabilidade civil extracontratual do Estado, faz jus o proprietário à indenização decorrente do tombamento.

Através da ação civil pública, prevista na Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, é possível o ajuizamento de demanda judicial para fins de garantir a proteção ou o ressarcimento por danos referentes aos bens de valor histórico (art. 1°, III).

Outrossim, ainda que não previsto expressamente na Lei 4.717/1965, a jurisprudência vem entendendo que tal diploma deve ser interpretado para possibilitar, por meio da ação popular (art. 5º, inc. LXXIII, da CRFB), a mais ampla proteção aos bens e direitos associados ao patrimônio público, em suas várias dimensões, incluindo o patrimônio cultural[7].


7 Considerações finais

De acordo com o exposto, percebe-se que, a partir do século passado, há um compromisso cada vez mais sedimentado dos Estados em proteger os valores culturais da humanidade.

Na seara internacional, esse fenômeno surgiu, principalmente, com o contexto presenciado após a Segunda Guerra Mundial, com o apoio de organismos internacionais como a ONU, que auxiliam o desenvolvimento do processo de cooperação para a proteção do patrimônio cultural de nosso planeta.

No Brasil, foi com a Constituição de 1988 que a defesa da cultura nacional foi levada ao maior nível normativo interno. O Estado, mais do que nunca, reconhece seu dever de garantir e promover os movimentos culturais de nosso povo.

Para tanto, o Estado brasileiro dispõe de diversos mecanismos administrativos, um deles, o tombamento, destinado à proteção de bens que representam um relevante valor cultural de nosso país.

Assim, é possível visualizar que o instituto do tombamento, regulado pelo Decreto-Lei n° 25/37, vem tomando um papel cada vez mais importante na preservação de bens que integram nosso patrimônio nacional.

Esse instituto gera obrigações de ordem positiva (de fazer), negativa (não fazer) e de suportar (permitir e cooperar para a fiscalização do Estado). Para sua efetivação, é preciso a instauração de processo administrativo que garanta os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório. Ao final, o tombamento é concretizado através do registro do bem em Livros do Tombo.

Finalmente, é preciso ressaltar que o processo de utilização do tombamento ainda está em fase de desenvolvimento em nosso país. É necessário um trabalho de conscientização, da sociedade e do Estado (MANZATO, 2008, p. 14), para que os parâmetros de identificação dos bens a serem tombados, principalmente os previstos no Decreto-Lei n° 25/37, se adéquem ao sentido da Carta Política de 1988.


8. Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. parte II, p. 57-130.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: 2012.

COELHO, Edihermes Marques; FERREIRA, Ruan Espíndola. Estado de Direito Ambiental e Estado de Risco. In: Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(20): 67-80, jan.-jun. 2011.

CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2011.

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MANZATO, Maria Cristina Biazão. Proteção ao patrimônio cultural brasileiro: o tombamento e os critérios de reconhecimento dos valores culturais. Disponível em: <http://www.aprodab.org.br/eventos/congresso2008/teses/mariacbmanzato01.doc>. Acesso em 01 fev. 2015.                              

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004.                    

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1998.                                                       

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1989.                                                             

SILVA, Fernando Fernandes da. Turismo Internacional e Proteção do Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade. In: PHILIPPI JR, Arlindo e RUSCHMANN, Doris V. M. Gestão ambiental e sustentabilidade no turismo. Barueri, SP: Manole, 2010.                                

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.                            

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2004.                       

RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.                             

RECASENS SICHES, Luis. Tratado General de Filosofia del Derecho. México: Porrua, 1975.              

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.  


Notas

[1] O Ministério da Cultura foi criado através do Decreto 91.144 de 15 de março de 1985. Antes desse momento, o governo federal atuava em matérias culturais por meio do Ministério de Educação e Cultura.

[2] Esses locais não só foram tombados pelo Estado brasileiro, como também foram declarados Patrimônios Mundiais pela UNESCO, respectivamente, em 1980, 1982, 1985.

[3] Conforme explica José Afonso da Silva (1994, p. 49), poder público “é expressão genérica que se refere a todas as entidades territoriais públicas".

[4] Cf. STJ - REsp: 1013008/MA 2007/0291436-0, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 03/06/2008, DJe 23/06/2008.

[5] Cf. STJ - REsp 753.534/MT, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 25/10/2011, DJe 10/11/2011

[6] Cf. STF - ADI 1706/DF, rel. Min. Eros Grau, Julgado em 09 de abril de 2008 (Informativo 501).

[7] Cf. STJ - AgRg no REsp: 1151540/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 20/06/2013, DJe 26/06/2013.

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Sobre o autor
Renato José Ramalho Alves

Pós-Graduando em Direito e Processo Tributário pela Escola Superior da Advocacia da OAB/PB - Representou a juventude brasileira na OEA e na ONU - Estagiou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA - Articulador de Negociações Internacionais do Engajamundo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMALHO, Renato José Alves. O regime jurídico do tombamento e a proteção do patrimônio cultural . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4444, 1 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41486. Acesso em: 25 abr. 2024.

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