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A Polícia Militar e o exercício da governabilidade

17/08/2015 às 16:45
Leia nesta página:

Analisa-se a inserção da polícia no exercício da governabilidade e a importância da compreensão dos universos casa/família e rua/mundo no planejamento das atividades de polícia ostensiva.

O crescimento demográfico desordenado, a desigualdade social e a desagregação política atuam como principais vetores de aumento da violência e da criminalidade.

Neste cenário procuraremos analisar sociologicamente a inserção da organização policial no exercício da governabilidade e a importância da compreensão dos universos casa/família e rua/mundo no planejamento de uma polícia ostensiva volátil na forma, mas rígida no conteúdo.

Nosso vocabulário está cheio de palavras que enfocam a cidade como um lugar pacífico, onde os habitantes mantêm um comportamento harmonioso e educado. Assim: urbanidade (do latim urbis), polidez (do grego polis), cidadão e cidadania, conotam uma especial dignidade entre as pessoas.

Entretanto, vemos que a cidade, graças ao crescimento demográfico, passa a ser o centro da violência e da criminalidade. Vários estudos demonstram que se a cidade e o crescimento demográfico não constituem causa da criminalidade, certamente constituem um fator de seu agravamento, graças às desigualdades sociais.

O Brasil é o país das miscigenações, a única nação verdadeiramente universal, onde coexistem todas as grandes civilizações do planeta, mas é também o país das desigualdades, dos extremos. As maiores fortunas ladeiam a mais horrível miséria. E esta realidade compromete a segurança pública.

As camadas mais pobres da população, em que a subsistência é precária e o emprego não acompanha o desenvolvimento demográfico, estão gangrenadas por numerosos crimes, que são cometidos pela imposição da necessidade e da escassez, pois entre eles impera a pobreza e a fome. Não raro se sabe de crimes, quando são cometidos assaltos, cujo fruto não passa de uma mísera importância em dinheiro.

A violência, sobretudo urbana, está no centro da vida quotidiana, ocupando a manchete dos jornais e sendo objeto de programas especiais de televisão; envolve, sobretudo, o comportamento de pessoas, e por isso é ameaçadora, progressiva e geradora de um profundo sentimento de insegurança. Tal fato é resultado de uma evolução sintomática de desintegração social, de um mal estar coletivo e de uma desmoralização das instituições públicas.

Nossa sociedade, como já dissemos, é uma das mais desiguais e uma das mais estratificadas que existem. A mais extrema pobreza costeia a mais fabulosa riqueza; é o país dos privilégios; a recessão econômica retardou a mobilidade social e, ao mesmo tempo, privou o povo de esperança. Para muitos, o excesso de riqueza tão visível é uma provocação, de onde surge a tentação ao roubo e ao dinheiro fácil.

O crescimento das desigualdades e, sobretudo, de sua percepção, causada pela popularização da televisão, faz aumentar a frustração de uma grande camada da população que passa a querer ter o que não tem, já que outros têm.

A ausência de ganho - devido ao desemprego – as deficiências na educação, os problemas com a moradia, as graves falhas na saúde pública, aliados à desintegração da família, transformam os mais pobres em uma legião de desamparados, parecendo a moral coletiva estar anestesiada.

A ação governamental, a ser desenvolvida em todas as esferas, áreas e níveis de competência, haverá que ser global, integrada e harmônica de modo a se obter a indispensável convergência de esforços, direcionados aos diferentes campos da atividade humana.

A busca do desenvolvimento econômico, o combate à inflação e à recessão, os ajustamentos da política salarial, a melhoria na distribuição de rendas, a eliminação dos desníveis regionais, a melhoria das condições gerais de vida e do grau de cultura e de educação do povo etc., constituir-se-ão em medidas gerais de longa maturação e cujos efeitos positivos, no que diz respeito ao controle da criminalidade, serão sentidos a médio e longo prazo.

Aí estão os pilares do liame social que dão ao indivíduo o sentimento de ser  respeitado, de pertencer a uma coletividade estruturada, organizada e civilizada.

Ser cidadão é ter senso do respeito a si mesmo e aos outros, é também o sentimento de pertencer a uma comunidade que é dotada, livremente e democraticamente, de direitos e de deveres iguais para todos, ricos ou pobres, brancos ou pretos, jovens ou não. O responsáveis políticos devem legar aos jovens outras perspectivas para seu crescimento enquanto cidadão.

É neste cenário que se insere a organização policial militar no seu exercício de governabilidade, pois ser policial é exercer parcela do poder estatal, tomando decisões, impondo regras, dando ordens, por vezes restringindo bens e interesses jurídicos e direitos individuais e coletivos, dentro dos limites da Constituição. Tavares dos Santos esclarece que:

“A governabilidade consiste, portanto, em uma série de tecnologias de poder que determinam a conduta dos indivíduos, ou de um conjunto de indivíduos, submetendo-os ao exercício das diferentes racionalidades políticas específicas que perpassam a vida em sociedade, relativas à produção, aos signos, à dominação e ao indivíduo”; (Tavares dos Santos, 1997).

É importante sedimentar a imagem da polícia militar como uma instância intermediária entre os habitantes da cidade, tornando-a meio para a mobilidade social numa sociedade desigual, defendendo as pessoas honestas dos marginais e os fracos dos fortes. É fundamental que se leve em conta a importância de uma polícia cidadã, trabalhando a serviço do bem público, valorizando os cidadãos enquanto pessoas integrantes de uma mesma comunidade; restabelecendo a segurança pública, notadamente nas favelas e bairros, ajudando assim para a restauração e funcionamento das instituições públicas, como as escolas, os hospitais etc.

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Para que isto efetivamente ocorra é necessário que a Polícia Militar, através de seus integrantes, saiba compreender a importância dos universos casa/família e rua/mundo, enfrentando esta ambivalência marcante no trabalho policial, que medeia ”entre a coerção física legítima e o desempenho de uma função social marcada pelo consenso” (Tavares dos Santos, 1997), passando a adotar uma postura em que a pessoa seja, primordialmente, valorizada e reconhecida dentro da sociedade.

Assim, é fundamental levar em conta o que nos diz Roberto Da Matta:[1]

“Do ponto de vista da casa (e da família) posso definir a mim mesmo pelos espaços morais que permeiam todo o sistema social. De dentro da casa, assim, não sou simplesmente um trabalhador, um operário, um lavrador ou um professor, mas – antes de tudo – um “pai-de-família”, um “chefe de família”, um “dono da casa” e um homem. Na casa sou uma pessoa, uma entidade moral e não um número ou uma carteira de identidade" (Da Matta, 1982:28).

Mais adiante, ao se imaginar na rua, o autor assevera:

“Na rua, vejo-me diante do sistema legal (que me iguala teórica e inapelavelmente a todo mundo), da polícia (que se não sabe quem eu sou pode perfeitamente me espancar e até mesmo me matar)... Quer dizer: na rua não sou mais reconhecido como uma pessoa: um amigo, um parente, um afilhado ou compadre. Sou muito mais um número, uma carteira de identidade, um pagador de impostos, um passageiro, um usuário ou parte de um outro papel social universalizante.” (Da Matta, 1982:29).

O importante, nesta ótica, é que o indivíduo, dentro da sociedade global, seja visto como uma pessoa na medida de sua dignidade pessoal, e não como um “igual-anônimo”, não possui individualidade. Talvez por isso, o autor diga mais adiante, referindo-se ao famoso “você sabe com quem está falando?”: 

“...o você sabe com quem está falando? demarca e separa posições, permitindo transformar súbita (ou violentamente) o indivíduo na pessoa.” (Da Matta, 1982:34).

Dentro deste quadro, é imperioso que a Polícia Militar, através de seu exercício de governabilidade, saiba estabelecer de forma clara esta diferença, pautando sua atuação através de um planejamento que leve em conta a pessoa e não somente o indivíduo como um todo universalizante; sem descuidar, entretanto, da imparcialidade tão necessária aos executores do policiamento ostensivo, como representantes do governo nas ruas, a quem cabe guarda à igualdade dos cidadãos, quanto ao gozo dos seus direitos ou cumprimento dos seus deveres perante a lei.


Bibliografia

DA MATTA, Roberto. As raízes da violência no Brasil: Reflexões de um antropólogo social, in: PAOLI, Maria Célia. A Violência Brasileira. Brasiliense, São Paulo, 1982, pp. 11-43

TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial, consenso e violência, in: Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9 (1): p. 161, maio de 1997.

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Sobre o autor
Robson Luis Marques Thomazi

Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS;Professor Universitário;Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMAZI, Robson Luis Marques. A Polícia Militar e o exercício da governabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4429, 17 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41719. Acesso em: 12 nov. 2024.

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