O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve discussão sobre os principais elementos conceituais forjados pela antropologia que propiciaram, no campo jurídico, novos parâmetros para a aplicação prática do processo de regularização fundiária quilombola. Fez-se aqui um recorte que abrange normatizações que estabelecem as definições pertinentes, no caso, o Art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e o Decreto Nº 4.887/2003, que regulamentou o Art. 68.
Dentre os diversos direcionamentos que a legislação citada fornece, serão destacadas aqui duas passagens de caráter conceitual a fim de facilitar a exposição que se segue. São elas:
1. Art. 68: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (negritos do autor)
2. Decreto Nº 4.887, Art. 2º: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (negritos do autor)
§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.
Os dispositivos jurídicos selecionados buscam introduzir o conjunto de definições que serão desenvolvidas no decorrer do artigo. Eles partem de uma série de questionamentos que se seguiram após a Constituição de 1988, quando procurou-se responder a questões como “quem são os remanescentes de quilombo?”, “qual é o conceito de quilombo utilizado?”, entre outros temas (O´DWYER, 1995).
A necessidade de regularizar o território das comunidades quilombolas fez emergir o debate sobre o conceito de quilombo (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002). Esses autores afirmam ainda que até a década de 1970 os quilombos estavam associados à resistência contra a escravidão. Estes primeiros estudos, segundo Almeida (2011), tinham como referência a história, associada à relação existente no Império entre os quilombos e a política oficial. Continuando, relata como, a pedido do rei de Portugal, foi elaborado pelo Conselho Ultramarino, em 1740, o conceito de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões nele” (p. 59). Assim teria surgido o conceito de quilombo, que perduraria por muito tempo e viria a influenciar o movimento negro no período da redemocratização, elevando o quilombo a símbolo de resistência e luta, garantindo sua inclusão no texto constitucional (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002)
Mas a Constituição de 1988 foi além desta conceituação clássica de quilombo. Segundo O'DWYER (1995), a partir da carta constitucional, o termo quilombo foi ressignificado, deixando de se remeter apenas ao passado nacional e ganhando novas conotações no presente, quando ganha outros sentidos além do histórico. Leite (2002) afirma ainda que “o resgate do termo ‘quilombo’ como um conceito socioantropológico, não exclusivamente histórico, proporciona o aparecimento de novos atores sociais ampliando e renovando os modos de ver e viver a identidade negra” (p. 348).
Os debates em torno do conceito de quilombo não cessaram desde então, o que leva Arruti (2008) a afirmar que a categoria quilombo está em disputa por seu caráter polissêmico, aberto, “com grandes variações empíricas no tempo e no espaço” (p. 315). O detalhe deste debate todo, sua razão de ser, está no fato de que o texto constitucional atribui aos “remanescentes das comunidades de quilombos” o direito à regularização fundiária. É o “remanescente” junto a “comunidades” que dão o tom da interpretação do conceito de quilombo, pois, segundo Leite (2002):
No texto constitucional é a “comunidade” o sujeito da oração, pois dela derivam “os remanescentes”, denominados posteriormente quilombolas. (...) Não é a terra, portanto, o elemento exclusivo que identifica o sujeito do direito, mas sim sua condição de membro do grupo. (p. 344)
O quilombo seria na atualidade um direito a ser reconhecido, não apenas um passado a ser lembrado, afirma a autora. Já Almeida (2011) considera o termo “remanescente” como uma indicação do que sobreviveu do passado, portanto, ainda estaria atrelado ao vínculo histórico, desconsiderando a configuração atual a qual a categoria quilombo se refere. Mas, para Arruti (2008) “o termo ‘remanescente’ também surge para resolver a difícil continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço suficiente”. (p.326). Para o autor, o termo em questão aponta para formas atualizadas do quilombo, buscando ressaltar sua especificidade e identidade particular própria em alteridade com a sociedade envolvente e, ainda, Leite (2012) afirma que:
Os novos significados que o texto constitucional visa alcançar fazem convergir as dimensões políticas postuladas pelos movimentos sociais negros, principalmente a partir da década de 1970, as dimensões históricas, que o correlacionam à África e à história da escravidão nas Américas, e as dimensões socioantropológicas, como culturas contra-hegemônicas e articuladas à resistência de grupos subalternos. (p. 356)
Mudando o foco do aspecto ilegal que o quilombo representava, as novas abordagens ressaltam a autonomia do quilombo e sua relação econômica com a sociedade, bem como suas formas de organização (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002). O'DWYER (1995) afirma que, “Assim, qualquer invocação ao passado deve corresponder a uma forma atual de existência, que se pode realizar a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social determinado” (p. 92). Assim, o quilombo atual possui seu caráter histórico quando recebe sua denominação, mas sua manifestação atualiza o conceito histórico e ressignifica o quilombo num contexto no qual é sujeito de direitos, não mais um fenômeno subversivo. Como bem coloca Arruti (2008), “O que está em disputa, portanto, não é a existência dessas formações sociais, nem mesmo de suas justas demandas, mas a maior ou menor largueza pela qual o conceito as abarcará, ou excluirá completamente” (p. 316). CHAGAS (2001) afirma que a antropologia tem, então, como uma de suas tarefas problematizar as categorias jurídicas que, a priori, possuem caráter generalizador, o que, diante da pluralidade e diversidade do fenômeno quilombola, torna-se um mecanismo de aplicação de direitos e resolução de conflitos.
Para melhor compreender o processo de atualização que o conceito de quilombo recebeu deve ser lembrado o contexto no qual sua problemática surgiu. Durante as décadas de 1970 e 1980, ou seja, no período do processo de redemocratização e das discussões surgidas pelo advento da constituinte, no Brasil, bem como no mundo, surgiram com força as demandas das populações étnicas. Nas ciências sociais isso se refletiu num intenso debate e renovação das perspectivas teóricas em torno das culturas minoritárias em seus diversos contextos, incluindo também a questão quilombola. Ocorreu, então, ao redor do mundo, um avanço na garantia dos direitos culturais ou étnicos, nos textos da lei, especialmente nas constituições (CHAGAS, 2001; STEIL, 1998).
Os estudos então realizados passaram a enfatizar o vínculo de um sujeito a determinado grupo e a forma como este grupo fornece os padrões de posicionamento no mundo, numa relação de alteridade que estabelece uma diferença entre o “nós” e os “outros”. No caso das comunidades quilombolas foi identificada uma característica recorrente no padrão organizacional desses grupos. Suas terras são de “uso comum”; existe uma territorialidade específica que promove o controle coletivo sobre o uso deste recurso. Assim, segundo Arruti (2008), “Se o que permitia falar em uma ‘terra de uso comum’ é a noção de comunidade implícita neste ‘comum’, era a ela que a etnicidade vinha descrever’” (p. 330).
Pode-se encontrar o reflexo destas análises no citado Art. 2º do Decreto 4.887 que define as comunidades remanescentes de quilombo como grupos étnico-raciais. Segundo Barth (1995), os grupos étnicos se constituem por sua alteridade, sua relação com o “outro”, e possuem continuidade no decorrer do tempo. Mais ainda, o grupo étnico “Possui um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como se constituísse uma categoria diferenciável de outras categorias do mesmo tipo” (BARTH, 2011, p. 190). Cardoso de Oliveira (2000) fala ainda das “condições de possibilidade de etinização” e cita Eriksen (1991) quando afirma que a etnia envolve uma formação social e formas de interação, e estas formas de interação influenciam as relações sociais. A possibilidade de etinização colocada por Cardoso de Oliveira remete à definição de quilombo como uma etnia, mas o processo de regularização fundiária implica em formas de interação, principalmente com o Estado, que são fundamentais para a ressignificação de uma comunidade que passa a se identificar como quilombola.
O resgate histórico que o quilombo como grupo étnico visa realizar, ampara-se no quilombo como comunidade, como unidade produtiva e forma de ocupação do território, com fortes relações comerciais com a sociedade envolvente e não isolado como se costumava afirmar (ALMEIDA, 2011). A origem do quilombo está então associada ao processo de exclusão e segregação. Um dos marcos desse processo foi a Lei de Terras/1850, primeira tentativa de regularização fundiária feita no Brasil. Mas essa lei se aplicava apenas às áreas obtidas por compra e venda ou herança; as terras de preto, de negros fugidos, ou doadas, não puderam ser regularizadas, impossibilitando a regularização dos territórios ocupados por negras e negros (CONAQ, ?). Ainda assim, após a abolição,
(...) quando mudam-se os nomes e as táticas de expropriação, e a partir de então a situação dos grupos corresponde a outra dinâmica, a da territorialização étnica como modelo de convivência com outros grupos na sociedade nacional, seja pela consolidação de um tipo específico de segregação social e residencial dos negros, chegando até os dias atuais (...). Isto vem reafirmar que, mais do que uma exclusiva dependência da terra, o quilombo, neste sentido, faz da terra a metáfora para pensar o grupo e não o contrário. (LEITE, 2002, p. 339)
Desta forma, a luta pela regularização fundiária dos territórios quilombolas ganha no conceito de etnia um forte recurso, pois, ao mesmo tempo que se orienta para o passado (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011), ressalta a atualidade da convivência e continuidade dos vínculos grupais. Somado a isto, tem-se o caráter político que o movimento pelo reconhecimento dos direitos étnicos se articula com a própria definição de etnia, pois, como afirma Barth (1995), “Para lidar com essas questões, precisamos também de uma análise dos processos pelos quais certos tipos de líderes acionam identidades étnicas na ação política coletiva” (p. 25). O quilombo passa a ser acionado pelas comunidades como forma de garantia de direitos e visibilidade, como no caso do relato feito por Muller (2005) sobre a comunidade de negros de Morro Alto:
A construção da identidade de “remanescente de quilombos” tomou mais força em um momento no qual a comunidade se viu ameaçada pela duplicação da BR-101, que já cindiu suas terras uma vez, separando as terras de plantio das terras de moradia. Essa primeira obra sob a rodovia, que remonta aos anos 1950, não trouxe indenizações para os moradores da localidade. Tendo em vista as constantes expropriações que sofreram por parte dos poderes locais e do impacto da ausência de qualquer tipo de indenização referente à ampliação da primeira rodovia, parece lógico que as pessoas em Morro Alto tenham desejado construir para si um espalho político que, acrescentado à situação de “camponeses”, lhes alça a uma nova categoria e permite ampliar seu espaço de reivindicações: o espaço de remanescente de quilombos. (p. 38-39)
Vale citar também o caso da comunidade Rio das Rãs, que operou um processo de etnização da política, assumindo uma identidade étnica como razão de sua mobilização, manipulando símbolos e categorias étnicas como instrumentos da ação política e, assim, “reformulando positivamente sua memória enquanto ‘remanescentes de quilombo’” (STEIL, 1998, p. 102)
Temos, de um lado, o conceito jurídico “remanescentes das comunidades de quilombo” e a categoria empírica “quilombo”. O primeiro, como já abordado, busca sintetizar as demandas de vários atores envolvidos na temática, possui caráter normativo e, apesar de tudo, não é objeto de consenso por estes atores. O segundo conceito se equivale ao primeiro, na prática, nas manifestações políticas e simbólicas, na interiorização da identidade quilombola pelas comunidades, bem como na reflexão que esse termo demanda, pois, como afirma Arruti (2008), “A categoria normativa (remanescentes das comunidades de quilombo), fruto da ressemantização da categoria histórica (quilombo) exige, por sua vez, a ressemantização das categorias nativas” (p. 329).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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