Capa da publicação Apelação criminal: a ordem de apreciação dos pedidos de absolvição do réu e cassação da sentença
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Absolvição do réu ou cassação da sentença: a ordem de apreciação e de exposição das matérias em sede de apelação no processo penal

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14/08/2015 às 11:32
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Qual é a ordem de apreciação dos erros de julgamento e de procedimento no âmbito da apelação criminal? Em qual sequência devem ser apontados pela defesa técnica em seu recurso?

RESUMO: Este artigo cuida da ordem de apreciação dos erros de julgamento e de procedimento no âmbito da apelação criminal, que não tem sido observada na prática dos Tribunais e nos gabaritos dos concursos públicos, bem como da sequência em que tais matérias devem ser apontadas pela defesa técnica em seu recurso.

PALAVRAS-CHAVE: Apelação; criminal; ordem; absolvição; nulidades.

SUMÁRIO: Introdução; 1 As questões preliminares e o mérito do recurso na prática dos tribunais e nos gabaritos dos concursos; 2 A ordem de apreciação e de exposição das matérias que constituem o mérito do recurso; Conclusão; Referências.

 

INTRODUÇÃO

A prática dos Tribunais no que tange à análise dos recursos[1] em sede processual penal tem sido marcada, a nosso sentir, por um desvio de perspectiva.

À revelia de diversas lições de Direito Processual Penal, já tão difundidas e compreendidas, e da própria – e questionável – teoria geral do processo, os Tribunais, ao julgarem recursos em face de sentenças ou mesmo de acórdãos que se pronunciam sobre o mérito da demanda penal, insistem em denominar de preliminares matérias atinentes aos vícios de procedimentos verificados ao longo do trâmite processual.

E – o que é mais importante e grave – insistem em apreciar tais questões antes de decidirem acerca da absolvição[2] do réu, mesmo quando os vícios de procedimento foram suscitados pela própria defesa[3].

Por outro lado, do mesmo mal parece padecer a atuação da defesa técnica em sede recursal, que, ao combater as sentenças e acórdãos, com frequência suscita, em primeiro lugar, as matérias de cunho processual, relacionadas aos erros de procedimento verificados, designando-as também de preliminares. Apenas a seguir, adentrando ao que, de forma restritiva, denomina de “mérito” do recurso, expõe as razões pelas quais pretende a absolvição do acusado, o que, pelos motivos adiante articulados, constitui evidente inversão da correta ordem de apresentação das matérias.

Na gênese desse fenômeno, poder-se-ia identificar uma conjunção de fatores, desde a forma como o ensino do Direito Processual Penal está moldado nos cursos de graduação, partindo sempre da teoria geral do processo – que nem sempre encontra o vértice comum a todas as searas –, até o modo como estruturado o Poder Judiciário nacional – já que os juízes acabam por reproduzir no Tribunal o raciocínio desenvolvido ao longo de anos de carreira em primeiro grau de jurisdição.

Em meio a isso, também ganha relevo a maneira como as bancas de concursos têm formulado as questões e estabelecido os seus gabaritos[4], reafirmando e difundindo o desvio óptico a nosso juízo existente.

Não pretendendo atacar as causas do fenômeno, mas tão somente lançar luzes sobre o tema, debruçamo-nos, doravante, sobre o verdadeiro objeto do presente ensaio: a correção da ordem de apreciação das questões submetidas ao Tribunal havendo recurso de quaisquer das partes, bem como da ordem de exposição das matérias nos apelos da defesa técnica.

 

1 AS QUESTÕES PRELIMINARES E O MÉRITO DO RECURSO NA PRÁTICA DOS TRIBUNAIS E NOS GABARITOS DOS CONCURSOS

Malgrado seja tão conhecida quanto irretocável a lição de que o mérito do recurso não se confunde com o mérito do processo[5] e, por conseguinte, de que as questões que funcionam como preliminares no processo não mantêm essa característica em sede recursal, a ausência de rigor na aplicação de tais conceitos causa relevantes distorções e graves prejuízos na seara processual penal.

No estado atual da ciência processual, é indiscutível a noção de que as preliminares recursais dizem respeito apenas aos seus requisitos de admissibilidade. Todo o mais diz respeito ao mérito do recurso ou às questões de ordem pública, conhecíveis de ofício pelo órgão julgador.

Colhendo as sempre preciosas lições do ilustre mestre Barbosa Moreira, desta vez sobre a relação de preliminariedade, perfeitamente aplicáveis ao processo penal, tem-se o seguinte:

Cabendo a qualificação de “prejudiciais” às questões de cuja solução dependa o teor ou o conteúdo da solução de outras, reservar-se-á a expressão “questões preliminares” para aquelas de cuja solução vá depender a de outras, não no seu modo de ser, mas no seu próprio ser; isto é, para aquelas que, conforme o sentido em que sejam resolvidas, oponham ou, ao contrário, removam um impedimento à solução de outras, sem influírem, no segundo caso, no sentido em que estas outras hão de ser resolvidas.[6] (grifou-se)

Sublinhe-se, por fundamental, que, a fim de classificar as questões como preliminares, debruçou-se o renomado jurista sobre a relação entre elas existente em dado contexto processual, e não sobre as suas características intrínsecas, porquanto sua categorização variará conforme se alterem as configurações de tais relações.

Assim, por preliminar, devem-se entender as questões prévias (ditas subordinantes) que, em dado contexto processual, condicionam a apreciação de outra posterior (ditas subordinadas), mas cuja decisão não influencia no teor da decisão da questão seguinte.

Nessa linha, em sede recursal, conforme já sublinhado, funcionam como preliminares tão somente os requisitos de admissibilidade. Aliás, o próprio Barbosa Moreira já assinalava tal dicotomia, consoante se extrai, entre outras obras, do famigerado artigo “Que significa ‘não conhecer’ de um recurso”:

Para bem responder à pergunta do título, deve-se começar por lembrar que o recurso – como aliás todo ato postulatório – pode ser objeto de apreciação judicial por dois ângulos perfeitamente distintos: o da admissibilidade e o do mérito. Ao primeiro deles, trata-se de saber se é possível dar atenção ao que o recorrente pleiteia, seja para acolher, seja para rejeitar a impugnação feita à decisão contra a qual se recorre. Ao outro, cuida-se justamente de averiguar se tal impugnação merece ser acolhida, porque o recorrente tem razão, ou rejeitada, porque não a tem. É intuitivo que à segunda etapa só se passa se e depois que, na primeira, concluiu ser admissível o recurso; sendo ele inadmissível, com a declaração de inadmissibilidade encerra-se o respectivo julgamento, sem nada acrescentar-se a respeito da substância da impugnação. Semelhante relação entre os dois juízos permite caracterizar o primeiro como preliminar ao segundo.[7] (grifou-se)

Especificamente no Direito Processual Penal, com a costumeira precisão e no mesmo diapasão leciona o eminente Paulo Rangel, in verbis:

Preliminar no recurso é a análise dos requisitos do juízo de admissibilidade (intrínsecos e extrínsecos). Por isso falamos em admissibilidade dos recursos. É admissível o recurso? A resposta a essa pergunta é sempre preliminar à questão de mérito. Assim, depois que verificamos que o recurso é admissível, vamos analisar se o recorrente merece ou não o que pede. Ora, se o recorrente pede para o tribunal anular a sentença porque proferida por juiz incompetente e o tribunal, verificando ser o recurso admissível (juízo de admissibilidade positivo), passa a analisar o mérito, a questão da incompetência do juízo é mérito no recurso.[8] (grifou-se)

Dessa forma, ninguém duvida de que a incompetência – para utilizarmos o exemplo dado pelo professor e Desembargador Paulo Rangel – funciona como preliminar no processo, mas constitui mérito do recurso.

Todavia, em vez de se partir dessa noção – de que tanto as preliminares do processo como o seu mérito estão no mesmo plano em sede recursal, já que consubstanciam o mérito do recurso –, o que se vê na prática dos Tribunais e até nos gabaritos dos disputados concursos públicos é a análise pelos julgadores e a exposição nas peças recursais pela defesa técnica primeiramente das matérias atinentes às nulidades processuais, como se questões prévias fossem, a que, inclusive, insistem em chamar de “preliminares”, ao arrepio da dogmática processual penal.

A fim de elucidar o que ora se afirma, analisamos, de início, hipótese em que, julgando apelação que interpusemos, requerendo – ao contrário do que rotineiramente se observa – primeiramente a absolvição do recorrente e, apenas subsidiariamente, a cassação da sentença[9], o e. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro apreciou, em primeiro lugar, o pleito de anulação e, apenas a seguir, o pedido absolutório.

Em nossas razões recursais, a matéria foi apresentada observando a seguinte ordem:

II – DA NECESSÁRIA ABSOLVIÇÃO EM RAZÃO DA INIDONEIDADE DO ACERVO PROBATÓRIO CARREADO AOS AUTOS

A absolvição em razão da fragilidade do conjunto probatório trazido aos autos é medida que se impõe.

Com efeito, em momento algum, o recorrente assumiu a prática das condutas de tráfico ilícito de entorpecentes e a testemunha Andrea foi firme em afirmar que jamais vira o apelante vendendo drogas. [...]

À conta de tais fundamentos, demonstrada a inexistência de provas idôneas acerca da prática de tráfico ilícito de entorpecentes, faz-se imperiosa a absolvição da recorrente quanto ao delito do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, nos termos do art. 386, VII, do CPP.

III – DA NULIDADE ABSOLUTA DO PROCESSO EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO ACUSADO E DA INEXISTÊNCIA DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. DA INADEQUAÇÃO DO RITO ADOTADO

Acaso não absolvido o recorrente, do que apenas se cogita por hipótese, impõe-se a anulação do feito desde a AIJ, inclusive.

[...]

À conta de tais fundamentos, deve-se reconhecer a nulidade absoluta do processo desde o oferecimento da denúncia, por inadequação do rito adotado, em lugar do ordinário, ou, subsidiariamente, desde a audiência de instrução e julgamento, a fim de que o recorrente seja citado, a denúncia recebida e o processo retome o seu curso legal (art. 5º, LIV, da CF).

IV – DA DOSIMETRIA PENAL – DO EXCESSO NO AUMENTO OPERADO NA PRIMEIRA FASE – DA APLICAÇÃO RETROATIVA DO ART. 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/2006 À ESPÉCIE – DA NECESSÁRIA REDUÇÃO MÁXIMA DE 2/3 (DOIS TERÇOS) EM RAZÃO DESSA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA

Na hipótese de se manter o édito condenatório, do que apenas se cogita à luz do princípio da eventualidade, é evidente que o aumento da pena levado a efeito na primeira fase da dosimetria mostra-se desarrazoado e excessivo. [...]. (destaques no original)

E os pedidos foram formulados no apelo da maneira seguinte:

À conta do exposto, o recorrente, através da Defensoria Pública, espera e confia que o recurso será conhecido e provido, a fim de que:

1) seja absolvido das imputações iniciais, em razão da ausência de provas hígidas da traficância, nos termos do art. 386, VII, do CPP;

2) subsidiariamente, seja anulado o feito desde o oferecimento da denúncia ou desde a AIJ, inclusive, pela flagrante violação ao devido processo legal apontada acima;

3) ainda subsidiariamente, caso subsista o decreto condenatório, o que se admite à luz do princípio da eventualidade:

3.1) seja reduzido o aumento levado a efeito na primeira fase, por se mostrar excessivo;

3.2) seja realizada a redução máxima relativa à causa de diminuição domiciliada no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, aplicável retroativamente à espécie;

3.3) seja fixado o regime aberto para cumprimento da reprimenda penal, nos termos do art. 33, § 2º, c, do CP c/c art. 387, § 2º, do CPP, c/c art. 59 do CP, ou, na pior das hipóteses, o regime semiaberto; e

3.4) seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CP. (grifou-se)

Todavia, mesmo diante de tal ordenação das razões e dos pedidos, o TJERJ, em acórdão cuja ementa a seguir se colaciona, manteve a tradicional sequência de apreciação das matérias ora criticada, iniciando o julgamento pela matéria atinente ao erro de procedimento e designando-a, inclusive e impropriamente, de “preliminar”:

Apelação Criminal nº 0008977-74.2006.8.19.0063 (2006.063.008.875-6) Relator Desembargador Sidney Rosa da Silva. APELAÇÃO CRIMINAL – ART. 12 DA LEI Nº 6.368/1976 – RECURSO DEFENSIVO QUE BUSCA, EM PRELIMINAR, A NULIDADE ABSOLUTA DO FEITO POR FALTA DE CITAÇÃO, PELO NÃO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, POR INADEQUAÇÃO DO RITO, E AINDA, PELA ILICITUDE DAS PROVAS, EIS QUE SE DERAM EM RAZÃO DE DENÚNCIAS ANÔNIMAS – EM SEDE MERITÓRIA, PUGNA PELA ABSOLVIÇÃO DO APELANTE TENDO EM VISTA SUA NEGATIVA DE AUTORIA, O DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA DE DEFESA, DEVENDO SER AFASTADO OS DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO QUE DETÊM INTERESSE EM SUA CONDENAÇÃO – SUBSIDIARIAMENTE, REQUER O REDIMENSIONAMENTO DA PENA, COM A REDUÇÃO DA FRAÇÃO UTILIZADA PARA EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE, EIS QUE EXCESSIVA; APLICAÇÃO MÁXIMA DO REDUTOR PREVISTO NO § 4º DO ART. 33 DA LEI DE DROGAS; FIXAÇÃO DO REGIME ABERTO, OU SEMIABERTO, PARA O CUMPRIMENTO DA PENA, E A SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR RESTRITIVAS DE DIREITOS – PRELIMINARES QUE SE REJEITAM, DANDO-SE PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DEFENSIVO – 1. Preliminares que se rejeitam. Das peças dos autos verifica-se que foi procedida à citação do acusado por Carta Precatória, sendo posteriormente recebida a Denúncia, oportunidade em que foi designada a AIJ na qual não foi observada a presença do acusado para oitiva das testemunhas, ainda que devidamente requisitada por seu Defensor, ensejando, então, o Acórdão proferido por esta Colenda 7ª Câmara Criminal, que anulou o feito desde a mencionada AIJ. 2. Legitimidade e validade do processo que se originou de investigações baseadas, no primeiro momento, da chamada “denúncia anônima”, com objetivo de fazer cessar a situação de flagrância em que se encontrava o acusado, de guarda de substância entorpecente sem autorização legal ou regulamentar. 3. DO MÉRITO. 4. Autoria e Materialidade bem definidas diante do conjunto probatório apresentado, com ênfase no material apreendido, e nos depoimentos prestados em Juízo, sob o crivo do contraditório, das testemunhas de acusação, os policiais militares que efetivaram a diligência na residência do Acusado José Carlos, nada constando que desabone suas narrativas. Aplicação da Súmula nº 70 do e. TJRJ. 5. Afastamento da fração utilizada a título de exasperação da pena-base, eis que não justificada, firmando a pena-base em seu mínimo legal. 6. Possibilidade de aplicação da lei mais benéfica quanto à causa de diminuição de pena, desde que atendidos os requisitos impostos pela norma. 7. Apelante José Carlos que não atende aos requisitos objetivos impostos pela norma, eis que diante da qualidade e do quantitativo de droga apreendido, assim como das demais provas dos autos, verifica-se que o mesmo se dedica a atividades criminosas, não fazendo jus ao redutor do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006. 8. Redimensionamento da pena, firmando-a, ao final, em 03 anos de reclusão, regime inicial aberto para o cumprimento de pena, e pagamento de 50 DM no VUM, substituída a pena corporal por duas penas restritivas de direitos, a serem estabelecidas pelo douto Juízo da Execução. 9. Deixa-se de determinar a expedição do respectivo Alvará de Soltura em favor do Apelante José Carlos, tendo em vista que o mesmo responde solto ao presente feito. (grifou-se)

Na hipótese, como se nota, a Corte sequer observou a ordem apresentada na peça recursal, invertendo-a como se tivesse, necessariamente, que analisar a matéria ligada à nulidade antes do pleito absolutório e como se a nulidade efetivamente funcionasse como preliminar mesmo em sede recursal (inclusive assim a designou incorretamente, como visto).

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Outrossim, seguindo essa mesma ordem de apreciação das matérias têm-se diversas outras Cortes de Justiça[10], e até mesmo, consoante se observa a seguir, os Tribunais Superiores:

APELAÇÃO CRIMINAL – COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RATIONE MUNERIS (ART. 102, I, B, CRFB) – PRELIMINARES. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO LEGISLATIVO PARA PROCESSAR O PREFEITO POR CRIME DE RESPONSABILIDADE – INÍCIO DO PROCESSO POSTERIOR AO FIM DO MANDATO – AUSENTE NULIDADE – CARTA PRECATÓRIA PARA OITIVA DE TESTEMUNHA – PRAZO PARA CUMPRIMENTO EXAURIDO – JULGAMENTO AUTORIZADO (ART. 222, § 2º, CPP) – NÃO OFERECIMENTO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – REQUISITOS DO ART. 89 DA LEI Nº 9.099/1995 – EXISTÊNCIA DE PROCESSO CRIMINAL PENDENTE – INAPLICABILIDADE DO BENEFÍCIO – PRECEDENTES – MÉRITO – CRIME DEFINIDO NO ART. 1º, XIII, DO DECRETO-LEI Nº 201/1967 – NOMEAÇÃO DE SERVIDOR QUE CONTRARIOU DISPOSIÇÃO DE LEI MUNICIPAL – ALEGAÇÃO DE ERRO QUANTO À ILICITUDE DO FATO – ATOS ADMINISTRATIVOS PREVIAMENTE PRATICADOS COM POTENCIALIDADE DE DETERMINAR O ERRO – AUSENTE DEMONSTRAÇÃO DE UNIÃO DE DESÍGNIOS DO PREFEITO COM OS DEMAIS AGENTES POSSIVELMENTE ENVOLVIDOS – ELEMENTOS COLHIDOS NO CURSO DA INSTRUÇÃO QUE REFORÇAM A DÚVIDA, NÃO AFASTADA POR OUTRAS PROVAS – APELO PROVIDO – ABSOLVIÇÃO NOS TERMOS DO ART. 386, VI, DO CPP. [...] 14. Apelação à qual se dá provimento, para absolver o Apelante, nos termos do art. 386, VI, do Código de Processo Penal. (AP 595, Relator(a):  Min. Luiz Fux, Primeira Turma, J. 25.11.2014, Acórdão Eletrônico DJe-027 Divulg 09.02.2015 Public 10.02.2015 – grifou-se)

APELAÇÃO DEFENSIVA − RÉUS DENUNCIADOS NOS ARTS. 214, 298 E 219, PARÁGRAFO ÚNICO, TODOS DO CPM − ALEGADAS INTEMPESTIVIDADE RECURSAL E NULIDADE DO FEITO NÃO VERIFICADAS − MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA − Na contagem dos prazos processuais exclui-se o dia de início e inclui-se o dia final, prorrogando-se o prazo para o primeiro dia útil seguinte, tratando-se de feriado ou final de semana. Preliminar de intempestividade que se rejeita. Unânime. A garantia do promotor natural tem por escopo afastar a figura do acusador de exceção, situação que não ficou configurada no presente caso. Preliminar de nulidade por violação ao princípio do promotor natural rejeitada, à unanimidade. No mérito, os fatos descritos na exordial restaram devidamente comprovados nos autos. O primeiro réu imputou falsamente aos seus pares fato definido como crime, sabendo serem inverídicos, bem como desacatou superior hierárquico diante da escolta. O segundo réu propalou por meio da mídia fatos ofensivos à dignidade e capazes de abalar o crédito das Forças Armadas e a confiança que essas merecem do público. Recurso defensivo desprovido. Maioria. (STM, AP: 631820087110011 DF 0000063-18.2008.7.11.0011, Rel. Francisco José da Silva Fernandes, J. 20.03.2012, Publ. 30.05.2012 Vol: Veículo: DJE – grifou-se)

RECURSO ESPECIAL − PENAL − VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA − VIA INADEQUADA − ART. 239 DO ECA − INÉPCIA DA DENÚNCIA − INEXISTÊNCIA − AUSÊNCIA DE DELIMITAÇÃO DA CONTROVÉRSIA − SÚMULA Nº 284/STF − FALTA DE PREQUESTIONAMENTO − SÚMULAS NºS 282 E 356/STF E 211/STJ − FUNDAMENTO INATACADO − SÚMULA Nº 283/STF − REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA − SÚMULA Nº 7/STJ − EMENDATIO LIBELLI − NULIDADE − NÃO OCORRÊNCIA − [...] 7. Em se tratando apenas de emendatio libelli, e não de mutatio libelli, não é necessária a abertura de vista à defesa, pois o réu se defende dos fatos, e não da capitulação jurídica a eles atribuída na denúncia. 8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, improvido. Vencido parcialmente o Relator, que acolhia a preliminar de inépcia da denúncia. Acórdão. Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, prosseguindo no julgamento, após o voto do Sr. Ministro Relator, vencido na preliminar de inépcia da denúncia, em voto-vista regimental, no mérito, conhecendo parcialmente do recurso especial e, nessa parte, negando-lhe provimento, no que foi acompanhado pela Sra. Ministra Assusete Magalhães e pelo Sr. Ministro Og Fernandes, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso especial e, nessa parte, negar-lhe provimento nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Assusete Magalhães e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. (REsp 1095381/PE, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, J. 01.10.2013, DJe 11.11.2013 – grifou-se)

Além da praxe jurisdicional destacada e já largamente disseminada, ressaltamos que os gabaritos propostos pelas bancas de concursos públicos igualmente indicam que, mesmo em recurso da defesa, a matéria atinente às nulidades processuais deveriam ser apresentadas antes das razões para a absolvição.

Com tal impropriedade, há muito transposta da prática judiciária para os gabaritos das provas, também nos deparamos enquanto escrevíamos as obras de Direito Penal[11] e, especialmente, de Processo Penal[12] da Coleção Provas Discursivas e Comentadas, da Editora JusPodivm.

De sorte a ilustrar o que afirmamos e na mesma linha dos diversos acórdãos mencionados, tem-se, por exemplo, o critério de correção utilizado no concurso para Defensor Público do Distrito Federal, realizado em 2013 pelo Centro de Seleção e de Promoção de Eventos (CESPE):

1 – Apresentação e estrutura textual (legibilidade, respeito às margens e indicação de parágrafos) – 0,00 a 1,00

2 – Desenvolvimento do tema

2.1 – Das nulidades: nulidade do auto de prisão em flagrante; ausência de defesa preliminar; ausência do réu à audiência de instrução e julgamento; nulidade da sentença pela ofensa ao princípio da identidade física do juiz – 0,00 a 7,00

2.2 – Do mérito: ausência de provas judiciais suficientes para sustentar a condenação por tráfico ilícito de entorpecentes; não configuração do crime de associação para o tráfico de entorpecentes; não configuração do crime de corrupção de menores – 0,00 a 7,00

2.3 – Da aplicação da pena: ausência de maus antecedentes; aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006; regime inicial e da substituição da pena privativa de liberdade – 0,00 a 7,00

2.4 – Dos pedidos de anulação: anulação do processo a partir do oferecimento da denúncia por ausência de defesa preliminar e colocação do réu em liberdade para responder novamente ao processo; anulação do processo a partir da audiência de instrução, devido à ausência do réu e colocação do réu em liberdade para a renovação da instrução; anulação da sentença condenatória por ofensa aos princípios da identidade física do juiz – 0,00 a 3,00

2.5 – Dos pedidos de absolvição do réu: de todos os crimes por total ausência de provas colhidas em juízo, e em razão de a condenação ter ocorrido com base exclusivamente em provas inquisitoriais obtidas na fase policial sem as garantias do contraditório e da ampla defesa; do crime de associação para o tráfico de entorpecentes por total ausência de provas quanto à efetiva presença de vínculo associativo entre ele e o adolescente que participou dos fatos; do crime de corrupção de menores em razão da não ocorrência de corrupção do adolescente – 0,00 a 2,00

[...].[13] (grifou-se)

Digno de nota que, embora reproduzida a incorreção relativa à ordem de apresentação das matérias, sugerindo, como apontamos neste artigo, que os vícios ensejadores de nulidade[14] devem ser ventilados antes das razões para a absolvição do réu, ao menos desta vez o chamado espelho de prova não denominou de “preliminares” as matérias que se relacionam aos erros de procedimento, optando por designá-las de “nulidades” – já que de preliminares efetivamente não se trata.

Todavia, se ali apenas a impropriedade terminológica não ocorreu, em outros espelhos, desta vez extraídos dos gabaritos das provas subjetivas para Defensor Público do Estado do Acre e para Defensor Público da União, aplicadas em 2012 e 2015, respectivamente, ambas também pelo CESPE, o termo “preliminares” foi uma vez mais incorretamente empregado:

1 – Apresentação e estrutura textual (legibilidade, respeito às margens e indicação de parágrafos)

2 – Desenvolvimento do tema

2.1 – Razões de apelação (CPP, art. 600, caput)

2.2 – Preliminares: ausência do laudo toxicológico definitivo[15]; não oitiva de uma testemunha de defesa; inadequação do rito da Lei nº 11.343/2006: condenação com base apenas em provas colhidas na fase policial.

2.3 – Mérito: absolvição de Robert do crime de tráfico (CPP, art. 386, V e VI); pedido de desclassificação, para ambos os réus, do crime previsto no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 para o art. 28 da mesma Lei; absolvição de ambos os réus do crime de roubo (CPP, art. 386, IV e V).

2.4 – Fixação das penas de reclusão e de multa no crime de roubo; impugnação da pena-base acima do mínimo legal (CP, art. 59); aplicação da atenuante da confissão espontânea para ambos os réus (CP, art. 65, III, d) [...].[16] (grifou-se)

Espera-se que o candidato desenvolva a peça processual de acordo com o que se segue. 1 Peça processual: razões de apelação (CPP, art. 600). 2 Endereçamento: Tribunal Regional Federal. 3 Prazo em dobro: 27 de janeiro de 2015. Vide art. 600 do CPP c/c art. 44, I da LC 80/1994. 4 Preliminar: Incompetência da Justiça Federal. Nulidade absoluta. Violação ao patrimônio de agência franqueada dos Correios. Competência da Justiça Estadual. Precedentes do STJ 5 Preliminar: violação do art. 263 do CPP c/c princípio da ampla defesa e garantia de constituição de advogado de confiança. 6 Preliminar: falha na defesa técnica. Súmula nº 523 do STF. Defesa dativa deixou de adotar medidas processuais necessárias para salvaguardar a primeira oportunidade de contraditório, bem como de produção probatória em favor dos acusados. 7 Preliminar: nulidade do interrogatório conjunto dos acusados. Violação do art. 191 do CPP. 8 Mérito: atipicidade da associação criminosa, dada a inaplicabilidade da modificação do art. 288 do CP promovida pela Lei nº 12.850/2013. 9 Mérito: desclassificação do art. 157, § 3º, do CP para art. 157, caput, do Código Penal, dado o desejo de participação em crime menos grave, nos moldes do art. 29, § 2º, do CP. 10 Mérito: circunstância atenuante da confissão (art. 65, III, d, CP) para ambos, e da menoridade para João (art. 65, I, CP). 11 Mérito: causa de redução da pena para João, nos termos do art. 29, § 1º, do CP, dada a participação de menor importância. 12 Mérito: impugnação ao concurso formal de crimes de latrocínio em razão de o único patrimônio atingido pertencer à empresa pública (STF HC 75006-1/SP). 13 Pedidos: inicialmente, conhecer a peça, em razão de atendimento aos requisitos formais de admissibilidade, e julgar procedente a apelação, para, preliminarmente, declarar a nulidade de todos os atos processuais desde o recebimento da denúncia, em razão da incompetência absoluta, ou, acaso assim não se entenda, desde a desconstituição do advogado particular constituído pelos acusados e da indevida nomeação do defensor dativo, bem como dos atos de instrução processual e sentença. No mérito, pedir a absolvição dos acusados no que se refere ao crime previsto no art. 288 do CP, bem como a desclassificação da conduta imputada.[17] (grifou-se)

Nesse contexto, algumas indagações devem nortear o presente artigo:

1) Recorrendo a defesa, buscando não apenas a absolvição do réu, senão também a anulação da sentença em razão de erro de procedimento que prejudica a defesa, em que ordem deve o Tribunal analisar os pleitos recursais?

2) A ordem de apreciação das matérias exige que haja pedido expresso de absolvição formulado pela defesa em seu recurso (ou até mesmo pela acusação, quando na defesa dos interesses do acusado)?

3) No que tange à atuação da própria defesa técnica, deve o apelo defensivo expor as razões relativas aos erros de procedimento antes das atinentes à absolvição?

4) Por fim, havendo recurso da acusação, exclusivo ou não, a ordem de apreciação das matérias pelo Tribunal se modifica?

 

2 A ORDEM DE APRECIAÇÃO E DE EXPOSIÇÃO DAS MATÉRIAS QUE CONSTITUEM O MÉRITO DO RECURSO

Procurando solucionar as questões formuladas, em atenção à primeira e principal indagação, haverá os que dirão – apesar do patente equívoco da afirmação – que o Tribunal não chegaria a apreciar as razões ou os fundamentos para a absolvição, porque reconheceria antes a nulidade, que constitui preliminar. Nada mais inexato!

A correta análise da questão deve ter origem na premissa assentada anteriormente de que as preliminares em sede recursal se relacionam tão somente ao seu juízo de admissibilidade. Ultrapassada a admissibilidade e conhecido, portanto, o recurso, todo o mais constitui análise de mérito, estando as matérias atinentes aos erros de procedimento e aos erros de julgamento no mesmo plano de apreciação.

Em um passo adiante, deve-se reconhecer que, entre as diversas questões contidas no mérito do recurso, há também uma ordem a ser observada, já que ninguém duvida de que a análise da dosimetria penal necessariamente sucede o juízo de condenação do acusado.

A doutrina, ao tratar dos recursos, transparece, porém, não dar o devido relevo à ordem de apreciação das matérias em sede recursal, o que, indubitavelmente, contribui para as imprecisões descritas anteriormente.

Eugênio Pacelli, por exemplo, em sua reconhecida obra, aduz tão somente que “mérito do recurso também é diferente do mérito da ação penal, ainda que muitas vezes o seu objeto seja o mesmo”, e destaca que “o mérito do recurso é o pedido que nele se contém, por meio do qual se delimita a quantidade e a qualidade da matéria a ser apreciada”[18].

Embora enfatize a distinção já exposta entre o mérito do recurso e o mérito da ação, o autor não enfatiza o fato de que o pleito de nulidade do processo constitui mérito do recurso, como já assinalado, tampouco apresenta uma ordem para apreciação das matérias, evitando, por exemplo, uma equivocada anulação da sentença em razão de vício de procedimento que prejudica a defesa quando possível a absolvição do réu.

Ademais, boa parte da doutrina sequer se dedica ao tema, limitando-se a tratar, de forma esquematizada e apartada, da admissibilidade e, posteriormente, do objeto e das características de cada um dos recursos em espécie.

Com o mérito de solucionar a questão, mas, a nosso juízo, sem retificar o equívoco metodológico quanto à sequência de apreciação das matérias, o já tantas vezes citado Paulo Rangel ensina que, na hipótese de haver vício de procedimento e de julgamento,

não havendo recurso do Ministério Público contra a decisão, e, consequentemente, tendo transitada em julgado para a acusação, e havendo recurso exclusivo do réu, o tribunal está autorizado a reconhecer a nulidade, porém, entendendo que a condenação está em desacordo com o direito, desde já, absolver o réu em vez de declarar nulo o processo. O princípio do favor rei deve ser chamado à colação para autorizar a decisão absolutória do tribunal.[19] (grifou-se)

Malgrado concordemos que o Tribunal deve absolver o acusado nesse caso, não nos parece que se trate de uma inversão na conclusão do julgamento. Tampouco nos parece que, para tanto, se exija o trânsito em julgado para a acusação, data maxima venia.

Em verdade – e este é o ponto nevrálgico –, a absolvição se impõe exatamente porque, diante do recurso defensivo, o Tribunal aprecia primeiramente se deve absolver o acusado de todas as imputações formuladas e, apenas concluindo pela impossibilidade de fazê-lo, é que deve analisar se cassa ou não a sentença em razão de error in procedendo que prejudique a defesa.

Se tanto as questões relacionadas à absolvição como as atinentes às nulidades constituem o mérito do recurso e, portanto, estão no mesmo âmbito de cognição, e é certo que a ordem de sua apreciação pelos Tribunais não deflui de uma suposta e inexistente relação de preliminariedade entre elas, tal sequência deve ser extraída da sistemática das nulidades, da lógica subjacente ao sistema recursal em sede processual penal, estampada na Súmula do STF, Verbete nº 160, e dos princípios processuais de estatura constitucional.

Nessa linha intelectiva, a sistemática das nulidades prevista no CPP, iluminada pelo brocardo pas de nullité sans grief, por si só, já impede o reconhecimento de qualquer nulidade decorrente de vício de procedimento que prejudique a defesa quando possível absolver o réu de todas as imputações formuladas.

Sobre o tema, estatui o Digesto Processual Penal, in verbis: “Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa” (grifou-se).

Ademais, o próprio CPC ainda em vigor reforça o ora exposto, in verbis:

Art. 249. O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados.

§ 1º O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte.

§ 2º Quando puder decidir do mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprir-lhe a falta. (grifou-se)

E a mesma disposição vem repetida no NCPC, in verbis:

Art. 282. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados.

§ 1º O ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudicar a parte.

§ 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta. (grifou-se)

Assim, em sede processual penal, tendo o error in procedendo contrariado os interesses da defesa, não pode o Tribunal conhecer primeiramente desse vício sem analisar, antes, a possibilidade de absolvição do acusado, já que, por óbvio, quando possível a absolvição[20] do réu de todas as imputações, não haverá prejuízo para a defesa, que terá obtido o resultado favorável, a despeito do erro de procedimento verificado[21].

E, nesse ponto, uma anotação se faz necessária: a possibilidade de absolvição do acusado deve ser apreciada mesmo que não tenha sido requerida no recurso de quaisquer das partes[22].

Ainda que não constitua objeto do recurso da defesa ou da acusação, deve o réu ser absolvido ex officio pelo Tribunal, uma vez submetido o feito à sua apreciação pela irresignação recursal, já que, como consabido, possível a concessão de habeas corpus de ofício pelo Tribunal[23].

Sobre o tema, também é consolidado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

O art. 617 do Código de Processo Penal veda, tão somente, a reformatio in pejus, sendo admissível a reformatio in mellius na hipótese em que o Tribunal a quo, ao julgar o recurso da acusação, reconheceu a insubsistência do conjunto probatório e absolveu o réu, com fulcro no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.[24]

Demais disso, a respaldar a ordem de apreciação ora indicada, deve-se ter em consideração a inteligência da Súmula do STF, Verbete nº 160, segundo a qual “é nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”[25], combinada às garantais processuais do réu, a incluir o próprio princípio do favor rei.

Nessa senda, se é assente o entendimento de que a nulidade não suscitada no recurso da acusação (e que a prejudique) não pode ser conhecida de ofício pelo Tribunal contra o réu, como preconiza a citada Súmula do STF, Verbete nº 160, com maior razão, sob pena de se inibir o pleno exercício do direito de defesa, não se pode sustentar que, diante de recurso defensivo pugnando pela absolvição – em razão de error in judicando – e pela anulação – em decorrência de error in procedendo – possa o Sodalício proceder à anulação da sentença mesmo que deva absolver o recorrente.

Se assim o fosse, haveria desestímulo a que a defesa ventilasse em seu recurso as matérias atinentes aos eventuais erros de procedimento constatados, a fim de não despertar a atenção do órgão judicial ad quem para a possibilidade de cassação da sentença, o que, por óbvio, não se pode admitir.

Em outras palavras, caso se permitisse a anulação da sentença mesmo diante de hipótese de absolvição, o recorrente que não alegasse a nulidade ocorrida estaria em uma situação jurídica de maior vantagem – já que, nessa hipótese, como já sedimentado (Súmula do STF, Verbete nº 160), a nulidade não poderia ser reconhecida contra o réu[26] – do que aquele que a indicasse nas razões recursais e pretendesse a anulação, além da absolvição, o qual correria o risco de, a prevalecer a ordem de análise das matérias atualmente seguida pelos Tribunais, ver o provimento judicial ser anulado, com a retomada da marcha processual, em vez de obter, desde logo, a absolvição de todas as imputações, com a reforma da sentença.

Logicamente tal raciocínio redundaria em clara violação ao exercício da ampla defesa.

Em síntese, antes de apreciar o vício de procedimento que prejudica a defesa, dando ensejo à anulação do feito, forçoso analisar a prova dos autos com o escopo de concluir se é possível a absolvição do acusado.

E mesmo que não haja pleito de absolvição no recurso interposto pela defesa ou pela acusação, impende seja tal possibilidade analisada pelo Tribunal, que, como já dito e ressabido, pode conceder ordem de habeas corpus de ofício.

Por derradeiro, uma última hipótese deve ser analisada, já que até esse momento cuidamos dos casos em que há recurso apenas da defesa. Havendo recurso da acusação, exclusivo ou não, o único caso em que um erro de procedimento deve ser analisado antes mesmo dos fundamentos para absolvição do réu – o que não constitui exceção ao que anteriormente se expôs, mas, ao revés, representa corolário do que aqui sustentado – se verifica quando a cassação da sentença seja objeto do apelo da acusação, que exponha erro de procedimento que tenha prejudicado o exercício da persecução penal em juízo, ou, para usar a expressão do próprio Código de Processo penal, tenha prejudicado a acusação.

Nesse caso, por intuitivo, se se alega que a atividade persecutória não foi exercida de forma plena, torna-se precipitada a análise do conjunto probatório com o escopo de concluir pela absolvição ou não do acusado, já que a acusação, uma vez afastado o erro de procedimento, pode modificar o quadro fático-probatório e até jurídico até então desenhado.

Dessa forma, em casos tais, a análise da possibilidade de anulação da sentença em razão do vício de procedimento que prejudica a acusação, e não a defesa, antes de se apreciar a própria absolvição, deflui igualmente da racionalidade subjacente ao sistema recursal em sede processual penal.

Mas, frise-se, como decorre da própria Súmula do STF, Verbete nº 160, exige-se que o vício tenha sido submetido ao Tribunal por força do efeito devolutivo, em recurso da acusação que requeira a cassação da sentença, sendo vedado o seu conhecimento de ofício pelo julgador, sob pena de afronta à proscrição da reformatio in pejus (art. 617 do CPP).

De forma a ilustrar o que se expõe acerca da correta ordem de apreciação das matérias em sede recursal, elaboramos o quadro sinóptico a seguir:

 

 

 

 

MÉRITO DO RECURSO

Ordem de apreciação

Matéria a ser apreciada

Quando pode ser analisada

Fundamento

Vício de procedimento que prejudica a acusação

Apenas quando constituir objeto do recurso da acusação

Vedação à reformatio in pejus, Súmula do STF, Verbete nº 160, e princípio do tantum devolutum quantum apellatum (art. 599 do CPP)

Absolvição do réu

Em qualquer hipótese, mesmo que não seja objeto do recurso da defesa ou da acusação

CPP, art. 654, § 2º, e princípio do favor rei

Vício de procedimento que prejudica a defesa e enseja nulidade absoluta[27]

Em qualquer hipótese, mesmo que não seja objeto do recurso da defesa ou da acusação[28]

CPP, art. 654, § 2º, e princípio do favor rei

Vício de procedimento que prejudica a defesa e enseja nulidade relativa

Apenas quando constituir objeto do recurso da defesa

Princípio do tantum devolutum quantum apellatum (art. 599 do CPP)

 

Os demais aspectos contidos no recurso relativos à dosimetria e regime inicial de cumprimento, que também constituem o mérito do recurso, seguem a sistemática já consolidada e, por óbvio, são analisados após e caso se decida pela condenação do acusado.

 

CONCLUSÃO

Retomando as questões propostas no início deste ensaio, a fim de se consolidar o que foi expendido, devem ser destacadas as seguintes conclusões.

A) Recorrendo a defesa, buscando não apenas a absolvição do réu, senão também a anulação da sentença em razão de erro de procedimento que prejudica a própria defesa, a correta ordem de apreciação das matérias consiste em que o pleito absolutório de todas as imputações seja analisado antes do pleito de anulação.

B) No que tange à outra indagação formulada – se tal ordem dependeria de pedido expresso formulado pela defesa em seu recurso (ou até mesmo pela acusação, quando na defesa dos interesses do acusado) –, é certo que, mesmo que a absolvição não tenha sido pretendida, havendo recurso de quaisquer das partes, deve o Tribunal analisá-la e sempre antes de apreciar eventual erro de procedimento que tenha causado prejuízo à defesa.

Aliás, o próprio error in procedendo que prejudica a defesa, desde que constitua nulidade absoluta, pode ser reconhecido de ofício pelo Tribunal, não necessitando ter sido objeto do apelo.

Portanto, tal ordem independe do fato de haver recurso em que o pleito absolutório e até mesmo o de cassação em razão de nulidade absoluta constituam o seu objeto.

C) No que pertine à atuação da defesa técnica, ao arrazoar e formular os pedidos nos recursos interpostos, ao contrário do que rotineiramente se vê na prática jurisdicional e nos gabaritos dos concursos, deve, em primeiro lugar, expor as razões para a absolvição do réu e assim requerê-la. Apenas na eventualidade de não se acolher o pleito de absolvição de todas as imputações feitas, formulado em sede principal na peça recursal, pretender a anulação da sentença, sempre de forma subsidiária.

Também em seguida, não havendo a absolvição de todas as imputações e não sendo anulada a sentença, ainda subsidiariamente, requerer a reforma do decisum no que tange aos aspectos relacionados à dosimetria penal.

Demais disso, nos recursos manejados, deve a defesa abandonar o emprego, de forma incorreta, do termo “preliminares” para designar os vícios de procedimento que a prejudiquem, que, frise-se, apenas serão expostos após as razões para a absolvição.

Nesse particular, também os gabaritos propostos nos concursos públicos reclamam os mesmos ajustes.

D) Por derradeiro, em caso de recurso da acusação, exclusivo ou não, logicamente as matérias atinentes à absolvição do réu e ao reconhecimento de nulidade absoluta que prejudique a defesa devem ser analisadas na mesma ordem indicada (porque a absolvição deve anteceder a anulação a pretexto de salvaguardar os interesses do réu).

Somente quando o Ministério Público apontar erro de procedimento que tenha prejudicado a acusação (e não o réu) – matéria que somente pode ser apreciada pelo Tribunal no contexto do efeito devolutivo, como objeto do seu recurso –, tal erro e eventual anulação da sentença dele decorrente se apresentarão como antecedente lógico à absolvição, já que, uma vez afastado o vício verificado ao longo do feito, poderá a acusação lograr êxito no pleito condenatório eventualmente fracassado.

Portanto, a única matéria que antecede a análise da absolvição, como já assentado, se liga a eventual erro de procedimento ensejador de nulidade que tenha prejudicado a acusação. E tal análise, repise-se, não pode ser realizada fora das hipóteses em que constitua objeto do recurso da própria acusação, sob pena de violação à vedação à reformatio in pejus, consagrada no art. 617 do CPP (Súmula do STF, Verbete nº 160).

Em resumo, quando a acusação houver recorrido pretendendo a anulação da sentença por vício de procedimento que lhe tenha prejudicado, cuidará o Tribunal, em primeiro lugar, dessa matéria.

A seguir (ou, não havendo recurso da acusação com esse objeto, em primeiro lugar) – como também já elucidado no quadro apresentado –, cuidará da absolvição do réu, tendo sido suscitada ou não por quaisquer das partes, e, logo após, de erro de procedimento que tenha prejudicado a defesa, como indicado no quadro acima.

 

REFERÊNCIAS

AKERMAN, William; CAMARGO, Eduardo Aidê Bueno de; GOMES, Roberto. Coleção provas discursivas respondidas e comentadas – Processo Penal. Salvador: JusPodivm, 2015.

______ et al. Coleção provas discursivas respondidas e comentadas – Direito Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal esquematizado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

BLAJCHMAN, Miguel (Org.). Questões discursivas: direito processual penal. Rio de Janeiro: Questões Discursivas, 2014.

CESPE/UnB. Defensoria Pública da União. Disponível em: <http://www.cespe.unb.br/concursos/dpu_14_defensor/arquivos/grupo_2_padroes_de_respostas_definitivo.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, v. IV, 1965.

MIRABETE. Código de processo penal interpretado. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Que significa “não conhecer” de um recurso, RJ 224, jun. 1996.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Tese de concurso para a docência livre de direito judiciário civil apresentada à congregação da faculdade de direito da UFRJ. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva, v. 4, 2013.

 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
William Akerman

Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ). Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ex-Procurador do Estado do Paraná (PGE/PR). Ex-Especialista em Regulação de Aviação Civil (ANAC). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Aprovado em concurso público para Defensor Público do Estado da Bahia (DPE/BA), para Advogado do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e para Advogado da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante da banca de penal e processo penal do I Concurso para Residência Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor e coordenador de obras jurídicas pela Editora JusPodivm. Professor de cursos preparatórios para concursos e fundador do Curso Sobredireito (@curso_sobredireito).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AKERMAN, William. Absolvição do réu ou cassação da sentença: a ordem de apreciação e de exposição das matérias em sede de apelação no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4426, 14 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41756. Acesso em: 29 mar. 2024.

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