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Breves comentários sobre o projeto de Reforma da Previdência.

O caráter patrimonial das contribuições e o direito adquirido

Leia nesta página:

A proposta de reforma da previdência acaba de ser apresentada ao legislativo pátrio. Não se pode olvidar que parte das alterações trazidas ignora a razoabilidade econômica e soterra a legalidade e o direito de parcela dos trabalhadores atingidos pelas mudanças.

Os equívocos são inúmeros e a reforma urge. Contudo, o PEC apresentado às casas legiferantes pátrias não contempla a reforma necessária, do piso ao teto, no processo de reconstrução que a nação clama e precisa.

Digo porque. É comumente relatado pela mídia que o INSS estaria "quebrado". E de fato está, não existindo muito espaço para que se conteste a tese de que o servidor público encontra-se na base do processo depreciativo do capital que move o sistema securitário. Ocorre que, por razões não publicamente reconhecidas, das três contribuições sociais, previstas no art. 195, I da CF, cujas receitas deveriam financiar a segurança social (art. 165, § 5º, III da CF) apenas a contribuição sobre a remuneração do trabalho vem sendo administrada pelo INSS. As demais, arrecadadas pela Receita Federal, não estão sendo repassadas à previdência.

Como bem esclareceu Kyoshi Harada [1], "o certo é que, se os recursos da Previdência continuarem sendo utilizados em outros setores, ainda que prioritários, pouco importa, não haverá regime algum no planeta, que assegure o equilíbrio econômico-financeiro do órgão securitário, nem passando a tributar os aposentados, pensionistas e seus herdeiros".

E não é apenas isso. A dramática redução da base de financiamento, a quase intencional confusão entre Assistência Social e Previdência (como se a primeira integrasse a segunda), a corrupção generalizada e a mais absoluta ausência de integração e inteligência investigativa do corpo de fiscalização do INSS contribuem de modo incisivo para o recrudescimento do fosso de negligência onde deita nossa segurança social.

Dada a prelibação, novidade para os incautos e passo além dos laivos, nos causa espanto alguns dos pontos incluídos na proposta de emenda.

Como já colocamos anteriormente, uma análise econômica, pura e simples, que vá além da superficialidade, identificará que o equilíbrio atuarial nada ou pouco será alterado na vigência das alterações até agora pretendidas. Ademais, a efetivação das reformas chocar-se-se-á com o teor da Emenda Constitucional 20, de 15.12.98, publicada no D.O.U. de 16.12.98, que, naquele momento, reformulou, por completo, toda a matéria sobre aposentadoria do servidor público, instituindo regras de transição que preservariam o direito daqueles que já integravam o serviço público à época de início de sua vigência.

É nesse ponto (regimes posteriores à Emenda 20) que agora nos concentraremos, para foco posterior no PEC que corre no legislativo.

As regras de transição, previstas no art. 8º da aludida emenda constitucional, são aplicáveis aos servidores que ingressaram no serviço público antes de 16/12/98 e não tinham preenchido, àquela época, os requisitos legalmente exigidos para fazer jus à inatividade remunerada. O caput prevê a aposentadoria com proventos integrais, desde que haja o preenchimento cumulativo dos requisitos postos nos incisos I a III, que, por sua vez, estabelecem idades mínimas, tempo mínimo de cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria e, finalmente, um período adicional de 20% (vinte por cento) calculado sobre o tempo de contribuição que falte para a aposentadoria, na data da emenda, o chamado "pedágio".

As regras de transição também tratam da aposentadoria proporcional (art. 8º, §1º.), exigindo o preenchimento cumulativo dos requisitos previstos nos incisos I e II, ou seja, 53 anos de idade para o homem e 48 anos de idade para a mulher, observado o requisito relativo aos cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria.

Assim, questiona-se. Aqueles servidores sob a égide das regras de transição ou do regime pós-98 (art. 40 e ss.) poderiam ser incondicionalmente submetidos a outro regime ou estariam, de alguma forma, protegidos pela segurança jurídica, aqui refletida pela configuração de direito adquirido?

Não é possível tratar do tema sem trazer à baila a lição de Gabba. Para o estudioso italiano "é adquirido todo direito que é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo e que nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu". [2]

No Brasil, a lição de Limongi França [3] é regra. É adquirido o direito como "(...) conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto".

Já José Afonso da Silva [4], em lição que prima pela pontualidade e clareza, explica que, para "(...) compreendermos melhor o que seja direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava... Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato do titular não o ter exercido antes".

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Em suma, direito adquirido é aquele que, fazendo parte do patrimônio de seu titular, pode ser exercido a qualquer momento, a arbítrio pessoal, não podendo lei posterior causar-lhe dano.

As regras de transição, ao lado daquelas do artigo 40 e ss. da Constituição, representam regime jurídico próprio, cujo objeto depende de aquisição. E como pacificou o STF, inexiste direito adquirido a regime jurídico.

Portanto, não se pode falar em consubstanciação do regime se as condições ali especificadas não foram adimplidas. Todavia, imaginar, como alguns, que a instituição de regras transitórias seria mero benesse, bondade do administrador, é evidente equívoco.

De fato, inexiste direito a regime jurídico, mas o cunho patrimonial das contribuições efetivadas sob a égide da lei vigente não pode ser desprezado, sob pena da judicialização do processo de reforma. Ora, quem adquire, adimplindo pouco a pouco o bem pretendido, já tem em seu patrimônio pessoal a parte integralizada, essa sim intocável pela lei futura. E isso é totalmente diferente de direito ao regime. Repita-se a LICC: adquiridos são os direitos que podem ser exercidos pelo seu titular, como "aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem". (grifo nosso).

O patrimônio formado no regime atual, anteriormente às reformas, ainda que inexista cotização do sistema, não pode ser simplesmente ignorado, no que feriria de morte as bases do Estado Democrático de Direito, aqui representado pela isonomia entre os contribuintes e os direitos adquiridos daqueles.

A lição de Harada (op. cit.), concluindo em nosso lugar, não merece reparos: "Quando se fala em direito adquirido não está, obviamente, pretendendo a imutabilidade do regime jurídico da previdência pública, pela simples razão de que nenhum servidor tem direito adquirido a um determinado regime jurídico, que pode ser modificado unilateralmente pelo Estado. O direito adquirido consiste exatamente no respeito ao direito do servidor adquirido no regime anterior. O que se pretende, isso sim, é que na passagem de um regime para o outro, não sejam retirados os direitos já adquiridos no regime anterior. É diferente da expectativa de direito, que tem o servidor de aposentar-se ao cabo de trinta e cinco anos de contribuição".

É evidente. Ainda que inexista direito adquirido ao regime jurídico atual, a população brasileira dispõe dos pilares de Gabba para sustentar teses que venham a obstar as reformas no que ilegais. Afinal, o direito à aposentadoria do atual servidor, sob a ótica patrimonial das contribuições já adimplidas, ainda que não consumado, resta integrado ao seu patrimônio, na qualidade de direito adquirido, que, a par disso, deve ser preservado através de indispensável regime de transição.


Notas

01. HARADA, Kiyoshi. Previdência Social. Proposta de unificação ignora a realidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3723>. Acesso em 10 mai. 2003.

02. Teoria della Retroativitá delle Leggi, Torino, Unione Tipografico - Editrice, Milano, Roma, Napoli, 1891, Vol. Primo, pág. 191

03. FRANÇA, R. Limongi. A Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido. 3ª edição, São Paulo, RT, 1982.

04. SILVA, JOSÉ AFONDO DACurso de Direito Constitucional Positivo, 6ª edição, 2ª tiragem, São Paulo, RT, 1990

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Sobre o autor
Douglas Henrique Marin dos Santos

Procurador Federal junto ao Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal Professor de Análise Econômica do Direito na Faculdade Alvorada-DF Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade do Porto Doutorando pela Universidade Federal de Sâo Paulo (Unifesp).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Douglas Henrique Marin. Breves comentários sobre o projeto de Reforma da Previdência.: O caráter patrimonial das contribuições e o direito adquirido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4182. Acesso em: 22 dez. 2024.

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