Os limites da responsabilidade civil pelo depósito antecipado do cheque pós-datado: uma análise doutrinária e jurisprudencial da súmula nº 370 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

18/08/2015 às 16:16
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O presente trabalho analisa se o depósito antecipado de cheque pós-datado (pré-datado), sempre gera a obrigação de pagar uma indenização por danos morais por todos aqueles que estão vinculados ao respectivo título de crédito na condição de credores.

RESUMO: O presente trabalho buscou analisar se o depósito antecipado de cheque pós-datado (conhecido popularmente como pré-datado), sempre gera a obrigação de pagar uma indenização por danos morais por todos aqueles que estão vinculados ao respectivo título de crédito na condição de credores. Para tanto, verificaremos que, num primeiro momento, a Súmula nº 370 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) parece ser aplicável a todos que, de uma forma ou de outra, estiveram vinculados ao título creditício, mas que, com uma análise mais detida, encontramos exceções à aplicabilidade de tal entendimento. Em nossa análise, partimos do estudo dos conceitos básicos aplicáveis aos títulos de crédito em geral, sua principiologia elementar, bem como dos elementos norteadores da responsabilidade civil, para, por fim, verificarmos que há hipóteses que excepcionam a aplicação do referido entendimento jurisprudencial sumulado. Em nossa pesquisa utilizamos a análise documental, bem como o estudo de casos, como procedimentos metodológicos. Em relação à coleta de dados, efetuamos nossa pesquisa com base em doutrinas jurídicas (livros, artigos científicos, internet) e casos concretos julgados oriundos de tribunais brasileiros (jurisprudência).

PALAVRAS-CHAVES: Cheque. Pós-datado. Jurisprudência. STJ. Danos morais. Exceções.


INTRODUÇÃO

A utilização dos costumes comerciais como fonte do direito de empresa, aliada ao desenvolvimento de novas condutas no mercado (consumidor ou não) criou em nosso meio a possibilidade, mesmo contra legem, da existência de cheques pós-datados (usualmente designado como pré-datado). Durante boa parte de nossa história jurídica o depósito antecipado de tal documento não gerava nenhuma responsabilização no âmbito moral, uma vez que decorria de um direito conferido ao credor, já que a natureza jurídica do título não se modificava, mesmo com o acordo entre as partes. Tal situação foi modificada com base em entendimento jurisprudencial sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Nosso estudo tem como foco básico a verificação da aplicabilidade dos ditames da Súmula nº 370 do Superior Tribunal de Justiça, que preceitua: “caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado”. Nossa legislação pátria que trata dos títulos de crédito possui uma principiologia básica (cartularidade, literalidade e autonomia), consistente em três postulados a serem aplicáveis, como regra geral, a todos os documentos cartulares, mas que, de certa forma, foram relativizados pela aceitação costumeira de tal título creditício. Nosso estudo procura verificar a aplicação da súmula, em especial na existência de exceções ao seu emprego. Para isso, faremos um estudo dos caracteres da responsabilidade civil no direito brasileiro, bem como das previsões normativas e jurisprudenciais atinentes ao cheque pré-datado, com vistas a responder ao questionamento: até que ponto podemos aplicar o entendimento jurisprudencial sumulado aos sujeitos que se encontram vinculados ao depósito antecipado de um cheque pós-datado?

Como procedimento metodológico, na pesquisa utilizamos a análise documental, bem como o estudo de casos. Na coleta de dados, nos valemos da doutrina jurídica (livros, artigos científicos, material de internet) e casos concretos julgados em tribunais brasileiros (jurisprudência).

No decorrer deste trabalho trataremos de analisar o conceito de títulos de crédito, num primeiro momento, como forma de situar o leitor no tema para, a partir de então, conseguirmos explicitar os princípios básicos que regem a disciplina cartular. Posteriormente, trataremos da responsabilidade civil pelo dano moral em decorrência da Súmula nº 370 do STJ e, por fim, das exceções que existem na aplicação de tal entendimento.

1. CONCEITO DE TÍTULOS DE CRÉDITO.

O desenvolvimento do comércio no mundo trouxe a real necessidade de criação de documentos que permitissem a circulação de riquezas de uma forma mais facilitada, uma vez que, por exemplo, a compra e venda de bens considerados necessários na vida de uma coletividade, em fase anterior à existência dos títulos de crédito, somente poderiam ser feitas com base no papel moeda ou na utilização de grandes somas em metais preciosos, o que trazia muitos incômodos pelo trânsito de quantias significativas de dinheiro em espécie ou de outros equivalentes. Assim, tais títulos facilitaram sobremaneira a aquisição de qualquer produto ou o pagamento de algum serviço.

Tullio Ascarelli (apud RAMOS, 2012, p. 426) leciona que “o desenvolvimento dos títulos de crédito permitiu que o mundo moderno mobilizasse suas próprias riquezas, vencendo o tempo e o espaço”. De fato, com a criação de tais documentos o desenvolvimento da economia foi facilitada, em especial pela possibilidade de negócios serem realizados sem a necessidade de grande somas em dinheiro, bastando um simples documento que o represente. Logo, de uma forma simples e direta os títulos de crédito podem ser concebidos como instrumentos aptos à circulação de riquezas.

Especificamente, título de crédito pode ser conceituado como “um documento para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”. Tal designação foi dada inicialmente por Cesare Vivante, e é aceita de forma unânime pela doutrina jurídica, uma vez que traduz a principiologia cartular básica. Waldo Fazzio Júnior (2012, p. 321) ensina que: "É muito difícil construir uma definição capaz de circunscrever o título de crédito, com precisão, em todos os seus matizes, razão pela qual, da fecunda e incompleta variedade conceitual espalhada na literatura jurídica, apenas duas noções de títulos de crédito merecem relevo. A primeira, de Brunner, concebe o título de crédito como um 'documento no qual se encontra incorporado um direito privado, para cujo exercício é indispensável a posse do próprio documento'. A outra, mais moderna, de Cesare Vivante, aperfeiçoando aquela noção, vê no título de crédito “o documento necessário para exercer o direito literal e autônomo nele mencionado”.

Segundo o professor Marlon Tomazette (2009, p. 9) “o conceito mais clássico é o de Cesare Vivante, pelo qual ‘o título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado’”.

Do mesmo modo o professor Gladston Mamede (2012, p. 316), em sua obra Manual de Direito Empresarial, informa que:

Documentos que comprovem um direito são muitos, nem por isso são títulos de crédito, em sentido jurídico e estrito. O título de crédito, como prevê o artigo 887 do Código Civil, é um documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produzindo efeitos se preencher os requisitos legais […].

Tais conceituações traduzem uma linearidade doutrinária que conceitua os títulos de crédito como documentos aptos a representar fielmente situações fáticas que permitem ao credor comprovar, com base no título escrito, seu direito de forma literal e autonomamente. Mamede (2012, p. 14), em outra obra jurídica (Direito Empresarial Brasileiro) discorre que o conceito de títulos de crédito tratado pelo nosso Código Civil, ao tratar da Teoria Geral dos Títulos de Crédito, foi baseado na obra do jurista Cesare Vivante, “realçando dois elementos primordiais dos títulos de crédito: literalidade e autonomia”.

De uma forma geral tais documentos representam direitos e obrigações das partes a ele vinculadas, em decorrência da aceitação, pela legislação, de tais cédulas como aptas a representar um direito de crédito a quem o ordenamento jurídico confere certas prerrogativas. Nossas legislações, civil e especial, dão tratamento específico à matéria, regulada de forma exaustiva, onde verificamos a presença de, no mínimo, três postulados orientadores do estudo dos títulos de crédito. Tais princípios informadores, que serão objeto de estudo no próximo tópico, são: cartularidade, literalidade e autonomia.

2. PRINCÍPIOS BÁSICOS APLICÁVEIS AOS TÍTULOS DE CRÉDITO E O COSTUME NA EMISSÃO DE CHEQUE "PRÉ-DATADO".

Do conceito de títulos de crédito conseguimos apreender algumas lições básicas a serem seguidas quando do entendimento da disciplina cartular, consistente basicamente no estudo dos postulados da cartularidade, literalidade e autonomia. Tais preceitos de ordem geral são seguidos, em sua quase totalidade, pelos títulos de crédito, em especial naqueles classificados como típicos, como é o caso do cheque, que tem previsão normativa específica, por conduto da Lei nº 7.357/85.

Fábio Ulhoa Coelho (2011, p. 393) afirma que:

[…] conceito, formulado por Vivante e aceito pela unanimidade da doutrina comercialista, sintetiza com clareza os elementos principais da matéria cambial. Nele se encontram, ademais, referências aos princípios básicos da disciplina do documento (cartularidade, literalidade e autonomia), de forma que seu detalhamento permite a apresentação da teoria geral do direito cambiário.

Tais preceitos, por vezes tratados como caracteres básicos, consistem em regras aplicáveis a todos os documentos a que a legislação confere a prerrogativa de serem enquadrados como títulos de crédito. Isso porque nem todo e qualquer documento representativo de uma dívida pode ser enquadrado como aqueles. Um exemplo clássico é o do boleto bancário, que, apesar de representar direitos e obrigações, não é considerado, por lei, como título de crédito.

Assim, os títulos de crédito se apresentam em razão de sua cartularidade. Tal princípio é baseado na ideia de que tal título existirá pela criação de uma cártula (documento), que tem a função de representar um direito de crédito, já adquirido anteriormente. Assim entende Fábio Bellote Gomes (2012, p. 193), para quem:

A cartularidade baseia-se no fato de que um título de crédito existe enquanto existir a cártula, ou seja, enquanto existir o próprio título impresso, que tem por finalidade a representação de um direito de crédito preexistente […], devendo todas as informações relativas ao crédito cambiário, que é o crédito representado pelo título, estarem inseridas na cártula, daí se originando o brocardo de que “o que não está no título não está no mundo”.

Tal documento deve obrigatoriamente fazer menção a toda e qualquer situação jurídica que se queira comprovar mediante a apresentação do título, não sendo suficiente a mera informação em documentos à parte. É a incorporação à cártula de todas as informações que nela estejam inseridas, não existindo, portanto, o direito de crédito sem o respectivo documento. A apresentação do título é essencial para a consecução dos direitos nele mencionados.

Assim, Ramos (2012, p. 432) afirma que:

[…] o princípio da cartularidade nos permite afirmar que o direito de crédito mencionado na cártula não existe sem ela, não pode ser transmitido sem a sua tradição e não pode ser exigido sem a sua apresentação. É em função da obediência ao princípio da cartularidade que alguns autores inserem os títulos de crédito na categoria de documentos dispositivos, que consistem, justamente, naqueles documentos que são imprescindíveis para o exercício dos direitos que eles representam. Também se costuma utilizar, com o mesmo sentido de cartularidade, a expressão princípio da incorporação, segundo o qual o direito de crédito se materializa no próprio documento, não existindo o direito sem o respectivo título.

Do mesmo modo entende Ricardo Negrão (2010, p. 40), para quem:

A cartularidade ou incorporação invoca a necessidade ou indispensabilidade, isto é, sem o documento não se exerce o direito de crédito nele mencionado. A pessoa detentora do título – boa-fé – é reconhecida como credora da prestação nele incorporada e, inversamente, sem a apresentação do título, não há como obrigar o devedor a cumprir a obrigação inscrita no título.

Não supre a demonstração da cártula original nenhum documento copiado, mesmo que com a autenticação por tabelião público, não servindo ao exercício dos direitos que somente poderiam ser demonstrados com o título de crédito original, conforme já decidido pelo STJ, no Recurso Especial (REsp) nº 11.725/RN, julgado pela Terceira Turma, in verbis:  "EMENTA: Execução - Contrato. Fundando-se a execução em contrato, admissível a apresentação de copia que, não impugnada, há de ter-se como conforme ao original, aliás posteriormente apresentado. Hipótese que não se confunde com a execução de título cambial que, suscetível de circular, deve ser exibido no original." (grifo nosso)

Mesmo a existência atualmente dos chamados títulos de crédito virtuais, em decorrência do desenvolvimento da tecnologia, não teve o condão de retirar tal caractere basilar dos títulos de crédito. Em verdade, a possibilidade de emissão de tais documentos virtuais existe em decorrência de permissivo legal, uma exceção, constante do artigo 889, § 3º do Código Civil Brasileiro (CC), que diz: “o título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”.

Por seu turno, a literalidade consiste no caractere, de natureza formal, da necessidade de todas as informações estarem escritas literalmente no respectivo título de crédito. Assim, o conteúdo e os limites do exercício dos direitos mencionados na cártula estão predispostos pela intelecção do que nela está escrito. Segundo Ferri apud Tomazette (2009, p. 29) “o teor do título é relevante para definir a existência, o conteúdo e a modalidade do direito”. Para Fazzio Júnior (2012, p. 323) “O direito emergente do título é o direito tal qual escrito no documento”.

Assim, os direitos atribuídos ao credor e as obrigações aplicáveis ao devedor são verificadas, em extensão e medida, pelo que está literalmente escrito no título de crédito. Não pode o credor exigir mais do que o previsto, muito menos o devedor irá pagar a mais do que escrito. Desse modo, escreve Amador Paes de Almeida (2009, p.3): “Os títulos de crédito são literais porque valem exatamente a medida neles declarada”.

Em razão das regras dispostas pelo princípio da literalidade somente terão validade jurídica os atos lançados na cártula, não servindo escritos em documentos separados do título de crédito. Assim entende Coelho (2011, p. 398), para quem:

[…] somente produzem efeitos jurídico-cambiais os atos lançados no próprio título de crédito. Atos documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e eficazes entre os sujeitos diretamente envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do título. O exemplo mais apropriado da observância do princípio está na quitação dada em recibo separado. Quem paga parcialmente um título de crédito deve pedir a quitação na própria cártula, pois não poderá se exonerar de pagar o valor total, se ela vier a ser transferida a terceiro de boa-fé. (grifo nosso)

Por seu turno, o terceiro princípio básico da disciplina cartular, considerado pela doutrina jurídica como o mais importante no entendimento da matéria afeta aos títulos de créditos, a autonomia, significa que o documento criado na relação jurídica creditícia está desvinculado do negócio jurídico que o originou. Ramos (2012, p. 434) afirma que:

Por esse princípio, entende-se que o título de crédito configura documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e completamente desvinculado da relação que lhe deu origem. Assim, as relações jurídicas representadas num determinado título de crédito são autônomas e independentes entre si, razão pela qual o vício que atinge uma delas, por exemplo, não contamina a(s) outra(s). Melhor dizendo: o legítimo portador do título pode exercer seu direito de crédito sem depender das demais relações que o antecederam, estando completamente imune aos vícios ou defeitos que eventualmente as acometeram.

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Segundo Negrão (2010, p. 40): “A autonomia é o princípio que melhor garante a plena negociabilidade dos títulos de crédito, concedendo-lhe agilidade, dada à segurança jurídica com que reveste o escrito cartular”. Isso porque, eventuais vícios que maculam a relação jurídica originária da cártula não serão transferidos às relações posteriores, nem às pessoas que posteriormente receberam o título de crédito.

Na mesma quadra, entende Mamede, em sua obra Direito Empresarial Brasileiro (2012, p. 20), para quem: “a declaração de vontade inscrita na cártula deve ser compreendida como em si, ou seja, como ato jurídico autônomo ao negócio subjacente, do qual se originou”.

Há uma autonomia, traduzida pela desvinculação da operação que criou o título, conhecida como o fenômeno da abstração (considerado por doutrinadores como subprincípio da autonomia).

Na lição de Tomazette (2009, p. 34):

Pelo princípio da abstração, o título de crédito se desvincula do negócio jurídico que lhe deu origem, isto é, questões relativas a esse negócio jurídico subjacente não têm o condão de afetar o cumprimento da obrigação do título de crédito. Não importa a origem do título, ele existe abstratamente, completamente desvinculado da relação inicial.

Logo, tal preceito básico traduz uma confiança na aceitação de títulos de crédito em geral, uma vez que o ordenamento jurídico dispõe de uma regra que não exige o prévio conhecimento de problemas originados nas relações jurídicas anteriores, sem a qual o mercado certamente não aceitaria tais documentos.

O cheque, enquanto título de crédito típico, regulamentado pela Lei nº 7.357/85, obedece aos princípios cartulares básicos. Assim, como regra geral, é representado por uma cártula, emitida por um banco emissor, no qual os direitos e deveres das partes, inerentes ao documento creditício, estão literalmente dispostos no documentos, além de não estar vinculado ao negócio de origem subjacente, aquele do qual deriva o título. Segundo as regras contidas no art. 32 da Lei do Cheque, “O cheque é pagável à vista. Considera-se não estrita qualquer menção em contrário”.

Em verdade há uma discussão doutrinária a respeito se a natureza jurídica do cheque seria a de título de crédito, ou estaria incluído meramente como um documento representativo de dívida. A maioria da doutrina comercialista entende ser o cheque um título de crédito, com todos os caracteres que o qualificam como tal.

Pontes de Miranda (2000, p. 42), em lada oposto, entende que o cheque não consiste num título de crédito, mas sim em um instrumento de pagamento disponível para aquele que possui fundos disponíveis em poder de um banco.

Consoante doutrina Rubens Requião (2007, p. 492), o cheque é considerado como um título de crédito impróprio, uma vez que possui sua forma de pagamento adstrita a condição presente entre o negócio jurídico firmado entre o emissor do cheque e a instituição financeira sacada. Diz ele:

"É controvertida, entre os autores, a classificação do cheque como título de crédito. […] Adotamos, pelo seu melhor efeito didático, e também porque o cheque está incorporado na Segunda Parte do Código Civil, dedicada aos “Títulos de Crédito”, a opinião do Prof. Waldemar Ferreira: '...sobre ser simples instrumento de pagamento, poderá o cheque se revestir da natureza de título de crédito, quando, endossado, penetre no mercado de valores. […]'."

Do mesmo modo entende Fazzio Júnior (2012, p. 371), para quem:

"O cheque – que não é título de crédito em sentido estrito – é mesmo um instrumento de pagamento que se exaure com o recebimento do seu valor, mas contém diversos elementos peculiares aos títulos de crédito tradicionais, como, por exemplo, a literalidade e a abstratividade. De outra parte, é inegável que o sacado não tem nenhuma obrigação cambial, não garante o pagamento, não aceita (art. 6º), não endossa (art. 18, § 1º) e não avaliza (art. 29) o título. Também é discutível a sua circulabilidade. Deve ser contemplado, realmente, um título de crédito sui generis".

Já para Coelho, o cheque é ordem de pagamento à vista, e é considerado como título de crédito por previsão legal, em que há vinculação quanto ao seu modelo (2011, p. 458). Assim também entende Mamede (2012, p. 374), no seu Manual de Direito Empresarial:

O cheque é título de crédito por meio do qual uma pessoa (chamada emitente ou sacador) dá uma ordem a uma instituição financeira (sacado), na qual mantém conta bancária, para que pague, à vista, certa quantia a alguém (beneficiário ou tomador).

Para Ramos (2012, p. 454), o cheque também é considerado um título de crédito de modelo vinculado, possuindo legislação própria regendo a matéria, bem como por meio de regras emitidas fixadas pelo Banco Central.

Mesmo com toda discussão doutrinária latente a respeito da natureza jurídica do respectivo documento, o cheque é entendimento jurisprudencialmente como um título de crédito, com caracteres próprios que o distinguem dos demais documentos representativos de dívida.

Muito embora legalmente o cheque seja considerado uma ordem de pagamento para ser paga à vista, o costume comercial no Brasil acabou por criar a figura do cheque pós-datado (pré-datado), isto é aquele emitido com data de pagamento futura.

Segundo Tomazette (2009, p. 251):

"A prática do comércio ensejou a utilização do cheque não para pagamento a vista, mas com a combinação de uma data futura de apresentação. A própria prática bancária resolveu denominá-lo de cheque pré-datado".

Mesmo com a previsão legal (art. 32, Lei do Cheque) contrária, tal documento continua, ainda hoje, a ser utilizado, mesmo que em menor monta, em razão da própria dinâmica de mercado, que atualmente possui outros mecanismos de uso do crédito mais eficientes e seguros, como o cartão de crédito.

A emissão do cheque para ser pago com data futura não retira a natureza jurídica do documento como título de crédito, somente servindo, o acordo feito entre as partes, para ampliar o prazo de apresentação da cártula, conforme já decidido pelo STJ (REsp nº 612.423-DF), in verbis:

"EMENTA: Processual Civil. Comercial. Recurso especial. Execução. Cheques pós-datados. Repasse à empresa de factoring. Negócio subjacente. Discussão. Possibilidade, em hipóteses excepcionais. 1. A emissão de cheque pós-datado, popularmente conhecido como cheque pré-datado, não o desnatura como título de crédito, e traz como única consequência a ampliação do prazo de apresentação. […]" (grifo nosso)

Assim, mesmo a previsão expressa do acordo entre as partes não impede que o título seja pago pelo banco sacado, se apresentado antes da data acordada. A questão dos efeitos de tal conduta e dos eventuais prejuízos ao devedor devem ser aferidas em consonância com os ditames da responsabilidade civil, posto que, conforme a legislação de regência dos cheques, a ordem emitida em tal documento é incondicional.

Segundo Gomes (2012, p. 227):

"Considerando que o cheque é uma ordem direta e incondicional de pagamento, o seu cumprimento pelo banco sacado não pode ser subordinado a nenhuma condição ou evento futuro. Cumpre nesse ponto observar que o popularmente conhecido como cheque pré-datado nada mais é que uma mera convenção entre emitente e tomador, sendo aposta no cheque a data de emissão e a observação “bom para...”, evidenciando a data em que o título deve ser apresentado para pagamento".

Embora a Lei do Cheque não preveja tal figura, a jurisprudência brasileira é majoritária no sentido de acatar a sua existência, tendo amparado sua disseminação mercado, em razão da prática costumeira.  Negrão (2010, p. 145), afirma que:

"A prática regular de emissão de cheques pós-datados é realidade que não pode ser desprezada pelo Direito. Reconhece-se tratar de instrumento de crédito eficaz e, também, sua sujeição à tutela de proteção por danos que possam advir ao emitente em razão do descumprimento por parte do beneficiário que, desrespeitando o acordado, apresenta o título antes do prazo estipulado".

Tomazette (2009, p. 253) ensina que outros países, como na Argentina, possuem legislações autorizando a emissão de cheques pós-datados, o que não ocorre no Brasil, mas nem por isso devemos entender pela impossibilidade de sua emissão. Para ele:

"[…] tal conclusão é precipitada […] o art. 32 da Lei nº 7.357/85 não se dirige à relação entre o emitente e o beneficiário. Estes têm ampla liberdade de combinar a apresentação do cheque apenas a partir de certa data, isto é, pela autonomia privada eles podem celebrar entre si um acordo para apresentação futura do cheque. Não há qualquer vedação legal dessa combinação, o que demonstra a sua legitimidade".

Segundo Andrea Aldrovandi (2003):

"No Brasil, o cheque pós-datado continua existindo de fato, na prática, mas não para o direito positivo. Contudo, o crescimento de sua utilização e o número de litígios que envolvem o seu uso, levam o judiciário a encarar a necessidade de sua regulamentação, o que em breve poderá ocorrer em nosso país".

Já há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional Brasileiro tentando regular a criação legal do cheque pós-datado, dentre os quais, o último, de autoria do Deputado Federal Carlos Bezerra (PMDB/MT), PL nº 5400/2013, que tenta alterar o art. 8º da Lei do Cheque, permitindo que o cheque seja emitido com data de pagamento futura (pós-datação). Tal projeto atualmente está apenso ao PL nº 1029/1991, na Câmara dos Deputados, sem nenhuma votação concluída.

Assim, podemos depreender que, mesmo sem a previsão legal, tal documento é utilizado comumente no meio comercial brasileiro, sendo tal conduta acatada pela doutrina e jurisprudência brasileiras e válida legalmente, mas que, ante o descumprimento por parte do beneficiário do título, pode gerar consequências no âmbito da responsabilidade civil. Trataremos a seguir de tal hipótese.

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL DECORRENTE DO DEPÓSITO ANTECIPADO DO CHEQUE PÓS-DATADO, A SÚMULA nº 370 DO STJ E AS EXCEÇÕES À SUA APLICAÇÃO.

A responsabilidade civil, em nossa legislação pátria, é tratada pelo Código Civil, em especial pela intelecção dos artigos 186 e 927, que tratam da fundamentação legal, em decorrência da prática de um ato ilícito e o respectivo dever de indenizar.

Prevê o Código Civil Brasileiro (CC), no art. 186, o fundamento legal da existência do ato ilícito, nos seguintes termos: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. E o art. 927 do CC complementa: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Assim, a violação de um dever consignado numa relação jurídica ocasiona um ato ilícito, que, a seu turno, deve ser imputável àquele causador do dano, desde que preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil: conduta (comissiva ou omissiva, onde serão analisadas a culpa e dolo do agente), dano (resultado material) e liame obrigacional (nexo de causalidade).

Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 53):

"[…] a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)".

A seu turno, Flávio Tartuce leciona (2014, p. 928) que “a responsabilidade civil surge em face do descumprimento obrigacional, ou por deixar determinada pessoa de observar um preceito normativo que regula a vida”.

Na relação jurídica consignada no cheque, quando de sua pós-datação, há claro acordo de vontades (mesmo que oralmente), conforme o permissivo legal da autonomia da vontade, que deve ser respeitado pelas partes contratantes, em vista a boa-fé que deve permear tal relação. Logo, o não cumprimento do depósito, na data avençada que consta no respectivo título de crédito, pode gerar o dever de indenizar daquele que depositou antecipadamente a cártula.

O uso de cheques pós-datados tem relevo especial na área do consumo, em que pessoas, por comodidade ou necessidade, acabam por obter bens da vida mediante a emissão de tais cártulas com data de compensação futura. Segundo Coelho (2011, p. 467):

"É plenamente lícito ao emitente e ao credor do cheque definirem, de comum acordo, prazo mínimo para a apresentação do título à liquidação. A combinação, segundo o disposto na lei, não gera nenhum efeito perante a instituição financeira sacada, que tem o dever de simplesmente ignorar qualquer menção que torne o cheque título de pagamento a prazo. No entanto, com em qualquer outra hipótese de descumprimento de obrigação contratual, o fornecedor que não observa os termos de seu acordo com o consumidor, deve indenizar as perdas provocadas. Trata-se de mera aplicação de princípio mais que assente na teoria da responsabilidade contratual". (grifo nosso)

Sobre o tema, nossa jurisprudência já vem demonstrando, há algum tempo, concordar com a posição da doutrina comercialista, no sentido de assentir na existência de danos indenizáveis pelo descumprimento da avença, com a consequente responsabilização daquele beneficiário do cheque que o depositou antecipadamente. Vejamos:

"EMENTA: Dano moral. Cheque pré-datado. Apresentação antecipada. Contrato tácito. Endosso dos cheques a terceiro. Desimportância. Considerando a iterativa jurisprudência sobre a matéria, é causa ensejadora de dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado antes da data combinada pelas partes, ainda que os cheques tenham sido endossados, pois era dever da credora respeitar os limites do contrato entabulado, ainda que tácito. Apelo improvido. (Apelação cível n° 70004243689, 5a Câmara Cível, TJRS, Rel. Marco Aurélio dos Santos Caminha, Julgado em 07/11/2002)". (grifo nosso)

"EMENTA: Responsabilidade civil. Apresentação antecipada de cheques pré-datados. Devolução por insuficiência de fundos. Registros negativos. Nexo causal. Dano moral. Configurado pelo próprio fato. Responsabilidade do tomador. Valor da indenização. Critério de fixação. Redefinição da verba honorária. 1 – Cheque apresentado pela tomadora/credora antes da data prevista para a compensação. Descumprimento do entabulado entre as partes. Cheque devolvido por insuficiência de fundos perante o sacado, com inserção do nome do correntista no cadastro negativo dos órgãos de controle de crédito. Nexo causal configurado. 2 – Valor da indenização. Redução e fixação em moeda corrente, sendo vedada a vinculação ao salário mínimo. 3 – Honorários advocatícios. Redução que se opera com observância dos parâmetros insculpidos no art.20,§ 3o., do CPC. Matéria singela amplamente veiculada na jurisprudência que não demanda maior estudo e dispêndio temporal por parte do profissional. 4- Ausência de litigância de má-fé, já que não colacionadas as hipóteses previstas no art. 17, do CPC. Parte que sustenta a necessidade de comprovação efetiva do dano moral. Entendimento jurisprudencial que reconhece o dano pelo só fato da inscrição indevida. Tese que se sustenta no ônus da prova. Apelo da ré provido parcialmente. Recurso da autora prejudicado. (Apelação Cível n° 70003405701, 10a Câmara Cível, TJRS, Relator Paulo Antonio Kretzmann, Julgado em 05/09/2002)". (grifo nosso)

EMENTA: Agravo Regimental - Agravo de Instrumento - Recurso Especial - Ação de indenização por danos morais em razão da apresentação antecipada de cheques pré-datados, ensejando a inscrição do nome do emitente no Banco Central - Procedência - Prova do dano - Desnecessidade - Incidência do Enunciado n. 83⁄STJ - Recurso improvido. (AgRg no Agravo de Instrumento nº 1.135.190/RS, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Massami Uyeda, Julgado em 03/09/2009)". (grifo nosso)

Ante tal entendimento, o STJ editou, em 16/02/2009, a Súmula nº 370, que diz: “Caracteriza dano moral a apresentação antecipada do cheque pré-datado”. O entendimento sumulado foi proposto e relatado pelo Ministro Fernando Gonçalves, e seguida de forma unânime pelos componentes da 2ª Seção.

Num primeiro momento, numa análise preliminar, a leitura da súmula parecia ter, de fato, resolvido a questão atinente ao pagamento de danos morais, que seriam devidos pelo simples depósito antecipado do cheque pós-datado, gerando a obrigação de indenizar. Mas não é bem assim. Se assim fosse, estaria criada uma nova obrigação aplicável a toda e qualquer pessoa vinculada ao título, o que não ocorre. Isso porque há situações em que, mesmo com o entendimento jurisprudencial atual, não haverá tal obrigação. É o caso, por exemplo, da instituição financeira sacada que acatou o pagamento do título. Esta continuará a não ser responsável, por ter cumprido tão somente seu papel legalmente previsto. Em nenhum momento arcará com a obrigação de pagamento de danos morais, uma vez que sua conduta foi conforme a lei.

Tal entendimento é seguido por Tomazette (2009, p. 258), que diz:

"Além da ampliação do prazo de apresentação e, consequentemente, do prazo prescricional, a pós-datação tem o condão de criar uma obrigação extracambiária para o beneficiário do título, no sentido de não apresentar o cheque antes da data acordada. Tal obrigação é contratual, isto é, decorre do acordo realizado pelas partes e não diretamente do título de crédito, podendo ser provada por qualquer meio, uma vez que não se trata de obrigação solene. Ressalte-se, ainda, que tal obrigação contratual é do beneficiário e não do banco sacado". (grifo nosso)

Assim, também podemos conceber que a pós-datação é lícita, mas deve ser seguida fielmente pelo beneficiário do título, a quem o texto da Súmula nº 370 é direcionado. Mas, ainda assim, não basta a simples conduta de depositar antecipadamente o título para que seja originada a obrigação de indenizar. Esta deve surgir em decorrência da configuração dos elementos ensejadores da responsabilidade civil, inclusive com a demonstração dos danos morais sofridos, já que estes não são presumidos por disposição legal, e muito menos há tal informação no conteúdo da súmula. Assim, segundo o STJ, não basta o simples depósito antecipado, mas sim deve estar presente, e comprovado o dano, o abalo na órbita moral do emissor do cheque. Vejamos:

"EMENTA: COMERCIAL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE TÍTULO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CONTRATO COM ESTIPULAÇÕES USURÁRIAS. NULIDADE IMPOSSIBILIDADE. CHEQUE PRÉ-DATADO. DEPÓSITO ANTECIPADO. DANO MORAL. PRESUNÇÃO RELATIVA, QUE PODE CEDER AOS ELEMENTOS CONSTANTES DOS AUTOS. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DESSEMELHANÇA DOS CASOS CONFRONTADOS. RECURSO NÃO CONHECIDO. - Nos termos da MP nº 2.172-32, a existência de cláusula estabelecendo o pagamento de taxas de juros superiores à legal conduz à possibilidade de sua adequação aos parâmetros legais, desde que haja requerimento da parte nesse sentido; mas tal circunstância, por si só, não acarreta a nulidade do negócio jurídico como um todo, tampouco dos títulos que dele derivam. - Em que pese o entendimento de os danos morais prescindirem da prova, em razão do seu caráter in re ipsa, trata-se de presunção relativa, que não pode prevalecer ante à existência de elementos nos autos que evidenciem que o ato inquinado de ilícito não causou os prejuízos alegados. - Existindo no acórdão impugnado circunstância fática não encontrada no julgado paradigma, o dissídio não se configura, diante da dessemelhança dos casos confrontados. Recurso especial não conhecido (REsp nº 921.398, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Julgado em 09/08/2007)". (grifo nosso)

Um dos julgados que serviu da base para a edição da Súmula nº 370 do STJ, já se posicionava no mesmo sentido:

"EMENTA: Cheque pré-datado. Apresentação antes do prazo. Indenização por danos morais. Precedentes da Corte. 1. A apresentação do cheque pré-datado antes do prazo avençado gera o dever de indenizar, presente, como no caso, a consequência a devolução do mesmo por ausência de provisão de fundos. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp nº 557.505/MG, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Julgado em 04/05/2004)".

Assim também explica Douglas Philips Freitas (2010, p. 102), para quem:

"A caracterização do dano (material ou moral) no desconto de cheque pós-datado exige a comprovação do prejuízo direto ou indireto, como a devolução do título ou, por conta da compensação antecipada, a de outros títulos. Isto por haver, na hipótese, presunção relativa de dano, e não absoluta, conforme assentou o STJ nos precedentes que deram origem à referida súmula […]".

Do mesmo modo (como exceção à regra tratada na referida súmula), tal entendimento não é aplicável a terceiros de boa-fé, que não fizeram parte da relação jurídica contratual originária no cheque pós-datado, não podendo, por conseguinte, serem responsabilizados ao pagamento de danos morais em decorrência de deposito antecipado da cártula. É mais um limite à aplicação da Súmula nº 370, do STJ. Assim, entende Ramos (2012, p. 461):

"[…] vale ressaltar que um terceiro de boa-fé que recebe um cheque e o apresenta a pagamento antes da data combinada entre emitente e tomador não pode ser responsabilizado por tal ato, já que o acordo de “pré-datação” vincula apenas as partes que o fizeram".

O STJ já firmou entendimento neste sentido, mesmo após a referida súmula, quando do julgamento do REsp nº 884.346/SC, in verbis:

"EMENTA: DIREITO CAMBIÁRIO E RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CHEQUE PÓS-DATADO. PACTUAÇÃO EXTRACARTULAR.  COSTUME CONTRA LEGEM. BENEFICIÁRIO DO CHEQUE QUE O FAZ CIRCULAR, ANTES DA DATA AVENÇADA PARA APRESENTAÇÃO. TERCEIRO DE BOA-FÉ, ESTRANHO AO PACTUADO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS. 1. O cheque é ordem de pagamento à vista e submete-se aos princípios, caros ao direito cambiário, da literalidade, abstração, autonomia das obrigações cambiais e inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé. 2. Com a decisão contida no REsp. 1.068.513-DF, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, ficou pacificado na jurisprudência desta Corte a ineficácia, no que tange ao direito cambiário, da pactuação extracartular da pós-datação do cheque, pois descaracteriza referido título de crédito como ordem de pagamento à vista e viola os princípios cambiários da abstração e da literalidade. 3. O contrato confere validade à obrigação entre as partes da relação jurídica original, não vinculando ou criando obrigações para terceiros estranhos ao pacto. Por isso, a avença da pós-datação extracartular, embora não tenha eficácia, traz consequências jurídicas apenas para os contraentes. 4. Com efeito, em não havendo ilicitude no ato do réu, e não constando na data de emissão do cheque a pactuação, tendo em vista o princípio da relatividade dos efeitos contratuais e os princípios inerentes aos títulos de crédito, não devem os danos ocasionados em decorrência da apresentação antecipada do cheque ser compensados pelo réu, que não tem legitimidade passiva por ser terceiro de boa-fé, mas sim pelo contraente que não observou a alegada data convencionada para apresentação da cártula. 5. Recurso especial provido. (REsp nº 884.346/SC, 4ª Turma, STJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Julgado em 06/10/2011)". (grifo nosso)

O professor Marlon Tomazette (2009, p. 260) possui um entendimento diferente do posicionamento jurisprudencial, pois, para ele:

"[…] se o terceiro tinha ciência da pós-datação e mesmo assim faz a apresentação antecipada, ele não está agindo de boa-fé e, por isso, deverá responder extracontratualmente por seu ato culposo que causou danos ao emitente. A ciência decorre da aposição expressa da data futura no título, seja como data de emissão seja em outro ponto do título, ou qualquer outra prova que demonstre que ele tinha essa ciência".

Tal divergência doutrinária acaba por se enquadrar nos mesmos moldes do aresto tratado anteriormente, uma vez que conforme outra decisão do STJ, a pré-datação deve ser feita no próprio documento cartular, pois é ineficaz se feita em contrato separado. Tal questão foi decidida por conduto do REsp nº 1.068.513/DF.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste artigo discorremos sobre a conceituação dos títulos de crédito, bem como de seus princípios cartulares básicos, como forma de permitir um entendimento, mais à frente, das regras aplicáveis aos cheques, considerado como um título de crédito por uns, e como meio de pagamento à vista, para outros. Explicitamos que, mesmo sem previsão normativa, os usos e costumes (fonte do direito comercial e empresarial) permitiram a criação, no Brasil, do cheque pós-datado (pré-datado, usualmente chamado), bem como que é possível sua utilização conforme entendimento legal, doutrinário e jurisprudencial.

Com o entendimento da possibilidade de pré-datação, conseguimos demonstrar ser possível a existência de abalos a serem investigados no âmbito da responsabilidade civil, em decorrência do depósito antecipado de cheque pós-datado pelo beneficiário da cártula. Tal posição foi amplamente evidenciada pelas posições doutrinárias explanadas, bem como pela demonstração da aceitação jurisprudencial de tal fato, em especial no âmbito do STJ, que acabou por sedimentar sua posição por intermédio da Súmula nº 370. Explanamos que, num primeiro plano, a posição tratada na súmula parece ter aplicação a todos que estão vinculados ao cheque pós-datado, mas que um estudo mais detido e reflexivo demonstra claras exceções ao seu emprego.

Assim, a aplicação do entendimento firmado na Súmula nº 370 do STJ encontra limites quando de sua aplicabilidade prática, em decorrência de previsões legais que acabam por delimitar sua área de abrangência. Logo, não vincula o banco sacado, por este cumprir seu papel enquanto agente econômico no mercado. Também não se aplica àqueles que não figuraram como partes contratantes da situação de pré-datação, não havendo que falar em obrigação extracontratual. Assim, também não haverá indenização caso não restem comprovados, no caso concreto, os requisitos configuradores do abalo moral, consistente na violação dos direitos da personalidade. Tais exceções foram amplamente evidenciadas, em especial pelo estudo de casos concretos jurisprudenciais do STJ, tornando possível consignar a afirmação de que a Súmula nº 370 não é aplicável de forma automática a todo e qualquer caso em que tenha havido o depósito antecipado de um cheque pós-datado, encontrando limites de ordem legal, difundidos pela doutrina e confirmados na prática dos tribunais brasileiros.

REFERÊNCIAS

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_______________. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp n. 884.346/SC, Brasília. 06.10.2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 03 mar. 2014.

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Sobre o autor
Sidney da Silva Rêgo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera-UNIDERP/LFG. Especialista em Direito Processual pela Faculdade da Cidade de Maceió (FAMA). Professor Titular II da Faculdade Cesmac do Agreste, sediada na cidade de Arapiraca/AL. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O presente trabalho foi elaborado como trabalho de conclusão de curso da especialização em direito e advocacia empresarial.

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