O conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida e à saúde da criança e adolescente

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24/08/2015 às 18:32
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Conflito entre a liberdade religiosa do Testemunha de Jeová, ao recusar a transfusão de sangue, e a defesa à vida e à saúde da criança e do adolescente, com fulcro nos princípios constitucionais e nos direitos assegurados pela legislação especializada.

Resumo: O trabalho busca analisar o conflito entre a liberdade religiosa do Testemunha de Jeová, ao recusar a transfusão de sangue, e a defesa à vida e à saúde da criança e do adolescente, com fulcro nos princípios constitucionais e nos direitos assegurados pela legislação especializada. Abordar-se-á, inicialmente, o exercício da liberdade religiosa pelo paciente adulto, para, então, avaliar a ponderação de interesses em choque, no que tange ao menor, bem como à gestante, cuja proteção encontra-se inserida no Estatuto da Criança e do adolescente como parte da proteção à vida e à saúde da criança.

Palavras-chave: Liberdade religiosa. Transfusão de sangue. Direito à vida. Direito da criança e do adolescente.

Abstract: The work searchs to analyze the conflict enters the religious freedom of the Jehovah’s Witnesses to refuse blood transfusion, and the defense of child’s and adolescent’s life and health, with fulcrum in the constitutional principles and the rights assured for it specialized law. It will be approached, first, the exercise of the religious freedom for the adult patient, and, then, evaluating ponders of interests in shock, in that it refers to the minor, as well as pregnant woman, whose protection meets inserted in the “Estatuto da criança e do adolescente” as part of the child’s life and health protection.

Key-words: Religious freedom. Blood transfusion. Right to the life. Adolescent’s and child’s right.

 

Sumário: Introdução.1.Liberdade religiosa como direito fundamental. 1.1 O fundamento religioso para a recusa. 1.2. A liberdade religiosa e a recusa terapêutica para o adulto. 1.3. A liberdade religiosa da criança e do adolescente. 2. Direito à vida como garantia constitucional em face da proteção à criança e ao adolescente. 2.1 Poder familiar X proteção do direito à vida. 2.1.1 O conflito entre autonomia e beneficência. 2.1.2 A questão da autonomia da criança e do adolescente. 2.2 Liberdade individual da gestante X direito à vida do nascituro. 2.2.1 Direito à saúde e dever de assistência estatal em face da liberdade religiosa. 3. A dignidade da pessoa humana como garantia constitucional norteadora na solução do conflito ora proposto. Conclusão.

 

Introdução    

 

Falar em ser humano ou sobre questões a ele atinentes é uma das mais árduas tarefas por que passa um estudioso. É difícil falar sobre sua própria raça, seu povo, suas crenças. Dificilmente, portanto, as questões concernentes à vida, à liberdade, à dignidade serão dirimidas ou aceitas em um só posicionamento. A mente humana é algo desconhecido, seus ideais, pensamentos e convicções muitas vezes passam sem ser exteriorizados durante toda uma vida.

            É em torno das mencionadas questões que irá girar o presente estudo. Serão demonstradas e discutidas formas de solução de conflitos que digam respeito à liberdade religiosa e ao direito à vida, em especial, da criança e do adolescente. Não se tem aqui a pretensão de esgotar o assunto, mas sim a vontade de acrescer e trazer à tona situações com as quais um jurista pode se deparar, seja como advogado, juiz ou mesmo no desempenho de outras atividades.

            Pode haver, desta forma, caso em que ocorra um conflito entre direitos fundamentais tuteladas constitucionalmente, tal como os Testemunhas de Jeová, que se abstêm do uso de sangue por fundamento religioso, ensejando o conflito entre o direito à vida e à liberdade religiosa.

A questão de o indivíduo poder ou não recusar tratamento médico por convicção religiosa, será abordada sob um prisma jurídico, versando acerca, especialmente, do tratamento legal que lhe é dado, visto que as garantias constitucionais encontram-se, a priori, em um mesmo patamar.

            No que diz respeito ao indivíduo capaz, a questão, apesar de controvertida, é mais tranquila, visto que o que deve prevalecer normalmente, neste caso, é a liberdade, quando há prévio consentimento do paciente. O mais intrigante, portanto, é a situação do incapaz civilmente.

Para abordagem das situações demonstradas, por óbvio, será invocada uma série de princípios fundamentais consagrados na Constituição Federal, dentre eles o da liberdade de religião, já que o fundamento da recusa ao recebimento da transfusão de sangue está embasado principalmente neste direito, também consagrado pelo Estatuto da criança e do adolescente.

O direito à vida será prontamente abordado, já que esta temática importa nos limites da disponibilidade deste bem jurídico fundamental, devendo ser explicitado de forma correlata ao direito à liberdade, de forma que fique demonstrada a importância da escolha entre o bem vida e o bem liberdade, mencionando-se, inclusive, a possibilidade de relativizar  o poder familiar como meio de defesa ao direito à vida e à saúde do menor.

Ainda nesse contexto, o trabalho passará por algumas questões como a liberdade religiosa da gestante em detrimento do direito à vida do nascituro, bem como a obrigação do Estado em fornecer tratamentos alternativos, que possibilitem a efetivação de ambos os direitos em choque.

Finalmente, é absolutamente indispensável para se legitimar a escolha de um dos bens tutelados, a observância à dignidade da pessoa humana, como norte para a solução do conflito em apreço. A prevalência de qualquer um dos institutos acima elencados deverá levar em consideração a vida digna.

O presente estudo, portanto, será iniciado com a abordagem dos princípios constitucionais, demonstrando sua conceituação, para que se busque a harmonização necessária no caso concreto. Buscaremos, para tanto, utilizar-nos da ponderação de interesses, passando, ainda, pela discussão acerca da possibilidade de relativização dos princípios fundamentais supra mencionados.

Apesar de usualmente o direito à vida ser posto em primeiro lugar, no presente caso, falar-se-á, primeiro, na liberdade religiosa por uma questão didática, já que a própria abordagem do direito à vida por esses indivíduos, segue-se à primazia religiosa como direito fundamental.

 

1.         Liberdade religiosa como direito fundamental

 

Com o advento do Estado Democrático de Direito, o indivíduo conquistou a liberdade, ou seja, o direito de escolher que rumo seguir, em que acreditar, o que defender. Essa manifestação da autonomia do indivíduo “possibilita a liberdade de atuação e serve como limite às opressões do Estado[1]. Merecem ser mencionadas as palavras do ilustre doutrinador José Afonso da Silva[2] :

 

“O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de autuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade.

(...)

Nessa noção, encontramos todos os elementos objetivos e subjetivos necessários à idéia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente. Tudo que impedir aquela possibilidade de coordenação dos meios é contrário à liberdade.”

 

Há diversas formas de o indivíduo expressar a sua liberdade, dentre elas e, que nos interessa neste momento, está a liberdade religiosa, positivada e assegurada na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso VI, que dispõe: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A esse respeito, afirma a doutrina que “na verdade, o ser humano, através dos processos internos de reflexão, formula juízos de valor. Estes exteriorizam nada mais do que a opinião de seu emitente”[3]. Uma das formas, portanto, de emitir sua opinião é exatamente a opção religiosa do indivíduo. Assim, não pode a pessoa ser privada de direitos em face de sua escolha religiosa, assim como assegura a própria Constituição, no mesmo art. 5º, em seu inciso VIII, primeira parte, que prescreve: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (...)”.

Nas palavras de José Afonso da Silva[4], a liberdade religiosa compreende: “(...) três formas de epressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) e a liberdade de organização religiosa.

Pode-se compreender, portanto, do citado dispositivo que se deve respeitar a chamada escusa de consciência por parte do indivíduo, ou seja, não se pode exigir que Estado ou outra pessoa coíba alguém com uma imposição que seja incompatível com a sua convicção pessoal. Sendo assim, não pode o indivíduo ser obrigado a submeter-se a um tratamento médico que contrarie sua crença religiosa, valendo salientar o pensamento de Celso Bastos[5], neste sentido:

 

“A expressa ressalva constitucional, no sentido de que nem mesmo a obrigação legal poderá anular a liberdade de crença, que prevalecerá, sem qualquer punição, nos termos acima indicados, bem demonstra o alcance desta liberdade na sistemática constitucional.”

O já mencionado inciso VI do art. 5º da Constituição, “está a concretizar uma das vertentes de livre expressão do pensamento. Cuida, especificamente, de assegurar a liberdade do espírito em matéria religiosa e moral”[6]. Afigura-se aí concretizada a realização prática da liberdade religiosa mediante o cumprimento de suas orientações, dentre elas, até mesmo a possibilidade de recusar receber a transfusão de sangue.

 

Como bem leciona a jurista Ana Carolina Reis Paes Lemes[7]:

 

“A garantia da liberdade, no aspecto da religião, consiste na possibilidade de livre escolha pelo indivíduo da sua orientação religiosa e não se esgota no plano da crença individual, meramente subjetiva, de foro íntimo, mas abarca a prática religiosa, também denominada de liberdade de culto.”

 

A liberdade de crença não se confunde com a de consciência, como bem demonstra o Douto professor José Afonso da Silva[8], ao citar Pontes de Miranda :

Ambas são inconfundíveis – di-lo Pontes de Miranda -, pois, o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir eu se tutele juridicamente tal direito, assim como a liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença.

 

Desta forma, pode-se perceber que, o direito à liberdade religiosa por ser uma garantia constitucional e um direito fundamental do indivíduo, é, assim como o direito à vida, um direito indisponível. Neste sentido[9]:

 

“Com toda certeza, entender que a liberdade de religião (ou de não ter religião) deve ser sacrificada em respeito à intangibilidade do direito à vida e ao corpo humano é desconsiderar outro aspecto fundamental e igualmente indisponível da personalidade, que é a liberdade de crença, nas precisas palavras de TEPEDINO e SCHREIBER. Seria desprezar uma compreensão mais elástica da personalidade, na qual se inclui, ixexoravelmente, a intelectualidade humana, para represá-la apenas na dimensão física da pessoa.” 

 

Saliente-se, ainda, com este mesmo direcionamento, o douto Alexandre de Moraes[10], ao lecionar que “o constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade espiritual.

Tal questão, porém, afigura-se de mais difícil conclusão quando se está diante de um paciente em iminente perigo de vida, pois para os médicos a escolha pela autonomia do indivíduo neste caso, pode gerar-lhes inúmeras complicações futuras, inclusive, no próprio Conselho de Medicina e na própria esfera penal, questão que será debatida em momento oportuno.

Daí surge a necessidade de relativização dessas garantias, visto que não devem ser exercidas de forma ilimitada, já que se encontram em um mesmo patamar constitucional, havendo a necessidade de se estabelecer a preponderância de um sobre o outro no caso concreto. Pensamento compartilhado por parte da doutrina, a exemplo de Alexandre de Moraes.

 

1.1       O fundamento religioso para a recusa

 

A pergunta que, possivelmente, vem à cabeça do leitor é: por que o Testemunha de Jeová acredita ser a transfusão de sangue proibida? A resposta a este questionamento, segundo os seguidores desta religião é obtida em alguns textos contidos na Bíblia,a saber: “Gênesis (9:3-4): todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso de vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma – seu sangue – não deveis comer.

Ou ainda:

“Levítico (17:10): quanto qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo.”

 

Dessa forma, percebe-se que com base em interpretação literal do texto bíblico extrai-se a proibição “divina” de se receber sangue de outrem. Fundamentando-se na sua convicção religiosa é que os seguidores dessa vertente põem em risco mesmo o seu direito à vida, demonstrando assim, quão intensa é sua crença que os faz assumir o perigo de morte, sem a transfusão, face à certeza de que terão a paz eterna.

Apesar de o centro da discussão não ser aqui o fato de proceder ou não esse fundamento, interessante salientar o seguinte posicionamento[11]:

“As denominadas Testemunhas de Jeová interpretam erroneamente a passagem bíblica de Atos, cap. 15, vers. 20, em que os Apóstolos, trazendo algumas regras do Antigo para o Novo Testamento, recomendaram aos novéis cristãos (isto é, aos recém-convertidos do Paganismo ao Cristianismo), que se abstivessem do sangue; a sobredita seita vê, aqui, uma proibição implícita da realização de transfusões sangüíneas. Entretanto, o leitor atento, lendo todo o capítulo 15 de Atos, entende que a questão posta em debate era se algumas normas do Judaísmo (Antigo Testamento) deveriam ou não prevalecer no Cristianismo (Novo Testamento); a conclusão foi a de se conservarem as regras contidas no versículo 20, entre elas, a abstenção do sangue; porém, tal proibição, oriunda do Antigo Concerto, era a de se comer o sangue dos animais (Gênesis, 9:4; Levítico, 3:17). Só dos animais, pois, naquela época, nem se sonhava com transfusões sangüíneas, entre seres humanos... As Testemunhas retrucam que o sangue humano equipara-se ao sangue dos animais, o que é uma falácia, pois a própria Bíblia diz que “a carne (natureza física) dos homens é uma e a carne dos animais é outra” (I Coríntios, 15:39). Por fim, argumentam as Testemunhas que, se não se pode comer, pela boca, o sangue, não se pode, também, ingeri-lo pela veia, em uma transfusão. Contudo, o Médico acima mencionado, Dr. Sinésio, esclarece o seguinte: “A reação metabólica é completamente diferente, ao se comer o sangue (de animais) e ao se tomar uma transfusão de sangue (humano) pela veia: quando se come o sangue (animal) – pela boca, é óbvio –, o organismo absorve as gorduras e proteínas, mas a massa sangüínea é posta fora, após a digestão, pelas fezes; quando se toma uma transfusão de sangue (humano), pela veia, a massa sangüínea aplicada não é eliminada pela digestão, mas incorpora-se no sangue do paciente”.

Vê-se, assim, a diversidade de interpretações possíveis a fundamentar as crenças religiosas, dentre as quais se encontra a dos Testemunhas de Jeová em relação ao recebimento de sangue.

1.2       A liberdade religiosa e a recusa terapêutica do adulto

 

A liberdade religiosa deve prevalecer, quando o paciente for maior, capaz e estiver gozando plenamente de suas faculdades mentais. Estando, portanto, em condições de se manifestar validamente, deve ter sua vontade prevalecida. Tal posicionamento encontra guarida no fato de que o paciente poderia até mesmo ter deixado de se deslocar até a clínica ou hospital.

Sendo assim, se o paciente em plena lucidez resolve procurar tratamento médico é porque não está se abstendo do seu direito à vida, apenas se recusa a receber o sangue. O que quer dizer que aceita outra intervenção sobre seu próprio corpo, menos a transfusão sanguínea. 

Dessa forma, obrigar o paciente a receber o sangue é ir contra a sua dignidade e até mesmo, contra um dos princípios primordiais do Estado Democrático, a liberdade, visto que esta estaria sendo cerceada sem justificativa, pois a pessoa tem o direito de escolher a qual tratamento médico deverá se submeter, sendo plenamente válido o seu consentimento se estiver em condições de fazê-lo.

Nesse sentido o Código Civil de 2002 consigna um direito da personalidade, consagrando a possibilidade de recusa terapêutica em seu artigo 15, quando prescreve que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

Observa-se desta forma a consagração da autonomia do paciente, considerando-se aqui que todo tratamento médico traz certo grau de risco, que poder ser mesmo fatal. No caso de transfusão, risco de contaminação por doenças potencialmente letais. Sendo assim, apesar de inúmeros posicionamentos divergentes, deve vingar a solução de prevalência da vontade do paciente, quando em plena capacidade de fazê-lo, pois assim se estará garantido o direito constitucional à liberdade, em sua plenitude.

No caso de o paciente não conseguir exprimir validamente sua vontade, é dever do médico, prima facie, proceder ao tratamento, já que ali está em posição de garantidor do bem jurídico vida, e, se presente o risco iminente, outra não deve ser a postura do médico, que é respaldado, inclusive, pela lei penal, nos termos do artigo 146, § 3º, I do Código Penal.

 

  1. Liberdade religiosa da criança e do adolescente

 

No que concerne à criança e ao adolescente, da mesma forma que o adulto tem direito à liberdade religiosa, como já explicitado acima, a criança e o adolescente também o têm. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 16, dá-lhes o direito de exercerem sua liberdade de culto, garantindo igualmente o respeito a esta manifestação. Por serem, porém, pessoas em desenvolvimento, merecem uma melhor atenção acerca das implicações geradas por uma escolha religiosa.

O Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza, logo em seu art. 1º, a proteção integral que dispõe a criança e o adolescente, pois são seres em desenvolvimento que merecem especial atenção. Dessa forma, entende-se como proteção integral a necessidade de serem observados primordialmente os seus direitos, assegurando-lhes o atendimento prioritário pelo Poder Público.

Percebe-se desta forma não ser dever apenas da família a proteção desses seres, mas também da sociedade e do Estado. Com o advento do Estatuto, a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direito, não mais não mais sendo vistos como interesse exclusivo dos pais.

Agora, é responsabilidade de toda sociedade a efetivação da observância aos direitos da criança e do adolescente, devendo-se levar em conta a sua condição peculiar como pessoas em desenvolvimento.

De um lado, inclui-se, por óbvio, no âmbito da proteção integral, a defesa do direito à vida da criança e adolescente. De outra parte, o art. 17 do ECA estabelece a autonomia da criança e do adolescente prevendo a preservação dos seus valores, idéias e crenças, ratificando portanto, a sua posição de sujeito de direitos, sendo pessoas destacadas dos pais, não sendo obrigados a compartilhar dos mesmos ideais religiosos de seus responsáveis.

Interessante salientar que“este mesmo Estatuto permite que, em caso de adoção, o menor com doze ou mais anos possa também se manifestar. Por que este consentimento não pode ser ampliado para esta questão?[12]

A criança normalmente segue a crença dos pais, pois não têm discernimento suficiente para escolher seu posicionamento. Já o adolescente, na maioria das vezes, já possui entendimento bastante para optar por sua crença. A partir dessa idéia, será tratada, no decorrer do trabalho, a teoria do menor maduro. 

Após a abordagem doutrinária acerca da questão da liberdade religiosa, expõe-se aqui o cerne da pesquisa, pode o adolescente recusar-se (ou não) a receber sangue com fundamento em uma crença religiosa que difere das dos seus pais ou responsáveis? A resposta a este questionamento será melhor demonstrada, oportunamente, no capítulo seguinte, visto que no presente momento vale apenas afirmar que o preceito constitucional da liberdade religiosa foi estendido à criança e ao adolescente, conforme demonstra-se pela leitura do supra citado artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

  1. Direito à vida como garantia constitucional em face da proteção à criança e ao adolescente

 

Dentre os direitos e garantias fundamentais protegidos constitucionalmente está a vida. Sem esta, não há como se realizarem os demais direitos. É, desta forma, um suporte indispensável[13], para a realização e efetivação das demais garantias protegidas pelo Estado. Para muitos doutrinadores, por ser o primeiro direito do homem, é condicionador de todos os demais[14], é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos[15].

Vale lembrar que o Estado deve garantir o direito à vida em sua dupla dimensão, ou seja, o direito de permanecer vivo e o de viver com dignidade. A idéia de dignidade será melhor explicitada no último capítulo do presente estudo.

À época da inquisição, quando Estado e Igreja se confundiam, a religião se sobrepunha ao direito à vida, e muitas pessoas eram mortas por fundamentos religiosos. A vida era disposição do Estado (Igreja) que impunha penas de morte a indivíduos que contrariassem os posicionamentos filosóficos impostos pela Religião oficial.

Com a Revolução Francesa, surgem os direitos individuais que se mostram como garantia da pessoa humana, frente às arbitrariedades cometidas pelo Estado. É nesse cenário de elucidação de direitos que a vida passa a ser inviolável e protegida pelo Estado, tornando-se uma obrigação para o Poder Público e os particulares não cometerem atos que atentem contra esse bem jurídico.   

No Estado Democrático de Direito, a vida não é disponível; nem mesmo o indivíduo titular desse direito pode dispor do mesmo, pois já não interessa apenas a ele sua proteção, é obrigação também do Estado.

A vida, então, possui valor social, passando o Estado, de seu opressor, para posição de garantidor. A questão é saber se este direito é absoluto ou se há possibilidade de ceder ante outros direitos, tais como a liberdade religiosa e o direito-dever do poder familiar.

Além de previsto e garantido no art. 5º do texto constitucional, há a proteção específica do direito à vida da criança e do adolescente no mesmo texto, em seu art. 227, caput, que contém a seguinte previsão:

 

“Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

 

É, ainda, ratificado no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 7º, caput, em que igualmente se garante o direito à saúde, por ser consentâneo lógico daquele direito. O citado artigo tem a seguinte redação:

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“Art. 7º: A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitem o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.”

 

Do texto legal extrai-se a preocupação do legislador em explicitar o direito à saúde da criança e do adolescente, como seres em desenvolvimento merecedores de especial atenção não só por parte do Estado e da família, mas também da sociedade. É em vista dessa especial atenção que se deve levar em conta o peculiar tratamento que merecem as crianças e adolescentes.

Assim, diante da recusa dos pais Testemunhas de Jeová em permitir que seu filho se submeta ao tratamento de transfusão de sangue, devem os médicos e juristas levar em consideração a posição especial que têm as crianças e adolescentes na sociedade, pois são seres em desenvolvimento que representam o futuro. Nesse sentido, vale salientar que[16]:

“(...) o poder familiar não é absoluto, uma recusa ao tratamento do filho menor por razões de crença religiosa constituir-se-ia em exercício abusivo do pátrio poder, uma vez que o Estado transporta para os pais o dever de garantir a vida de seus filhos, porém, se atuarem em sentido diverso, não se pode permitir que a vontade dos pais se sobreponha ao direito de viver de seus filhos, impondo-se, portanto, a intervenção estatal.”

 

2.1       Poder familiar x proteção do direito à vida

 

A família é um instituto social de grande importância, pois, é ela o primeiro ambiente em que o indivíduo adquire experiências e conhecimentos. É, portanto, a primeira e uma das mais fortes influências na vida da pessoa humana. É a partir do convívio em família que se formam muitas vezes as crenças e convicções de cada um.

O poder a que o indivíduo em formação primeiro se submete é o poder familiar, exercido de forma igualitária pelo pai e pela mãe. É o que se denominava, no Código Civil de 1916, de pátrio poder, pois à época era exercido, prioritariamente, pelo pai. Com a igualdade prevista constitucionalmente, passou-se então, à denominação de poder familiar, prevista no art. 1.630 do Código Civil, que diz:“os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores.”

É, ainda, explicitado na lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente):

 

“Art. 21: O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurados a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.”

 

Sendo assim, diante de questão que diga respeito a filho menor, deverão o pai e a mãe decidir conforme o melhor interesse da criança ou adolescente. Daí surge o questionamento acerca da possibilidade de os pais, em nome do exercício do poder familiar, recusar a submissão dos filhos à transfusão de sangue. Tal atitude deverá levar em conta as diversas situações.

Na verdade, o poder familiar trata-se de um poder-dever, ou seja, têm os pais o dever de zelar pela integridade do seu filho, tendo em vista a proteção integral preconizada pelo Estatuto e constitucionalmente.

Há que se esclarecer, inicialmente, se se trata de situação em que há risco iminente de vida ou não. Nos casos de risco iminente diz o Código Penal em seu art. 146, § 3º, I que não se configura constrangimento ilegal a intervenção médica necessária sem o consentimento do paciente ou representante legal. 

Assim, em caso de o paciente estar em iminente perigo de vida, a orientação penal é no sentido de mesmo à revelia da vontade dos pais, submeter a criança ou o adolescente ao tratamento necessário, independentemente de autorização judicial. No mesmo sentido, pode-se apontar a postura da Comissão de Bioética (CoBi) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) que orienta, neste caso, após a procedimento médico ser efetuado, firmá-lo em um prontuário pelo médico responsável, endossado por mais dois médicos da equipe, e, a seguir, ser o caso notificado à Vara de Infância e Juventude.

Vale salientar o posicionamento no mesmo sentido[17]:

 

“(...) no caso da transfusão se mostrar imprescindível à manutenção da vida do menor, não seria razoável deixar de realizá-la e, com base em crença religiosa dos pais, dispor justamente daquela vida que precisa de maior proteção pelo ordenamento jurídico: o menor, criança ou adolescente. Não se vislumbra proporcionalidade alguma em afastar a vida de quem sequer possui maturidade para escolher determinada religião.”

           

Em sentido oposto registre-se a opinião de Celso Ribeiro Bastos[18]:“A decisão sobre não submeter-se (sic)  a determinado tratamento médico, como visto é perfeitamente legítima e, assim, inclui-se, como qualquer outra, no âmbito da decisão dos pais quando tratar-se de filho menor de idade.”

Se o paciente for menor e encontrar-se com risco à vida não iminente, vale demonstrar como ilustração a orientação da COBI, que é no sentido de os pais ou responsáveis serem encaminhados, instruídos com relatório médico, pelo Serviço Social à Vara da Infância e da Juventude de competência ou, se residirem em outra comarca, à Vara Central da Infância e Juventude para decisão judicial.

Veja-se, todavia, que tal solução pode acarretar demoras prejudiciais ao tratamento, com conseqüências até mesmo fatais. A orientação de submeter o caso ao Judiciário, todavia, é bastante plausível, devendo o juiz, ao deparar-se com tal situação, considerar a posição especial do menor perante a sociedade, relativizando, talvez, o poder familiar, frente ao direito à vida da criança ou adolescente, para que estes possam exercer o seu direito de viver, não lhes sendo privada a oportunidade de, futuramente, virem a tomar suas próprias decisões de crença religiosas.

Deve-se, todavia, sempre que possível, buscar ajudar os pais ou responsáveis a entenderem a necessidade da conduta, objetivando evitar o confronto judicial. 

Mais viável, na prática, é que o próprio setor jurídico do hospital vá a juízo com pedido liminar para autorizar a transfusão no interesse do menor, cuja proteção cabe não apenas à família, mas a toda a sociedade, nos termos do art. 4º do ECA e art. 227 da Constituição Federal (CF).

 

2.1.1    O conflito entre autonomia e beneficência

 

Um dos maiores problemas enfrentados pela Bioética relaciona-se com o conflito em que, de um lado está a beneficência, ou seja, a noção de se fazer o bem e, de outro, a autonomia do paciente, que reside na liberdade de decidir se deseja ou não se submeter ao tratamento médico determinado. Acerca dessa problemática, lecionam Pessini e Barchifontaine[19]:

 

“Dentre os múltiplos problemas morais da Medicina atual, existe uma categoria em especial que surge a partir do conflito entre o desejo de fazer o que se considera ser o melhor interesse do paciente e o desejo de fazer o que o paciente diz querer (ou diria, caso lhe fosse dada a oportunidade de discutir as alternativas). Ambas as atitudes caracterizam aquilo que poderíamos denominar de respeito pelas pessoas, o qual contém dois elementos essenciais: 1) preocupação pelo seu bem-estar, e 2) respeito pelos seus desejos. Normalmente, essas duas dimensões do respeito pelas pessoas são complementares, mas há muitos casos onde existe nítida tensão entre eles e é precisamente nessas ocasiões que a maior parte dos dilema agudos da ética médica ocorrem. Em última instância o conflito é entre, por um lado, a beneficência, o princípio de que se deve fazer o bem, ou de que não se deve prejudicar (o princípio hipocrático do “primum non nocere”); e por outro lado, o princípio de que se deve respeitar a autonomia das pessoas.”

 

No conflito posto em análise, está, de um turno, a autonomia do paciente em recusar à transfusão do sangue e, de outro, a beneficência do tratamento que poderá salvar sua vida. Com relação ao maior capaz, a questão já foi suscitada em tópico anterior, situação em que cabe ao indivíduo expressar sua vontade, quando em condições de fazê-lo. O ponto é, porém, se se deve considerar a vontade da criança e, em especial, do adolescente, casos em que se tem uma autonomia por representação dos pais ou responsáveis, já que o juridicamente incapaz não pode exercer de per si sua liberdade de escolha.

Como visto no tópico anterior, os casos de iminente risco de vida dispensam mesmo a autorização judicial para a transfusão de sangue em criança e adolescentes, a despeito da posição religiosa de seus pais.

Na situação em que o risco não é iminente, porém a medida é medicamente necessária, é possível recorrer à intervenção judicial para superar a autonomia por representação dos pais ou responsáveis.

A questão torna-se, todavia, ainda mais polêmica e de difícil solução quando, além da recusa dos pais, a resistência parte da própria criança ou, em especial, do adolescente, no exercício de sua liberdade religiosa, assegurada na CF/88, bem assim no art. 16 inciso II do ECA. É possível falar, nesse caso, em autonomia do menor? É o que se passa a discutir. 

 

2.1.2    A questão da autonomia da criança e do adolescente

 

A Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral no dia 20 de novembro de 1989, no seu artigo 12, estabelece[20]:

“Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.”

Com a leitura desse dispositivo percebe-se a crescente preocupação em se levar em conta a vontade do incapaz, que ensejou o surgimento da teoria do menor maduro, amplamente utilizada no direito anglo-americano. Nela se leva em consideração a vontade do menor na medida da sua maturidade. Com a crescente observância de que o menor vem atingindo mais cedo sua maturidade é que se forma tal teoria. Aqui no Brasil, pode-se observar a utilização dessa idéia, no caso de adoção, em que se determina a oitiva do menor, a partir dos doze anos, nos termos do parágrafo 2º do artigo 45 do ECA.

Com base no entendimento supra citado, defende-se a possibilidade de recusa da transfusão de sangue para menores a partir de doze anos, para tanto Bruno Marini[21] cita decisões adotadas no Canadá, nesse sentido:

O Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá), que reconheceu o direito de um jovem de quinze anos recusar transfusão de sangue, nos seguintes termos:

 

“Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Drª Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico... ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as conseqüências de sua recusa de receber transfusões...

No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as conseqüências do tratamento proposto. Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico.”

 

Em um outro caso, envolvendo um jovem de quinze anos, o autor cita manifestação do ministro Wells, da Suprema Corte de Terra Nova (Canadá), que declarou:[22]

“Estou convicto de que ele crê de todo o coração que receber transfusão seria errado e que se for forçado a receber sangue na circunstância a que nos referimos seria uma invasão de seu corpo, uma invasão de sua privacidade e uma invasão de todo o seu ser, a ponto de causar um severo impacto sobre a sua força e habilidade de enfrentar essa terrível provação que ele tem de passar, qualquer que seja o desfecho.

É digna de citar, ainda, a manifestação da drª. Mary Francês Scully, falando de um paciente seu de quinze anos que se recusara a uma transfusão[23]:

“Ao tratar doenças graves, tais como a leucemia mielóide aguda, meu enfoque consiste no que é mencionado nos círculos médicos como um enfoque holístico. Estudos médicos indicam claramente que uma combinação de fatores são importantes para se combater uma doença grave... Os estudos indicam deveras que, sem esta confiança, apoio e atitude mental positiva, os protocolos de tratamento tendem a ser muito menos eficazes...

É minha opinião... que não respeitar a sua vontade seria pôr em sério risco as chances dele de recuperação. De fato, administrar uma transfusão de hemácias para repor as células destruídas pela quimioterapia contra a vontade [do paciente] causaria, na minha opinião, mais dano do que bem.”

 

Apesar dos argumentos supra transcritos serem no sentido de o menor ser ouvido, mesmo em caso de não aceitar o procedimento, sou de acordo em ouvi-lo apenas no caso de ele aceitar submeter-se à transfusão de sangue, em contraposição à vontade dos pais, já que estará exercendo o seu direito à vida como superior aos demais, aí se verifica a sua vontade em continuar a viver, em consonância com o entendimento retro, de que deve prevalecer a proteção à vida do menor nesse caso.

Em contrapartida, questão de difícil resolução é no caso de o adolescente ser adepto à crença Testemunha de Jeová. Aqui, há de se verificar, ainda, a posição dos pais. Caso estes não sejam adeptos da religião e optarem pela transfusão, a manifestação dos pais deve prevalecer sobre a vontade do menor, visto ser a vida um direito condicionador dos demais, como já explicitado. Se os pais, como o adolescente, recusarem a transfusão, defende-se solução similar ao caso da criança.

Em sentido oposto.[24]  :

 

“De fato, enquanto a imposição de tratamentos médicos pode surtir um efeito negativo, por outro lado, ao passo que forem aplicados tratamentos alternativos que respeitem a consciência e as crenças do indivíduo, isto com certeza influirá de forma positiva na recuperação do paciente.

Por fim, não podemos esquecer que o E.C.A. nos artigos 15 c.c 16, II e III, diz que a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo, não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível, ouvir o menor na medida de sua maturidade.”

 

Defendo posição oposta a esta, tendo em vista o fato de a vida ser bem indispensável ao exercício dos demais. Sendo assim, o menor deve ser ouvido sempre que queira exercer esse direito, pois futuramente poderá fazer ele mesmo sua opção religiosa. Veja-se que o adolescente está em uma fase de transição, que pode ter aquela posição religiosa apenas transitoriamente, culminando, todavia, uma decisão definitiva e irreversível.

Em resumo, caso se trate de paciente menor, mesmo adolescente, decidir-se-á sempre em favor da vida, independentemente de sua manifestação em contrário ou de seus responsáveis. Privilegiar-se-á, portanto, a beneficência sobre a autonomia por representação dos pais ou a autonomia em desenvolvimento do adolescente.

 

2.2       Liberdade individual da gestante x Direito à vida do nascituro

 

O ECA, ao proteger o direito à vida da criança e do adolescente começa pela proteção desde a gestação, por isso interessa-nos levantar a questão acerca da gestante que se recusa à transfusão sanguínea, mesmo pondo em risco a sua própria vida e a do nascituro.

            Primeiramente, há que se versar acerca da possibilidade de o nascituro ser titular dos direitos e garantias fundamentais preconizados na Constituição Federal e confirmados pelo ECA. Para tanto, brevemente serão expostas três teorias adotadas doutrinariamente para justificar a possibilidade ou não dessa titularidade.

             A origem da palavra nascituro é do latim nasciturus, que significa aquele que está por nascer, já se encontra no ventre materno. É aquele, portanto, que ainda não nasceu, ainda integra o corpo de sua genitora.

            Parte da doutrina vem entendendo que o nascituro não pode ser detentor de personalidade jurídica, estando condicionada ao nascimento com vida. Nesse sentido, Sílvio Rodrigues que afirma[25]: “a lei não lhe concede personalidade, a qual só lhe será conferida se nascer com vida”

            Outros doutos entendem que, na verdade, o nascituro é pessoa virtual, condicionada ao eventual nascimento com vida, afirmam que só terá personalidade jurídica se nascer com vida, havendo, portanto, uma condição pendente. Nesse diapasão, Washington de Barros Monteiro e Maria Helena Diniz sustentando que o nascituro dispõe de uma personalidade jurídica condicional. Veja-se posicionamento jurisprudencial, neste sentido[26]:

 

“Nascituro – Proteção de seu direito, na verdade proteção de expectativa, que se tornará direito se ele nascer vivo. Venda feita pelos pais à irmã do nascituro. As hipóteses previstas no Código Civil, relativas a direitos do nascituro, são exaustivas, não os equiparando em tudo ao já nascido (STF, Recurso Extraordinário 99038, 2ª T., Rel. Min. Francisco Rezek, 18-10-83)”

 

            Há, ainda, aqueles que esposam a idéia inspirada no Direito francês de o nascituro possuir personalidade jurídica, defendendo ser a mesma, adquirida a partir do momento da concepção. Busca-se como referência para alicerçá-la, regras contidas no próprio Código Civil, tais como o parágrafo único do art. 1.609, que permite o reconhecimento da filiação do nascituro; artigo 1.779, este versando sobre a possibilidade de curador para o nascituro; artigo 542, autorizando que se faça doação ao nascituro e, o artigo 1.798, ao reconhecer a capacidade sucessória do nascituro.

              Nessa linha, vale lembrar que o direito à vida, conferido pela Constituição da República em seu artigo 5º e, ratificado pelo Estatuto da Criança e Adolescente, artigo 7º, impondo a efetivação de políticas que permitam o nascimento sadio e, ainda, o reconhecimento do direito à assistência pré-natal, disponibilizando condições saudáveis para o desenvolvimento da gestação.

            Não cabe, no momento, dissertar minuciosamente acerca da titularidade ou não do nascituro aos direitos da personalidade, porém buscou-se demonstrar os diversos posicionamentos quanto ao tema. Vale salientar, que a tese que reconhece ao nascituro os direitos da personalidade também estende ao mesmo a capacidade de ser parte em uma relação processual, tese patrocinada, inclusive, na jurisprudência[27]:

 

“Alimentos. Direito do nascituro. Inadimplemento do marido. Inteligência dos arts. 19 da Lei 5.478/68 e 773 do CPC. São devidos alimentos à esposa e à filha, mencionada como nascituro no momento da propositura da ação.”

 

            Desta forma, pode-se dizer que o nascituro pode, sim, ser titular dos direitos e garantias constitucionais, dentre eles, o direito à vida. Portanto, ele não pode ser privado deste direito, pois os direitos da personalidade são caracterizados como absolutos, relativamente indisponíveis, imprescritíveis e extrapatrimoniais[28].

            A classificação dos direitos da personalidade pode ser dada em seu aspecto físico, intelectual e moral, ou seja, visa à proteção da integridade física, intelectual e moral. O direito à vida encontra-se dentro da proteção à integridade física. Desta forma, se considerado como titular de direitos da personalidade, deve o nascituro ter assegurado o seu direito à vida.

            No caso em que a gestante é Testemunha de Jeová e necessita de transfusão de sangue para êxito de um tratamento médico e se recusa a fazê-lo, põe-se em questão a colisão de dois direitos fundamentais, quais sejam, o seu direito à liberdade religiosa e o direito à vida do nascituro.

            Como já exposto, pode-se dizer que o nascituro tem os seus direitos garantidos constitucionalmente, dentre eles o direito à vida, de modo que, no caso posto em análise, há flagrante situação de risco à vida do nascituro, restando-nos saber se há primazia de um direito sobre outro.

              No âmbito da integridade intelectual, está inserido o direito à liberdade religiosa. Desta forma, encontra-se entre os direitos da personalidade tanto o direito à vida como o direito à liberdade, ambos estão, portanto, no mesmo patamar constitucional e infra constitucionalmente.

            Na conjuntura em que se encontra o Ordenamento Jurídico pátrio, a tendência parece-nos ser a primazia da vida da mãe, em detrimento à vida do nascituro, como é o caso, por exemplo, do aborto permitido na situação em que não há outro meio para salvar a vida da gestante, nos termos do inciso II do artigo 128 do Código Penal: "Art. 128 — Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; (...)”

            Insta salientar que, nessa hipótese, há o conflito entre um mesmo bem jurídico, qual seja: vida; sendo diferenciados apenas os seus titulares, de um lado a mãe e de outro, o nascituro. Situação divergente é a já mencionada, em que, além dos titulares serem diversos, os bens jurídicos em conflito também o são, pois, de um turno, há a liberdade e de outro, a vida.

            Ocorre que no caso posto em análise, a mãe não quer deixar de ter seu filho, mas sim quer ver respeitado seu direito em escolher ou não se submeter ao tratamento terapêutico. Desta maneira, deve-se levar em conta a vontade da gestante, quando em consciência para exprimir sua vontade, só devendo proceder à transfusão em caso de não conseguir se expressar e estiver em iminente risco de vida[29].

            Sendo assim, no caso de a paciente ser maior e conseguir exprimir de forma irrefutável sua vontade dever-se-á buscar outro meio de salvar a vida da gestante e de seu filho, respeitando portanto, o seu direito de livre escolha, pois, na verdade, ela não quer deixar de viver e nem tampouco perder seu feto, mas não deseja se submeter à transfusão sanguínea.

            Vale lembrar que, mesmo em situação de iminente risco de vida, se a paciente já tiver se manifestado contrariamente a esse tipo de procedimento médico- terapêutico o médico deverá buscar outra maneira de salvar essas vidas.

            Em situação de iminente perigo de vida e que não tenha havido tal manifestação e nem a gestante esteja em condições de fazê-la no momento, deve o médico proceder ao tratamento, pois estará cumprindo com o seu dever, nos termos do artigo 146, § 3º, inciso I do Código Penal pátrio.

                       

  1. Direito à saúde e dever de assistência estatal em face da liberdade religiosa

 

            Uma vez que respeitada a liberdade religiosa da gestante simultaneamente à proteção devida à vida do feto, cumpre buscar a compatibilização desses dois direitos, mediante atuação estatal no sentido de fornecer tratamentos alternativos que não sejam contra a crença religiosa da mãe.

Ao lado da garantia do direito à vida, o ECA assegura à criança e ao adolescente o direito à saúde, que deve ser efetivado mediante políticas sociais públicas que permitam o desenvolvimento necessário, sadio e harmonioso para condicionar a sua existência com a adequada dignidade de condições.

            A saúde, por definição, é o complexo que diz respeito ao bem-estar físico, espiritual, moral e social[30] que é assegurado constitucional e infra constitucionalmente, de maneira que o Estado está obrigado a assegurá-la. Sendo assim, os que não têm acesso à saúde particular deve também ter o direito de escolher outro tipo de tratamento, assegurando a sua liberdade de crença e religião.  

            Nesse sentido, cumpre levantar a questão da necessidade de o Estado fornecer tratamentos alternativos à transfusão de sangue, ou seja, a obrigação de o Poder Público oferecer outros métodos de salvar a vida do paciente que não seja a transfusão, pois os adeptos à crença dos Testemunhas de Jeová aceitam outro tratamento que não esse.

            Ainda há o fato de a transfusão de sangue gerar um potencial risco à saúde do paciente, que pode ser contaminado por uma doença letal, a exemplo da AIDS, o que leva à aceitabilidade de sua recusa, nos termos do artigo 15 do Código Civil e à conveniência de oferecimento de tratamentos diversos aos que solicitem. Para um médico chamado Grant E. Steffen: “o tratamento médico de qualidade é a capacidade de os elementos desse tratamento alcançarem alvos médicos e não- médicos legítimos.[31]

            Com o intuito de demonstrar a viabilidade do tratamento médico sem sangue pode-se ter, como exemplo, os métodos descritos em revista periódica de seguidores de Testemunha de Jeová, tais como solução salina, ou líquidos dotados de propriedades especiais, tais como a dextrana, o Haemaccel, e a solução de lactato de Ringer.

            Tais líquidos são relativamente atóxicos e baratos, prontamente disponíveis, podendo ser estocados à temperatura ambiente, não têm exigência de testes de compatibilidade e são isentos do risco de doenças transmitidas pela transfusão[32].

            Com relação à necessidade de glóbulos vermelhos para transportar o oxigênio pelo corpo, vale dizer, que a pessoa dispõe de reservas para esse transporte, portanto caso perca sangue, são acionados mecanismos compensatórios pelo próprio corpo, visto que seu coração bombeia mais sangue em cada batimento. Tal funcionamento pode ser esclarecido[33]:

“Visto que o sangue perdido foi substituído por um líquido adequado, o sangue agora diluído flui mais facilmente, mesmo nos pequenos vasos. Em resultado de mudanças químicas, mais oxigênio é liberado para os tecidos. Estas adaptações são tão eficazes que, se somente a metade de suas hemácias permanecerem, o transporte de oxigênio poderá ser até cerca de 75 por cento do normal. Um paciente em repouso utiliza apenas 25 por cento do oxigênio disponível em seu sangue. E a maioria dos anestésicos reduz a necessidade de oxigênio do corpo.”

            

            Além disso, médicos peritos podem ajudar às pessoas que, pela perda de sangue, possuem menos glóbulos vermelhos, administrando oxigênio em alta concentração, após restaurado o volume do plasma, podendo esses pacientes serem tratados em câmaras de oxigênio.

            A formação de glóbulos vermelhos pode ser aumentada de três a quatro vezes, com concentrados de ferro no músculo ou na veia. Há, ainda um hormônio produzido pelos rins chamado eritropoietina (EPO), que estimula a medula óssea a produzir hemácias, este hormônio já é disponível sinteticamente, que pode ser ministrado aos pacientes anêmicos.

            Outras maneiras de se evitar esse procedimento é a utilização de métodos avançados de conservação do sangue, que podem ser utilizados durante uma cirurgia, a exemplo do bisturi elétrico para amenizar a hemorragia; a aspiração e filtração do sangue que flua em um ferimento o repondo depois em circulação, dessa forma se utilizaria o sangue do próprio paciente.

            Pode-se acrescer, ainda, as seguintes considerações[34]:

 

“E existem outros meios de ajudar. Resfriar um paciente, para reduzir suas necessidades de oxigênio durante a cirurgia. A anestesia hipotensiva. A terapia para melhorar a coagulação sanguínea. A desmopressina (sigla em inglês, DDAVP) para abreviar o tempo de sangramento. Os “bisturis” a laser. (...)”

 

            Não se pode esquecer, porém, que essas técnicas são muito utilizadas em países de primeiro mundo, a exemplo da Inglaterra e Estados Unidos, não acontecendo no Brasil com tanta freqüência, em especial em hospitais públicos que muitas vezes não têm equipamentos avançados tecnologicamente.

            O intuito é mostrar a possibilidade viável de assegurar o direito à vida sem a necessidade da transfusão e a busca de que tais tratamentos sejam disponibilizados pelo Poder Público àqueles que deles necessitem assegurando, assim, o exercício de liberdade religiosa do indivíduo capaz, sobretudo, a gestante com o fito de proteger a vida e saúde do feto..

            Caso o Estado não possa fornecer esses tratamentos, deve o cidadão ter o seu direito ao ressarcimento com eventuais gastos por um atendimento privado, pois é dever do Poder Público oferecer mecanismos de provimento à vida e à saúde e, quando não o faz não poderá se eximir de ser responsabilizado.

Mister se faz salientar a obrigação do Estado em oferecer todos os meios necessários a assegurar a saúde e a vida dos cidadãos, de forma que, não sendo aceito um determinado procedimento, deve-se buscar outro caminho para proporcionar a efetivação dos direitos constitucionais à saúde e vida, pois caso contrário pode-se levar, inclusive, à responsabilização do Estado, a exemplo do que se encontra na decisão a seguir[35]:

“EMENTA:  APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. INADMISSIBILIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECA. DIREITO À SAÚDE. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DEVER DO ESTADO. Inadmissível o reexame necessário quando a condenação imposta à Fazenda Pública não supera o valor de 60 salários mínimos. É o Ministério Público legitimado ativo a postular direitos indisponíveis em juízo, via ação civil pública, sobretudo visando a resguardar o direito à vida de nascituro. A assistência à saúde é dever do Estado, que, na impossibilidade de prestar o devido atendimento a gestante carente, não pode se eximir da eventual responsabilidade pelo ressarcimento das despesas arcadas por estabelecimento hospitalar privado. Reexame necessário não conhecido. Apelo não provido. Unânime.” (grifo nosso)

 

            Dessa maneira é que devem ser disponibilizados tratamentos alternativos por parte do Estado, em especial, ao atendimento do princípio da proteção integral. Assim, estarão sendo assegurados ambos direitos garantidos e tutelados constitucionalmente: vida e liberdade.

            Tal afirmação pode ser assegurada pela determinação do artigo 227, § 1º da Constituição Federal, ao estabelecer que o Estado promova programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitindo-se a participação de entidades não- governamentais e obedecendo a aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno- infantil.

 

3.         A dignidade da pessoa humana como garantia constitucional norteadora na solução do conflito ora proposto

 

Os direitos garantidos constitucionalmente possuem mesmo patamar e não podem ser entendidos de maneira absoluta, devendo, portanto, ser ponderados, a depender do caso concreto, de maneira que essa ponderação se paute pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Este encontra fundamento no Estado de Direito Democrático e Social, sendo um valor absoluto que serve como base a qualquer ingerência a outros direitos fundamentais.

Dessa forma, todos os demais direitos fundamentais encontram limites no princípio da dignidade da pessoa humana, é por isso que o direito à vida, por exemplo, é entendido em sua ampla dimensão: direito à vida e direito à vida digna.

Ocorre a colisão de direitos fundamentais quando em se querendo exercê-los eles se confrontam entre si ou com outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente. É o que ocorre, no caso do presente trabalho, com os pacientes testemunhas de Jeová, quando há colisão entre dois bens jurídicos tutelados constitucionalmente: a vida e a liberdade.

Para solucionar tal conflito, deve-se recorrer à ponderação dos bens envolvidos, a fim de se resolver a colisão, por meio do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Deve-se lembrar que, de acordo com os princípios da Hermenêutica Constitucional, existem critérios para se realizar o juízo de ponderação entre as normas constitucionais.

A solução para resolver a aparente colisão de direitos fundamentais é, diante do caso concreto, buscar critérios para a sua resolução nos princípios informadores da Hermenêutica Constitucional e balizar a ponderação de tais valores na supremacia da dignidade da pessoa humana.   

Há quem entenda que o reconhecimento dessa dignidade é o próprio respeito à liberdade, sendo constituída não meramente pela possibilidade de escolha, mas, sim, pela “consideração da existência dessa liberdade em todos os seres humanos e não o mero desejo de seu exercício”[36].

O ser humano deverá ter a possibilidade de escolher o que deve fazer, confirmando o respeito a sua dignidade. Nesse sentido[37]:

 

“É essa possibilidade que deve ser levada em conta, respeitada, considerada(...)A essência da dignidade do ser humano é o respeito mútuo  a essa possibilidade de escolha.(...)Como a especificidade do ser humano é sua liberdade, a ele inerente consistirá no respeito a essa possibilidade de escolha”.

 

            Seguindo a mesma idéia de dignidade como respeito ao indivíduo, está Chaïm Perelman[38], que, ainda, relaciona esse respeito ao dever do Estado em realizar condições que concretizem esse princípio ou de abster-se de atitudes que o violem. Veja-se:

 

“Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e de fazer que se respeitem as obrigações correlativas, não é só por sua vez obrigado a abster-se de ofender esses direitos, mas tem também a obrigação positiva de manutenção da ordem. Ele tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua soberania.”

 

Pode-se dizer que a dignidade da pessoa é vista em seu âmbito pessoal, ou seja, como o sujeito sendo um fim em si mesmo, ou em relação à coletividade. Nesse sentido, o professor Fernando Ferreira dos Santos[39] entende a idéia das dimensões de individualismo, personalismo e transpersonalismo, defendidas por Reale[40], como dimensões da própria dignidade.

Defende-se que, ainda, que a pessoa humana, “enquanto valor, e o princípio correspondente, de que aqui se trata, é absoluto, e há de prevalecer, sempre, sobre qualquer outro valor ou princípio”[41].

Como se pode depreender do exposto, o conceito de dignidade é algo difícil de se estabelecer, por possuir caráter vago, aparecendo sua noção, quando da aplicação ao caso concreto e, para tanto, utilizar-se-á o jurista de mecanismos de interpretação oferecidos pela própria Hermenêutica Jurídica.

No início do movimento de codificação, em que predominava o Positivismo Jurídico, o papel dos juízes limitava-se à adequação dos fatos à norma, preponderando os métodos clássicos de interpretação: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. É, porém, após o Positivismo “que se percebe a reaproximação entre Direito e Ética, com a valorização dos princípios, sua incorporação pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica da supremacia dos direitos fundamentais e da normatividade[42].”

No caso de ocorrer a colisão de direitos fundamentais só é possível formular uma solução adequada à vista dos elementos do caso concreto. Atualmente, a interpretação envolve juízo discricionário do intérprete, o qual, por sua vez, encontra limites nos princípios informadores da Hermenêutica Constitucional, servindo como parâmetros para ponderação de valores e interesses.

É sabido por todos que os direitos fundamentais contêm um fundamento ético e uma alta carga valorativa. É por isso, que a colisão destes direitos faz parte da lógica do sistema, pois há a crescente variação do contexto social e dessa forma, dos próprios valores pregados socialmente e, além disso, ao serem interpretados casuisticamente necessitam de um juízo incondicionado.

            Com o intuito de oferecer ao intérprete a busca do sentido objetivado pela nossa Constituição ao elencar determinado direito fundamental, diante da colisão de dois ou mais direitos fundamentais no caso concreto, a doutrina enumera princípios específicos para a interpretação constitucional. Entendendo-se “como principais, dentre outros, os princípios da unidade da Constituição, da concordância prática ou harmonização e da proporcionalidade[43].”

            O princípio da unidade da constituição determina a análise do texto constitucional como um todo, como um sistema que necessita "compatibilizar preceitos discrepantes", ficando a cargo do intérprete identificar na Constituição as normas pertinentes ao caso, detectando eventuais conflitos entre elas e não se esquecendo de considerá-las em conjunto para a solução do caso concreto.

            Como  conseqüência lógica do princípio supra citado tem-se a concordância prática ou harmonização, pois os valores e direitos fundamentais devem ser harmonizados, no caso concreto, por meio de juízos de ponderação que vise concretizar ao máximo os direitos constitucionalmente protegidos.

            A proporcionalidade, por sua vez, consiste na “realização do princípio da concordância prática no caso concreto”, ou seja, significa a “distribuição necessária e adequada dos custos de forma a salvaguardar direitos fundamentais e/ou valores constitucionalmente colidentes”[44].

Pode-se dizer que, dessa forma, “o princípio da proporcionalidade caminha junto com o princípio da razoabilidade, formam uma espécie de parceria: significam a ponderação entre os meios empregados e os fins atingidos: é a busca do razoável”[45].

            Quando há colisão de direitos fundamentais, ocorre a incidência de mais de uma norma, princípio ou valor sobre o mesmo conjunto de fatos. Sendo assim, pela unidade da Constituição não pode o intérprete hierarquizar uma norma ou valor constitucional. 

            Faz-se necessário, portanto, que se sintetizem elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos – em que a aplicação de normas de mesma hierarquia indicam soluções diferenciadas – surgindo, assim, a produção de uma regra concreta.

             A técnica da ponderação consiste em apurar a importância relativa que deve ser atribuída a cada elemento em disputa, a fim de se escolher qual deles, prevalecerá ou sofrerá menos constrição, no caso concreto, dessa forma,“quando os princípios entram em colisão, deve-se levar em conta o peso relativo que tem cada um dos princípios considerados para solucionar o conflito[46]. ”

            Vale salientar as seguintes considerações[47]:

 

“No caso de colisão de direitos fundamentais, faz necessária a opção de preferência de um direito sobre o outro oposto, em que se perquire, inicialmente, todos os valores constitucionais envolvidos e, num juízo de ponderação, aplica-se ao caso concreto os princípios constitucionais específicos, especialmente a proporcionalidade e a razoabilidade.”

 

É imprescindível considerar a força do princípio da dignidade humana como valor preponderante, sendo razoável a opção axiológica por um valor, consubstanciado num direito fundamental, que melhor atenda às necessidades da pessoa humana.

            Diz o texto da Constituição, que[48]:

 

“a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.”

 

O princípio da dignidade da pessoa humana denota o direito à integridade moral e ao mínimo ético a todas as pessoas apenas por sua existência no mundo. Ao eleger a dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado de Direito Democrático e Social, o legislador explicita o seu papel fundamental na estrutura constitucional: o de fonte normativa dos demais direitos fundamentais. Sendo assim, os demais direitos e garantias fundamentais, são baseados na dignidade, sendo este princípio que dá unidade e coerência ao conjunto destes.

            Faz-se mister memorar que[49]:

 

“É imprescindível que se reconheça a força normativa do princípio da dignidade humana e, por um raciocínio lógico, a sua carga axiológica como um valor absoluto, o único que possui este atributo. Não é demais frisar que nenhum direito fundamental é absoluto: é tolerada a preponderância de um direito fundamental sobre outro em decorrência da constatação de sua maior chance de dar efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, no caso concreto.”

            

No caso sub examine, por haver a colisão de direitos fundamentais, conclui-se pela prevalência da dignidade da pessoa humana como limite e fundamento do exercício desses direitos. Sendo assim, a pessoa humana plenamente capaz deverá, sendo Testemunha de Jeová, ver seu direito à convicção religiosa, pois assim que se estará respeitando a sua dignidade como pessoa.

Já em caso de paciente menor, deve-se ter a prevalência da vida, no sentido de se dar proteção integral à criança e ao adolescente, que devem ter o direito de escolher, quando capazes, qual religião querem seguir, garantindo-se assim, a sua vida, como primeiro passo para efetivação de uma vida digna.

 

Conclusão

 

            O que se pôde concluir do presente trabalho foi o choque existente, especialmente, entre Direito e Moral, no caso em que os Testemunhas de Jeová impõem um dogma religioso para resistência ao procedimento médico de transfusão sanguínea, mesmo que isso coloque em risco a sua vida ou até mesmo a de seus filhos.

            A colisão entre o direito à vida e à liberdade mostra-se, na situação sob análise, quando a recusa pode levar à morte do paciente. Vale lembrar que a liberdade foi conquista do Estado de Direito Democrático e Social, sendo um requisito da democracia. Nesse sentido, impor ao cidadão determinado procedimento que se contraponha a sua convicção religiosa é retroceder à época em que o Estado decidia os caminhos a serem seguidos pelo particular, não havendo o direito à livre escolha. Admite-se, portanto, a recusa às transfusões sanguíneas por motivos de foro íntimo, quando se trata de indivíduo adulto e capaz.

            Ocorre que o nosso ordenamento jurídico não admite o exercício dos direitos fundamentais de maneira absoluta. No caso de paciente menor, incapaz juridicamente, tal manifestação seria feita por representação dos pais ou responsáveis, a quem não deve ser dado o direito de pôr em risco a vida do menor em razão de convicções pessoais.

            A melhor solução, então, é substituir a decisão do responsável por decisão judicial, relativizando-se, dessa forma, o exercício do poder familiar, para que o Estado efetive, pelo Judiciário, a busca da proteção integral das crianças e dos adolescentes, preconizada com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente. O direito à vida pertence ao filho como ser humano titular deste direito básico e não aos seus responsáveis.

            No concernente à gestante, cuja proteção é abordada também no ECA, seu direito à liberdade deverá prevalecer, em razão de sua faculdade de escolher a qual procedimento irá submeter-se, nos termos da própria lei civil. Sua recusa, no caso, não significa que escolheu a própria morte e a do seu nascituro, apenas está a exercer seu direito à liberdade religiosa, assegurado constitucionalmente.

            Para se buscar conciliar os direitos em choque é que se levanta a questão do dever do Estado em fornecer tratamentos alternativos à transfusão, pois os Testemunhas de Jeová aceitam outros tipos de tratamento, que não a utilização do sangue. Dessa maneira, estar-se-iam assegurando ambas garantias constitucionais. Estar-se-ia ainda, indiretamente, assegurando o direito à saúde, garantido à criança em gestação, o direito à liberdade da gestante.

            Demonstra-se, que, diante da colisão de direitos fundamentais, deve-se levar em conta a dignidade da pessoa humana como substrato necessário para dar sustentação e efetividade ao catálogo desses direitos fundamentais consagrados no ordenamento jurídico, de maneira que se deve optar pela solução que melhor assegure a dignidade da pessoa humana.

            A diretriz a ser seguida deve ser, cada vez mais, a conscientização do indivíduo acerca da dignidade da pessoa humana, pois só então ele será capaz de cobrar do poder estatal a efetivação da defesa da sua dignidade, seja pela proteção à vida dos que ainda não podem optar, seja pelo fornecimento de outros tratamentos alternativos àqueles que já são capazes de optar.

           

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Documento eletrônico: http://www.cfm.org.br/ResolNormat/Numerico/1021_1980.htm

 

 

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Sobre o autor
Marcela Ferreira Chaves

Advogada, especialista em Direito do Estado, atualmente exercendo a função de conciliadora no TJ-BA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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