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A aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade

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10/09/2015 às 11:11
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4 - A IMPORTÂNCIA DA OBRIGATORIEDADE DOS PRECEDENTES DAS CORTES CONSTITUCIONAIS EM PAÍSES QUE ADOTAM O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Nos Estados Unidos, o judicial review, fundado na ideia de Supremacia da Constituição sobre as leis e, precisamente, na tese de que o judiciário tem o poder de controlar a atividade do Legislativo, é entendido no sentido de que todo juiz tem o dever de analisar a compatibilidade da lei com a Constituição.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:

A partir da premissa de que o juiz, para decidir os casos conflitivos, deve analisar a relação da lei com a constituição, entendeu-se que o juiz americano poderia realizar, incidentalmente, o controle da constitucionalidade. Assim, o poder de afirmação de constitucionalidade e de inconstitucionalidade da lei, nos Estados Unidos, sempre esteve nas mãos do juiz do caso concreto.” (MARINONI, 2013)

Ou seja, a ideia de que qualquer juiz pode fazer a compatibilidade da norma com a constituição e declarar a sua inconstitucionalidade, nasceu nos Estados Unidos e deu origem ao controle difuso, conforme estudamos em tópicos anteriores.

Exatamente por essa característica do controle difuso e pela realidade inafastável de que a lei pode ser interpretada de diversos modos, não há outra alternativa para se preservar a igualdade perante a lei e a segurança jurídica, senão atribuindo a obrigatoriedade de observância dos precedentes judiciais das Cortes Supremas.

Fredie Didier Jr nos ensina que “precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”. (DIDIER JR, 2008)

Nos Estados Unidos, como país da common law, os precedentes judiciais são observados segundo a teoria do Stare decisis, cuja expressão completa refere-se ao brocardo latino Stare decisis et non quieta movere ("mantenha-se a decisão e não ofenda o que foi decidido").

Juridicamente, o emprego da expressão denota que os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais inferiores dentro de uma mesma jurisdição. (TEODORO, 2013)Marinoni, citando Cappelletti, quando trata da importância do respeito dos precedentes judiciais das Cortes Constitucionais, adverte:

“É intuitivo que, num sistema que ignora o precedente obrigatório, não há racionalidade em dar a todo e qualquer juiz o poder de controlar a constitucionalidade da lei. Como bem adverte Cappelletti, a introdução no civil law do método americano de controle de constitucionalidade conduziria à consequência de que uma lei poderia não ser aplicada por alguns juízes e tribunais que a entendessem inconstitucional, mas, no mesmo instante e época, ser aplicada por outros juízes e tribunais que a julgassem constitucional. Ademais – diz o professor italiano –, nada impediria que o juiz que aplicasse determinada lei não a considerasse no dia seguinte ou vice-versa, ou, ainda, que se formassem verdadeiras facções jurisprudenciais nos diferentes graus de jurisdição, simplesmente por uma visão distinta dos órgãos jurisdicionais inferiores, em geral compostos de juízes mais jovens e, assim, mais propensos a ver uma lei como inconstitucional, exatamente como aconteceu na Itália no período entre 1948 e 1956. Demonstra Cappelletti que, desta situação, poderia advir uma grave situação de incerteza jurídica e de conflito entre órgãos do Judiciário”. (MARINONI, 2013)

Fica claro, com a citação de Marinoni, que não haveria sentido que, num sistema fundado no direito à igualdade das decisões, na segurança jurídica e, principalmente, na Supremacia da Constituição e da Corte Constitucional, os precedentes constitucionais não fossem respeitados.

Ainda de acordo com Marinoni, não há como esquecer a falta de racionalidade em obrigar alguém a propor uma ação para se livrar dos efeitos de uma lei que em inúmeras vezes já foi afirmada inconstitucional pelo Judiciário.

Para Marcelo Novelino, “[...] o controle difuso seria inadequado para o Brasil por ser um modelo próprio de países do sistema da common law.” E continua, “nos Estados Unidos, onde surgiu esta espécie de controle de constitucionalidade (controle difuso), atribui-se o devido peso aos precedentes dos tribunais superiores (stare decisis), considerados vinculantes para os tribunais inferiores (binding effect). Diferente, portando, do que ocorre no Brasil, onde as decisões proferidas no controle difuso, em tese, têm apenas efeitos inter partes e não vinculam juízes e tribunais inferiores.” (NOVELINO, 2013)

Esse entendimento segue o mesmo caminho do entendimento trilhado por Mauro Cappelletti, quando trata do controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Segundo este autor:

[...] o manifesto insucesso da adoção do controle difuso nos países de tradição romanística (civil law) e as graves consequências resultantes de “conflito e de incerteza foram evitados nos Estados Unidos da América, como também nos outros Países de common law, em que vige o sistema de controle judicial ‘difuso’ de constitucionalidade. Ali vale de fato [...] o fundamental princípio do stare decisis”, por força do qual a decisão proferida pelas cortes superiores de cada jurisdição são vinculantes para as cortes inferiores da mesma jurisdição. “O resultado final do princípio do vínculo aos precedentes é que, embora também nas Cortes (estaduais e federais) norte-americanas possam surgir divergências quanto à constitucionalidade de uma determinada lei, através do sistema das impugnações a questão de constitucionalidade poderá acabar, porém, por ser decidida pelos órgãos judiciários superiores e, em particular, pela Supreme Court, cuja decisão será, daquele momento em diante, vinculatória para todos os órgãos judiciários. Em outras palavras, o princípio do stare decisis opera de modo tal que o julgamento de inconstitucionalidade da lei acaba, indiretamente, por assumir uma verdadeira eficácia erga omnes e não se limita então a trazer consigo o puro e simples efeito da não aplicação da lei a um caso concreto com possibilidade, no entanto, de que em outros casos a lei seja, ao invés, de novo aplicada. Uma vez não aplicada pela Supreme Court por inconstitucionalidade, uma lei americana, embora permanecendo on thebooks, é tornada a dead Law, uma lei morta” (CAPPELLETTI, 1984)

Noutras palavras, os países que adotam o controle de constitucionalidade difuso, importado dos Estados Unidos - como o Brasil -, não podem deixar de respeitar os precedentes da respectiva Corte Constitucional, sob pena de se admitir decisões contrastantes, estimular a litigiosidade e incentivar a propositura de ações sem fundamento em constitucionalidade. Não faz sentido países com raízes romanísticas adotar o modelo americano de constitucionalidade das normas sem atribuir o devido valor vinculativo dos precedentes da Corte Mor em matéria constitucional.

A saída racional para os países de tradição romanística, em que não se adota o Stare decisis, é a adoção de um único sistema de controle de constitucionalidade, qual seja, o concentrado, onde as decisões já são dotadas de eficácia erga omines. (MORINONI, 2013)

Insistir um modelo de controle de constitucionalidade híbrido, como o adotado pelo Brasil, e não dotar o sistema modelo de um instrumento eficaz de atribuição de efeitos gerais em sede de controle concentrado fragilizará o ordenamento jurídico do país, por conta dos motivos expostos acima. Porém, persistindo nesse modelo, torna-se inevitável dotar o sistema de precedentes de natureza constitucionais obrigatórios para que tenham efeitos vinculantes e, indiretamente, também eficácia erga omines. Nesse sentido, Marinoni em nota de rodapé:

Segundo Cappelletti, o stare decisis acaba conferindo à decisão de inconstitucionalidade da lei, ainda que indiretamente, eficácia erga omnes. Fala-se, neste sentido, numa verdadeira transformação da decisão que seria simples cognitio incidentalis de inconstitucionalidade com eficácia restrita ao caso concreto em pronunciamento dotado de eficácia erga omnes (CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario di costituzionalità delle leggi nel diritto comparato, cit., p. 64). Embora a afirmação de Cappelletti deva ser vista com reservas, pois há diferença entre eficácia erga omnes e eficácia vinculante, é ela digna de nota por significar a necessidade de vincular os juízes às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle difuso.” (MARINONI, 2013) (grifo nosso, itálico no original)

Portanto, consoante Marinoni, embora a obrigatoriedade dos precedentes vincule somente os órgãos do judiciário, indiretamente, se estará – também - atribuindo efeitos gerais, eis que, num caso concreto, o jurisdicionado também estaria limitado à vinculação do juiz ao precedente da Corte Constitucional. Ou seja, determinada lei não seria aplicada ao jurisdicionado, uma vez que já fora, noutra ocasião, declarada inconstitucional pela Suprema Corte. Nas palavras de CAPPELLETTI, o dispositivo normativo declarado inconstitucional pela Corte Constitucional, “embora permanecendo on thebooks, é tornada a dead Law, uma lei morta.”

No caso do Brasil, o sistema de súmulas vinculantes já prevê a obrigatoriedade de vinculação dos demais órgãos do poder judiciário ao entendimento obtido de reiteradas decisões em matéria constitucional, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal, que fora inserido pela Emenda Constitucional (EC) n. 45, chamada de emenda da reforma do judiciário:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (grifo nosso)

Como se observa, a criação desse sistema é claramente uma tentativa de atribuir caráter obrigatório às decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional. Porém, esse sistema não é satisfatório quando se trata de controle difuso de constitucionalidade, uma vez que um dos requisitos da súmula vinculante é a reiteração de matéria constitucional e, sabe-se que uma decisão no controle concreto não necessita ser reiterada para ser conhecida pelo STF. A Suprema Corte nos Estados Unidos, país da common law, em matéria constitucional não precisa reiterar suas decisões para serem observadas pelos órgãos do judiciário de hierarquia inferior.

Nesse sentido, o próprio STF, por meio do voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 376.852/SC, afirma textualmente que a atribuição do efeito vinculante à decisão tomada em controle difuso é dominante, há muito, também no direito americano.

Nas palavras de Rafael Teodoro sobre o Stare decisis dos Estados Unidos:

Dessa maneira, o stare decisis afirma-se, no controle de constitucionalidade estadunidense, como meio destinado a garantir a segurança jurídica do sistema normativo ao forçar a coerência entre o pensamento dos juízes e dos tribunais (com destaque especial para a Corte Suprema). Acorde com essa teoria é conveniente evitar decisões conflitantes diante de casos análogos, de modo que a atividade judicial, em princípio, fica subordinada à ratio decidendi (tese jurídica) consubstanciada no núcleo do precedente vinculante. (TEODORO, 2013)

Portanto, quando se imagina um precedente com eficácia vinculante (stare decisis), surge naturalmente a curiosidade de se saber o que realmente vincula, assim como quem tem autoridade para identificar a porção do precedente hábil a produzir efeito vinculante, ou seja, a identificação da ratio decidendi da decisão. Essa identificação é fundamental quando o precedente não é claro ou há dificuldade em identificar qual a tese que efetivamente foi determinante para a solução do conflito constitucional. (MARINONI, 2013)

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Note-se que os fundamentos determinantes, ou simplesmente a ratio decidendi de um precedente nem sempre é obtida de forma imediata ou é de fácil extração. Daí, a importância de se destacar a obtar dicta da ratio decidendi na fundamentação, a fim de se extrair os contornos do precedente e os limites da sua vinculação. 

4.1 - A Ratio decidendi e obter dicta

Numa sentença, cumpre chamar a atenção para dois pontos sensíveis quanto ao conteúdo da fundamentação, quais sejam: a ratio decindendi e o obta ditum; ou dicta no plural.

O significado da obediência de um precedente judicial é encontrado na sua fundamentação, ou seja, nas razões que levaram ao magistrado a decidir de certa maneira ou os fundamentos que culminaram na fixação da parte dispositiva da sentença.

Como óbvio, para se compreender a fundamentação pode ser exigida menor ou maior atenção ao relatório e ao dispositivo. Esses últimos não podem ser ignorados quando se procura o significado de um precedente. O que se quer evidenciar, contudo, é que o significado de um precedente está, essencialmente, na sua fundamentação, e que, por isso, não basta somente olhar à sua parte dispositiva, deve-se identificar os motivos determinantes daquela decisão, a chamada Ratio decidendi. (MARINONI, 2013)

Uma decisão tem sua razão de decidir extraída da norma atribuída ao caso concreto, de tal modo que a ratio decidendi seja obtida na fundamentação, mas com esta não se confunde.

Como vimos no tópico 1.3.1.2, a fundamentação poderá abordar várias teses levantadas pelas partes no caso concreto, bem como poderá valorar essas teses dando mais importância a uma em detrimento de outra. Contudo, a decisão não abordará apenas as teses relevantes, mas terá, também – em seu conteúdo -, abordagens irrelevantes, periféricas, para a decisão da causa, mas de certa importância para a elucidação das teses em que se fundará os motivos determinantes daquela decisão.

Portanto, os motivos verdadeiramente relevantes de uma decisão constituem Ratio decidendi ou, em expressão mais comum, razão da decisão; enquanto que as abordagens periféricas, irrelevantes para o deslinde da causa, aquelas expressões ditas de passagem, constituem o que se costuma chamar de obter ditum; ou dicta no plural.

Não obstante, parte da doutrina entende que a ratio decidendi não decorre somente da parte dos fundamentos da decisão, mas sim de todo o conjunto decisório da sentença, de onde se extrai os fundamentos que realmente foram essenciais e cruciais para a resolução da lide. Nesse sentido, Luiz Gulherme Marinoni:

É preciso sublinhar que a ratio decidendi não tem correspondente no processo civil adotado no Brasil, pois não se confunde com a fundamentação e com o dispositivo. A ratio decidendi, no common law, é extraída ou elaborada a partir dos elementos da decisão, isto é, da fundamentação, do dispositivo e do relatório. Assim, quando relacionada aos chamados “requisitos da sentença”, ela certamente é “algo mais”. E isso simplesmente porque, na decisão do common law, não se tem em foco somente a segurança jurídica das partes – e, assim, não importa apenas a coisa julgada material –, mas também a segurança dos jurisdicionados, em sua globalidade. Se o dispositivo é acobertado pela coisa julgada, que dá segurança à parte, é a ratio decidendi que, com o sistema do stare decisis, tem força obrigatória, vinculando a magistratura e conferindo segurança aos jurisdicionados. (MARINONI, 2013)

Explica o autor que a razão de se conferir obrigatoriedade aos precedentes, por meio da ratio decidendi, não tem haver com a coisa julgada material, pois não se tem foco somente na segurança jurídica das partes envolvidas na demanda, mas sim na segurança jurídica dos jurisdicionado como um todo. Ou seja, a Ratio decidendi não vai ser extraída somente da fundamentação da decisão, mas de todo o conjunto dos elementos essenciais da sentença, quais sejam: relatório, fundamentação e dispositivo.

Em que pese os argumentos do referido autor, filiamo-nos aos que entendem estar a Ratio decidendi na parte da fundamentação da sentença, cuja divisão se dá, como visto acima, em dois pontos distintos: a Ratio decindendi e obter dictum. Nesse entendimento estar Fredie Didier Jr, que citando José Rogério Cruz e Tucci, estabelece que:

No conteúdo da fundamentação, é preciso distinguir o que é ratio decidendi e o que é o obter dictum. A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão [...] a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi [...] trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto. A ratio decidendi [...] constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law).” [...] “para a correta inferência da ratio decidendi, proõe-se uma operação mental, mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; caso contrário a resposta será positiva.” (DIDIER, 2006) (grifo nosso)

Como bem explanado pelo citado autor, as razões da decisão são extraídas da fundamentação, por meio de um exercício mental, onde é descartado a obter dicta, ou seja, as partes irrelevantes da sentença, e destacado a ratio decidendi ou as razões da decisão.Noutra esteira, “não há como esquecer que a busca da definição de razões de decidir ou de ratio decidendi parte da necessidade de se evidenciar a porção do precedente que tem efeito vinculante, obrigando os juízes a respeitá-lo nos julgamentos posteriores. No common law, há acordo em que a única parte do precedente que possui tal efeito é a ratio decidendi.” (MARINONI, 2013)

Claro que, migrando a experiência dos precedentes nas cortes americanas à realidade do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade difuso, há que se trabalhar mais as razões de fundamento do voto de cada Ministro no Supremo Tribunal Federal, de modo que, havendo consenso quanto aos motivos que levaram àquela decisão, se extraia do acórdão proferido a ratio decidendi, os fundamentos determinantes da decisão.

Essa tendência de se aproximar os efeitos do controle difuso de constitucionalidade aos efeitos do controle concentrado, a doutrina costuma chamar de abstrativaçao. Parte da doutrina defende que atribuir efeitos abstratos e gerais à decisão em controle difuso de constitucionalidade se estará aproximando mais ainda o concreto do concentrado, eis que se está dando os mesmos efeitos abstratos do controle concentrado ao controle difuso. Nesse sentido:

A [...] abstrativização do controle concreto de constitucionalidade surge no âmbito judicial quando o efeito vinculante e geral é conferido pelo STF em algumas decisões proferidas no controle difuso, trazendo uma discussão em face o papel/função do Senado Federal. O que ocorre é que ao longo dos anos, não vem sendo respeitado o que está expressamente no texto constitucional, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, qual seja, a exemplo dos sistemas de pesos e contra pesos que vigora na constituição ou a separação dos poderes, que acaba tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral. [...] o fenômeno da abstrativização tanto no controle concreto, como no controle difuso que ocorre com as decisões enfrentadas em ambos os controles, que é visada diante de omissões legislativas. O STF tem ostentando um moderno protagonismo no cenário jurídico brasileiro. (FERREIRA, 2012)

Como se vê, a abstrativação já é uma tendência no judiciário brasileiro, o que contribuirá para a otimização da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade.

4.2 - A aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes e sua aplicação no âmbito do STF

A teoria da transcendência dos motivos determinantes teve origem no direito alemão, sob o entendimento de que o efeito vinculante de uma decisão do Tribunal Constitucional daquele país não se limitava à parte dispositiva da sentença, mas se estendiam, também, ao fundamento determinante do caso concreto.

Nas palavras de Ricardo Muciato Martins:

A teoria da transcendência dos motivos determinantes [...] tem sua origem no direito germânico, por entender o Tribunal Constitucional alemão que o efeito vinculante não pode ser restringido à parte dispositiva de suas decisões, devendo, ao contrário, se estender aos motivos que se mostraram determinantes, ou fundamentais, para se chegar a tal entendimento. A relevância da teoria da transcendência é ampliar o efeito vinculante, fazendo-o alcançar matérias fronteiriças ao verdadeiro objeto da ação, mas que estão umbilicalmente ligadas a este, e que se tornaram também foco da decisão, sendo exaustivamente discutidas e sobre as quais a Corte firmou entendimento. (MARTINS, 2011)

Ou seja, a teoria da transcendência dos motivos determinantes do direito germânico constitui verdadeira Ratio decindend utilizada nas decisões da Suprema Corte americana. Os dois institutos são semelhantes e têm o mesmo objetivo, o de tornar vinculante as razões que justificaram a decisão.

A grande questão da aplicação da teoria dos motivos determinantes é fixar as razões que, de fato, foram cruciais para a decisão. Para tanto, busca-se identificar na fundamentação da decisão a ratio decindend e afastar a obter dictum para que, a partir daí, se extraia os limites do precedente que terá eficácia vinculante.

A teoria da transcendência dos motivos determinantes ganhou amplitude no Brasil por obra do Ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da Reclamação 2126/SP. Nesse sentido, veja-se o entendimento de José Ribas Vieira e Deilton Ribeiro Brasil, em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa em 2008:

Como a Constituição Federal coloca em seu vértice maior o Supremo Tribunal Federal, ao poder de criação do direito deve ser reconhecida maior autoridade e, portanto, o poder de vincular os Tribunais inferiores, conforme entendimento defendido no voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes na RCL 2126/SP (BRASIL, 2002) em que se consagrou que a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os Tribunais e autoridades nos casos futuros.

Assim, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes ao tempo em que foi proferido, era possível concluir que a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal deviam ser respeitadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Contudo, essa aplicação se dava somente no controle abstrato de normas, como se infere das palavras do Ministro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar na Reclamação 2126/SP, “[...] discute-se, especificamente, acerca das implicações processuais do efeito vinculante oriundo da decisão de mérito em ação direta de inconstitucionalidade”. (MENDES, 2002)

O entendimento sobre a possibilidade de aplicação da teoria dos motivos determinantes, nas decisões do STF, referia-se tão-somente ao controle concentrado de constitucionalidade.

Esse entendimento, contudo, não logrou êxito por muito tempo, sendo afastada a sua aplicação no âmbito Tribunal Constitucional com a mudança de composição dos Ministros daquela corte. A rejeição da possibilidade de aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes pelo STF pôde ser observada em algumas decisões posteriores, como se observa do Voto da Ministra Carmen Lucia, na Reclamação 11.479/CE:

[...] Na espécie vertente, o que pretende o Agravante é valer-se desse instituto para exigir respeito aos fundamentos determinantes aproveitados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 3.715/TO, 1.779/PE e 849/MT, que não teriam sido observados pela autoridade reclamada. No entanto, a aplicação da teoria dos motivos determinantes foi rejeitada por este Supremo Tribunal, sendo exemplo disso: Rcl 5.703- AgR/SP, de minha relatoria, DJe 16.9.2009; Rcl 5.389-AgR/PA, de minha relatoria, DJe 19.12.2007; Rcl 9.778-AgR/RJ, Rel Min. Ricardo Lewandowski, DJe 10.11.2011; Rcl 9.294-AgR/RN, Rel. Min. Dias Toffolli, Plenário, DJe 3.11.2011; Rcl 6.319-AgR/SC, Rel. Min. Eros Grau, DJe 6.8.2010; Rcl 3.014/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 21.5.2010; Rcl 2.475- AgR/MG, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, DJe 31.1.2008; Rcl 4.448-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 8.8.2008; Rcl 2.990-AgR/RN, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.9.2007; Rcl 5.365- MC/SC, Rel. Min. Ayres Britto, decisão monocrática, DJ 15.8.2007; Rcl 5.087-MC/SE, Rel. Min. Ayres Britto, decisão monocrática, DJ 18.5.2007. (grifo nosso)

Como se infere do Voto da Ministra, o STF rejeitou a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes em sede de controle concentrado de normas, citando vários julgados que reafirmam essa rejeição.

Em suma, o Supremo Tribunal Federal já chegou a aceitar a teoria da transcendência dos motivos determinantes na manifestação de Voto de alguns ministros em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mas atualmente, a posição pacífica da Corte é pela sua rejeição.

Contudo, em controle difuso de constitucionalidade, a possibilidade de aplicação dessa teoria não foi rejeitada, eis que a inércia do Senado Federal, para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, contribui para o aprufundamento das discussões sobre os mecanismos que possam emprestar efeitos vinculantes a essas decisões, como o Stare decisis americano. E um desses instrumentos que possibilita expandir os efeitos de uma decisão em controle difuso é justamente a teoria da transcendência dos motivos determinantes.

Transcender os motivos determinantes, nada mais é do que dotar de eficácia geral os fundamentos da decisão. Essa dificuldade de expandir os efeitos de uma sentença é agravada no controle difuso porque o Brasil adota a teoria restritiva, onde os limites de uma decisão estão na parte dispositiva da sentença, onde se faz a coisa julgada e estão restritos às partes litigantes. Por isso, a importância da adoção da teoria da transcendência dos motivos determinantes.

Para emprestar eficácia erga omines aos fundamentos da sentença, terá que se chegar aos motivos determinantes da decisão. Para tanto, será necessário um trabalho mental intuitivo, onde se afastaria a obter dictum, as expressões irrelevantes ditas de passagem, e se extrairia daquela fundamentação a Ratio decindendi, que constitue exatamente os motivos determinantes da decisão prolatada.

Até recentemente, havia expectativa quanto à possibilidade da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes em sede de controle difuso de constitucionalidade. O julgamento da Reclamação 4335/AC acendeu as discussões sobre a possibilidade dos efeitos de uma decisão do STF em controle concreto não se limitar ao dispositivo da sentença, mas expandir-se à fundamentação da decisão, questionando-se, então, papel do Senado Federal para suspender a execução de norma declarada inconstitucional.

4.2.1 - Reclamação 4335/AC

A Reclamação 4335/AC questiona os efeitos da declaração do STF sobre progressão de regime de condenado por crime hediondo.

A Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), no parágrafo 1º do artigo 2º, vedava a progressão de regime para condenados por crimes nela previstos.

Porem, o STF, em fevereiro de 2006, reconheceu a possibilidade de progressão de regime de condenados por crimes hediondos no julgamento do Habeas Corpus 82959 (controle difuso), declarando, por seis votos contra cinco, a inconstitucionalidade o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que proibia tal progressão.

Ocorre que essa declaração de inconstitucionalidade se deu em controle concreto, onde a norma foi afastada na fundamentação da sentença do Habeas Corpus, não surtindo nenhum efeito extra parte além daqueles decorrentes do dispositivo da decisão, obrigando somente os envolvidas na própria demanda.

O Senado Federal, oficiado a respeito dessa declaração, permaneceu inerte, não suspendendo a execução do dispositivo declarado inconstitucional, conforme competência constitucional.

Nesse contexto, alguns condenados por crimes hediondos no Município de Rio Branco no Acre, assistidos pela Defensoria Pública da União (DPU) e pautados nessa decisão de inconstitucionalidade do Supremo, peticionaram ao juiz das execuções penais daquela Comarca que lhes negou a progressão de regime sob o seguinte argumento:

[...]conquanto o Plenário do Supremo Tribunal, em maioria apertada ,(...) tenha declarado incidenter tantum a inconstitucionalidade do (6 votos x 5 votos) art. 2o, § 1o da Lei 8.072/90 , por via do Habeas Corpus n. 82.959, isto após dezesseis anos (Crimes Hediondos) dizendo que a norma era constitucional, perfilho-me a melhor doutrina constitucional pátria que entende que no controle difuso de constitucionalidade a decisão produz efeitos inter partes.[...]( Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco)

Ou seja, o Juiz aplicou ao caso concreto o dispositivo que já havia sido declarado inconstitucional pelo STF, causando, com isso, insegurança jurídica e desrespeitando um entendimento da Corte Máxima em matéria constitucional e que recebeu a incumbência de Guardião da Constituição.

Inconformada com a decisão negativa, a DPU apresentou em 2006 Reclamação direto no STF, que foi distribuída sob o n. 4.335/AC, pautada na alegação de que a decisão do magistrado havia desrespeitado o entendimento firmado pela Corte Constitucional de que, independente do crime praticado, a possibilidade de progressão de regime decorrente da individualização da pena era um direto amparado pela própria Carta da República, entendimento que cominou na declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei de Crimes Hediondos.

O cerne dessa Reclamação estava na discussão sobre o seu cabimento ou não no Supremo, eis que a decisão paradigmática (HC 82959) se deu em controle difuso de constitucionalidade, não se podendo falar em desrespeito da decisão do STF até que o Senado Federal cumprisse o seu papel de suspender a execução da norma declarada inconstitucional, já que os efeitos, nesse controle, são inter partes.

Ocorre que a referida Reclamação foi distribuída ao Ministro Gilmar Mendes, maior defensor da mudança do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade. Mendes, em seu Voto, defende uma mutação constitucional, da interpretação do inciso X, art. 52 da Constituição Federal, para que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso já gozem de eficácia erga omines e o Senado apenas atribua publicidade àquela decisão.

Havendo, de fato, a mutação constitucional proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, deixaria de ter relevância a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, já que seria refutada pelos efeitos gerais que decorreriam da decisão no controle difuso de constitucionalidade. Isto é, os fundamentos da decisão que, no caso, seria a inconstitucionalidade da norma, já teriam efeitos transcendentes para alcançar a parte da fundamentação, não se restringindo à parte dispositiva da decisão.

Portanto, se o Supremo conhecesse da Reclamação, estaria adotando a teoria do Ministro Gilmar Mendes sobre a mutação constitucional. Porem, se a rejeitasse, descartaria a proposta do Ministro Relator e se concedia habeas corpus de ofício, conforme propôs alguns Ministros. (Px. Ricardo Lewandowski)

Não obstante, durante o decurso processual da Reclamação, o Supremo Tribunal, em 2009, editou a Súmula Vinculante 26, nos seguintes termos:

STF Súmula Vinculante nº 26 - PSV 30 - DJe nº 35/2010 - Tribunal Pleno de 16/12/2009 - DJe nº 238, p. 1, em 23/12/2009 - DOU de 23/12/2009, p. 1Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico.

Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

Isso significa que a Reclamação agora poderia ser conhecida, pois o desrespeito à Súmula Vinculante enseja a possibilidade de apresentação de Reclamação, o que acabou acontecendo no julgamento da referida Reclamação em julgado deste ano de 2014.Assim, restou prejudicada a análise apurada do papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade, ficando o inciso X, art. 52 da Constituição Federal intacto quanto à sua interpretação.

Com o não reconhecimento da mutação constitucional proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, em sede de controle difuso de constitucionalidade no STF, ganha reforço, eis continuamos com a incongruência jurídica de uma mesma norma ser declarada inconstitucional para uma pessoa e constitucional para outra. Tal incongruência gera insegurança jurídica, desrespeito à autoridade do Supremo e flexibiliza a Supremacia da Constituição.

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Sobre o autor
Rafael da Silva Pantoja

Graduação em Direito pela Escola Superior Batista do Amazonas (ESBAM-2014) Atualmente, Servidor Público Federal - Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE/AM). Chefe de Cartório Eleitoral (Portaria TREAM 585/2015 - 44ª Zona Eleitoral - Pauini/Am) Trabalhou na Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM). Advogado (OAB/AM 10272). Foi servidor concursado do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PANTOJA, Rafael Silva. A aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4453, 10 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42194. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho de conclusão de curso como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel. Escola Superior Batista do Amazonas. Curso de graduação em Direito. Trabalho sob orientação da profª. Ma. Natasha Lazzaretti

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