3. A TERCEIRA FASE DO DIREITO PROCESSUAL
A fase instrumentalista do processo é a que vivenciamos atualmente, e possui representantes como Mauro Cappelletti, José Carlos Barbosa Moreira, Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover e Rosemiro Pereira Leal. Surgiu, dentre outros fatores, da universalização dos direitos humanos. Com a variedade de novos direitos, principalmente os de quarta e quinta geração, o número de demandas aumentou, meio que “sufocando” o Judiciário. Foi então que se percebeu que o apego ao formalismo da segunda fase não permitia o efetivo exercício de tais direitos, e era necessário inovar, tornar o processo mais crítico, célere, seguro. Inicia-se então a fase instrumentalista, marcada com a obra “A Instrumentalidade do Processo”, de Cândido Rangel Dinamarco[9]. Sobre o assunto, cita o autor:
Insistir na autonomia do direito processual constitui, hoje, como que preocupar-se o físico com a demonstração da divisibilidade do átomo. (...) O que conceitualmente sabemos dos institutos fundamentais deste ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema jurídico-processual apto a conduzir aos resultados práticos desejados.
Uma das principais características do instrumentalismo processual é a procura da efetividade da tutela jurisdicional e da produção de uma ordem jurídica justa. Aqui, os horizontes do processo de ampliam, indo bem além do aspecto formal. A técnica processual se interessa em solucionar de maneira adequada os grandes problemas sociais, políticos e jurídicos da sociedade. Segundo Dinamarco, no aspecto social seria necessário conscientizar as pessoas de seus direitos e deveres, além de pacificar as tensões de maneira mais justa possível; no aspecto político seria necessário, por um lado, valorizar mais a liberdade e a participação do cidadão, proporcionando dignidade e limitando o poder do Estado, mas, por outro lado, não esquecer da capacidade de decisões imperativas por parte deste último, necessárias para sustentar o ordenamento jurídico; no aspecto jurídico, seria necessário adequar o processo aos novos anseios sociais, que, como já foi dito anteriormente, têm crescido com as novas gerações de direitos humanos.
Dessa maneira, o professor Dinamarco ensina que o instrumentalismo tem duas facetas, uma positiva e uma negativa. A faceta negativa se traduz em conter os exageros para evitar um isolamento do processo frente ao material, combatendo as influências fortemente autônomas da segunda fase. A faceta positiva, por sua vez, é representada pela nova função do processo de resolver os conflitos sociais, políticos e jurídicos, dando efetividade ao cumprimento dos objetivos traçados. O processo, portanto, deve estar mais próximo do cidadão, buscando sempre avanços para atender aos anseios sociais. O principal exemplo disto é a criação do princípio de acesso à justiça por Mauro Capelleti.
O acesso à justiça é um importante instrumento na busca pela efetivação dos direitos fundamentais, buscando sempre trazer reformas processuais que tornem a jurisdição mais efetiva. São exemplos de reformas no Processo Civil: a antecipação da tutela (art. 273); a tutela inibitória (art. 461 e 84 do CDC); a execução específica das obrigações de fazer e de não fazer; a simplificação do processo de execução; a audiência prévia de conciliação e saneamento; as alterações na sistemática recursal (Leis 9.139/96 e 9.756/98); e ainda, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990); a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24 de julho de 1985); as leis dos Juizados Especiais Estaduais e Federais (Leis 9.099, de 26 de setembro de 1995 e 10.259, de 12 de julho de 2001). Capelletti tem razão quando ensina que “o acesso [à justiça] não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística; seu estado pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica”[10].
Havia, há alguns anos, alguns obstáculos que precisavam ser superados para que o acesso à justiça fosse exercido com maior efetividade. O principal deles era em relação às custas processuais. Isso porque, primeiramente, os honorários advocatícios são altos, o que distancia grande parcela da população desses espaço de litígio, principalmente em pequenas causas, onde o custo dificilmente será maior que o “lucro”. Além disso, como o processo se “arrasta” por anos, os custos aumentam, e a tendência é que a parte economicamente mais fraca abandone o litígio ou aceite um acordo injusto, em que recebe um valor bem abaixo daquele que tem direito. Dessa forma, era perceptível que o maior prejudicado era o pobre e em pequenas causas.
Atualmente, várias mudanças têm colaborado para melhorar o sistema de assistências judiciárias. Dentre eles, merecem destaque os juizados especiais para a apreciação de pequenas causas, cuja implementação visa um modelo de prestação jurisdicional mais adequado à realidade social. Para haver justiça com equidade, é necessário dar as mesmas oportunidades a todos, igualando as desigualdades. Os juizados especiais beneficiam principalmente as pessoas de baixa renda, descomplicando as formalidades processuais, reduzindo as custas judiciais e promovendo igualdade. Cappelletti, sobre isso, afirma:
Nosso Direito é frequentemente complicado e, se não em todas, pelo menos na maior parte das áreas, ainda permanecerá assim. Precisamos reconhecer, porém, que ainda subsistem amplos setores nos quais a simplificação é tanto desejável quanto possível. Se a lei é mais compreensível, ela se torna mais acessível às pessoas comuns. No contexto do movimento de acesso à justiça, a simplificação também diz respeito à tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam as exigências para a utilização de determinado remédio jurídico.[11]
E, ainda, Marinoni:
[acesso à justiça] quer dizer acesso a um processo justo, a garantia de acesso a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial.[12]
Portanto, é perceptível que os juizados especiais tornam o processo mais próximo da realidade social, principalmente porque, ao se utilizar bastante do princípio da oralidade, se torna mais claro para aqueles que não compreendem as formalidades e a linguagem rebuscada do Direito.
Uma mudança que também colaborou bastante para um acesso à justiça mais efetivo foi a criação das Defensorias Públicas, cuja função prevista pela Constituição em seus artigos 5º, LXXIV e 134 é proteger aqueles que não têm condições econômicas, prestando assistência jurídica em todas as áreas do Direito, processual ou extraprocessualmente, aos que comprovarem insuficiência de recursos. É claro que a Defensoria Pública ainda enfrenta muitas dificuldades, principalmente no tocante à autonomia, estrutura, recursos e quantidade de defensores, mas é um avanço nos termos do acesso à justiça, ajudando a cumprir mais efetivamente a função constitucional de garantir aos mais necessitados a justiça da qual são privados.
Outro ponto importante a ser tratado na fase instrumentalista é quanto ao embate celeridade X segurança jurídica. Nesta fase, o processo é visto não mais como completamente autônomo, mas sim como instrumento de efetivação dos direitos oriundos do ordenamento jurídico. Quanto à celeridade, esta foi impulsionada pelo princípio do Devido Processo Legal, pois há muitos fatores que contribuem para a morosidade processual (excesso de leis, sistema formal com excessivos atos e recursos, abarrotamento do Judiciário, poucos juízes para muitos casos, etc). Era necessário, portanto, agilizar o processo para garantir o efetivo exercício jurisdicional. Mas, a brevidade não pode colocar em risco princípios basilares da segurança jurídica, como o contraditório e a ampla defesa. Dessa maneira, somente quando segurança e celeridade estiverem conciliadas, haverá a verdadeira efetividade processual.
Assim, a prestação jurisdicional deve ser mais célere, mas sem sacrificar a segurança, pois é de extrema importância preservar os princípios basilares do Estado Democrático de Direito. E por outro lado, o foco somente na segurança jurídica pode acabar engessando o processo ao ponto de haver perdas de direitos. Esses dois princípios nem podem colidir, nem podem se sobrepor um ao outro; precisam, pelo contrário, se complementar, e o limite de cada um deve ser respeitado. É necessário cautela para que em todos os atos do procedimento haja celeridade, mas caso seja constatado que a segurança jurídica está sendo colocada em segundo plano, haverá a necessidade de “desacelerar” o processo. Resume o professor José Carlos Barbosa Moreira[13], “se uma Justiça lenta demais é decerto uma Justiça má, daí não se segue que uma Justiça muito rápida seja necessariamente uma Justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço”.
Por fim, falar-se-á do neoinstrumentalismo e das críticas à fase instrumentalista. Primeiramente, é importante citar que a teoria da instrumentalidade de Dinamarco vem sofrendo duras críticas de inconsistência, principalmente por estudiosos como Rosemiro Pereira Leal, Dierle Nunes e André Cordeiro Leal. Isso porque, para muitos doutrinadores, a teoria não teve o resultado pretendido, pois seus objetivos não foram bem explorados, apesar de a proposta ser abrangente e ter dominado o meio processual brasileiro nos últimos vinte anos. Nas palavras de Henrique e Alexandre Araújo Costa[14], “a proposta de Dinamarco terminou sendo reduzida, no senso comum dos juristas, à afirmação de uma instrumentalidade das formas, no sentido de que a interpretação das normas processuais deve estar mais vinculada ao conteúdo finalístico dos dispositivos que ao respeito literal às formas estabelecidas”. Para os autores, a teoria de Dinamarco perdeu força e deixou de ser uma teoria sobre a problemática processual, transformando-se em “topos argumentativo na dogmática contemporânea”.
É importante citar aqui o professor Rosemiro Pereira Leal, autor de uma das críticas mais ferrenhas sobre a instrumentalidade. Ele critica o modo atual de pensar o mundo e defende que o processo é “uma instituição constitucionalizada”, questionando se a efetividade e celeridade podem ser aplicadas indistintamente, independentemente das demais garantias fundamentais decorrentes do princípio do devido processo legal (art. 5, LIV, CF). Afirma ainda que o atual modelo não representa um abordagem constitucional ao processo e sim uma continuação da tradição civilista.
A tese neoinstrumentalista de Rosemiro Leal decorre, principalmente, das soluções apontadas por Capelletti para combater a morosidade processual, nas quais o poder maior é do juiz e as partes não possuem participação efetiva. Na década de 80, quando o instrumentalismo foi lançado, havia o fenômeno da diminuição do Estado, incompatível com as exigências da doutrina de Capelletti; logo, a solução encontrada foi dar à magistratura o poder de atuar segundo sua sensibilidade para cumprir sua missão de fazer valer valores constitucionais. Porém, para que o processo exerça sua função democratizante, é necessária a participação mais ampla das partes, e não somente sua submissão à percepção do juiz. Caso assim não seja, falta legitimidade, que é justamente o que o neoinstrumentalismo defende.
4. A QUARTA FASE DO DIREITO PROCESSUAL
A partir da evolução dessas fases, com a influência do neoconstitucionalismo surge a hipótese de uma quarta fase. A existência desta não é unânime para a doutrina; havendo quem o nomeie como “neoprocessualismo”, a exemplo de Eduardo Cambi; como “formalismo valorativo”, para outros, como Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, e como Fredie Didier Júnior de “neopositivismo” ou “positivismo reconstruído”.
O chamado formalismo valorativo, pensado por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, defende a importância da segurança jurídica, da eticidade e da concretividade das normas por meio do processo, de forma que o formalismo valorativo confrontaria o formalismo excessivo. Ensina o autor:
A efetividade e a segurança apresentam-se como valores essenciais para a conformação do processo em tal ou qual direção, com vistas a satisfazer determinadas finalidades, servindo também para orientar o juiz na aplicação das regras e princípios. Poder-se-ia dizer, numa perspectiva deontológica, tratar-se de sobreprincípios, embora sejam, a sua vez, também instrumentais em relação ao fim último do processo, que é a realização da Justiça do caso. Interessante é que ambos se encontram em permanente conflito, numa relação proporcional, pois quanto maior a efetividade menor a segurança, e vice-versa. Assim, por exemplo, o exercício do direito de defesa, garantia ligada à segurança, não pode ser excessivo nem desarrazoado. Nos casos não resolvidos pela norma, caberá ao órgão judicial, com emprego das técnicas hermenêuticas adequadas, ponderar qual dos valores deverá prevalecer. Na verdade, garantismo e eficiência devem ser postos em relação de adequada proporcionalidade, por meio de uma delicada escolha dos fins a atingir. [15]
A escola mineira de processo, que tem como uma de suas bases teóricas o método habermasiano, também acredita na vivência de uma nova fase metodológica pelo processo civil brasileiro, fase que denomina de neoinstitucionalista. Para Rosemiro Pereira Leal, o neoinstitucionalismo é uma conquista pós-moderna da própria cidadania, a partir da qual o processo ganhou contornos discursivos constitucionalizados, havendo uma preocupação nesta fase com a conformidade do processo com texto constitucional- o que também é abarcado pelas fases apontadas como formalismo valorativo e neoprocessualismo. Para a fase neoinstitucionalista o processo é uma conquista da cidadania que a fundamenta por meio dos princípios e institutos, com o marco da teoria discursiva em seu bojo. Afirma o autor:
No plano do Direito Processual, em sua matriz neo-institucionalista, encontra-se uma proposta teórica consistente que explica como a principiologia constitucional do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia) pode ser entendida como assecuratória dessas condições de legitimidade decisória, explicando como o princípio do discurso pode ser institucionalizado (princípio de democracia). [16]
A chamada onda neoprocessualista, pensada por Fredie Didier Jr, defende o surgimento de um processo civil voltado para o procedimento constitucional descrito na vigente Constituição Federal 88. Entende o autor que tal fase está sendo vivenciada atualmente, de forma que o neoprocessualismo abarca este novo modelo teórico que trabalha sob a ótica da Constituição, buscando valorar a ética na aplicação processual. A fase neoprocessualista e a metodológica denominada de formalismo-valorativo seriam as mesmas, na visão de Didier, apenas com nomenclaturas distintas, tendo ambas o pressuposto no respeito aos direitos fundamentais Constitucionais. O formalismo-valorativo, determina como paradigmas interpretativos do processo civil brasileiro a efetividade e a segurança jurídica, além de realçar o caráter publicístico do processo, distanciando-se este de uma conotação eminentemente privada, e aproximando-se do valor social, passando a ser visto com um meio para realizar a justiça à disposição do Estado.
Há entre elas um entendimento consensual de que a ciência processual vem passando por uma quarta fase metodológica, na qual, de acordo com os autores, o instrumentalismo avança para o formalismo valorativo, havendo um aprimoramento entre processo e Constituição, de forma que aquele se afasta da lei inerte e aproxima-se das exigências do devido processo constitucional, deixando, a ciência processual, as técnicas duvidosas e burocráticas, formalismos excessivo e vazios e priorizando a interpretação das regras processuais sob as lentes da Constituição, alinhando-se o processo com a necessidade existente de se implementar os direitos fundamentais e de assegurar as garantias de um processo justo.
Com um passado essencialmente positivista no qual o juiz deveria tão somente descobrir e revelar a solução contida na norma, impondo-se as leis como expressão máxima do direito, nosso ordenamento tem se voltado cada vez mais aos princípios constitucionais, num contexto onde se ter por base a Constituição não é mais uma opção, sendo sua influência sobre a realidade social um meio de efetivar os princípios de justiça, igualdade e liberdade, de forma que, acompanhando tal movimento, desenvolveu-se a ideia de um direito processual civil que busque a teoria dos direitos fundamentais e a força normativa da Constituição. Com base no neoconstitucionalismo, seus métodos e resultados não podem estar mais desconexos do Texto Constitucional.
De acordo com essa nova fase processual, a solução para um conflito levado a juízo não se encontra puramente na norma, tornando-se mister a imersão da norma na realidade social, havendo assim uma integração do sistema jurídico positivado com a realidade. O processo passa a ser visto como uma ferramenta indispensável na concretização da justiça e da pacificação social, que permite a realização de valores constitucionais. Tal relação entre a Constituição e o processo se dá de forma direta, quando a Constituição determina os direitos e garantias fundamentais no processo, e as instituições essenciais na realização da justiça e indireta, quando permite que o legislador infraconstitucional preveja regras processuais específicas e para que o juiz concretize a norma jurídica no caso concreto. Nessa linha, hoje se visa à “tutela dos interesses particulares juridicamente relevantes” [17].
O processo é, nesse diapasão, um importante mecanismo de afirmação dos direitos reconhecidos na Constituição, chamando a atenção do operador para que este perceba que o Direito não deve permanecer engessado, focando nas mudanças paradigmáticas e pensamentos contemporâneos que visem sua concretização, em um Direito que mantém-se ligado à realidade e às multiplicidades sociais, políticas e econômicas, combatendo o imobilismo conceitual, e buscando atentar à construção de uma sociedade livre justa e solidária, àquilo que a Constituição determina como seus objetivos fundamentais.