Porte de drogas para consumo próprio:descriminalização e seus possíveis efeitos

28/08/2015 às 14:33
Leia nesta página:

Como a decisão do STF acerca da constitucionalidade do artigo referente ao porte de drogas para consumo próprio pode afetar a Lei 11.343/06 em outros aspectos.

Alguns anos após a interposição do RE 635.659, de autoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou a votação acerca da possível inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, que trata do porte de drogas para consumo próprio.

O principal argumento da Defensoria, e de outros órgãos que atuam no processo na figura de “amicus curiae”, é que tal dispositivo violaria o princípio constitucional da intimidade e vida privada, previsto no art. 5º, X da CF, bem como o princípio penal da lesividade, que determina que, para haver lesão punível na esfera penal, devem ser violados bem jurídicos alheios. Consideram que o porte para consumo pessoal encontra-se estritamente na esfera particular, sendo que a ação causaria apenas a autolesão do usuário, não tendo o Estado qualquer alcance sobre a conduta nessas circunstâncias.

Desta maneira, o referido recurso busca, além da reforma do acórdão referente ao caso concreto, a declaração, de forma incidental, da inconstitucionalidade do artigo mencionado.

Para a discussão acerca do dispositivo em questão, primeiramente consideremos sua redação:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

O tipo traz consigo cinco verbos-núcleo, quais sejam: adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, tendo como elemento subjetivo o uso exclusivo do agente. É crime de ação múltipla, ou seja, a realização de mais de uma conduta em relação à mesma droga constitui crime único.¹

Uma vez considerada a declaração de inconstitucionalidade do artigo, pelo STF, em sede de controle difuso, teríamos então a descriminalização das condutas a que os verbos fazem referência. Assim, a aquisição da droga, primeiro verbo hoje considerado ilícito penal, seria também descriminalizado. Nosso grande questionamento no momento é: como manter, então, um sistema em que a venda persistirá considerada crime, dentro do art. 33, na figura do tráfico, mas a aquisição será permitida? Estaríamos diante de um conflito não somente jurídico, mas fático: ter-se-ia permissão para adquirir o que é proibido vender. Não é possível considerar a conduta de maneira isolada, uma vez que a aquisição de algo pressupõe um cedente, de forma onerosa ou gratuita.

Desta forma, a descriminalização do porte para consumo próprio fomentaria, sem dúvidas, a atividade do tráfico – liberando a aquisição da substância, mas mantendo a forma de adquirir na ilegalidade. É um quadro insustentável, diante do evidente conflito. Não é difícil prever, então, que nestas condições, o próximo passo após a descriminalização do porte para consumo próprio será a liberação da comercialização. Isto já considerando que, juntamente com a liberação do porte, será também liberado o cultivo para consumo próprio, figura equiparada ao atual crime de porte, previsto no art. 28, §1º:

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Far-se-á então necessária a implementação de rígidas medidas fiscalizatórias acerca desta atividade, de modo a não se tornar também mais uma forma de favorecer o comércio ilícito das substâncias entorpecentes, na ação daqueles que, sob a alegação de cultivarem para consumo próprio, passarem a comercializar ilicitamente a droga em pequenas quantidades.

Já em relação à alegação dos defensores da descriminalização sobre a violação do princípio da intimidade e privacidade, bem como da lesividade, entendemos ser indiscutível que o bem jurídico que a lei visa proteger é a saúde pública, e não a integridade física do usuário, não procedendo assim a justificativa que o artigo visaria punir, de maneira indevida, a autolesão. Além disso, conforme muito bem coloca Gustavo Junqueira:

“ao trazer consigo a droga, ainda que para uso próprio, o sujeito coloca em risco a saúde pública, pois a droga pode ser perdida ou subtraída, e, entrado em circulação, concretiza o risco à saúde pública, abstratamente punido com as condutas previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006.”²

Mais ainda, os dispositivos da Lei 11.343/06 não devem ser interpretados de maneira isolada. Conforme já explicitado, não é possível se falar em permissão de aquisição e proibição da venda. A lesividade contra a sociedade restaria, então, configurada de qualquer forma. Por isso o Sisnad – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, instituído pela Lei 11.343/06 foi elaborado de modo a integrar ações de prevenção ao uso e repressão à produção e ao tráfico ilícito de drogas, conforme claramente exprimem seus objetivos, explicitados no art. 5º:

Art. 5o  O Sisnad tem os seguintes objetivos:

I - contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados;

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II - promover a construção e a socialização do conhecimento sobre drogas no país;

III - promover a integração entre as políticas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao tráfico ilícito e as políticas públicas setoriais dos órgãos do Poder Executivo da União, Distrito Federal, Estados e Municípios. (grifei)

Finalmente, sobre a questão já levantada que a criminalização do porte para consumo próprio equipararia o usuário à figura do traficante, não nos parece razoável este tipo de alegação, uma vez que as penas previstas para o porte são claramente dirigidas a conscientizar o usuário acerca dos malefícios do uso de substâncias entorpecentes, muito diferente do caráter repressivo das penas privativas de liberdade previstas para o tráfico, não havendo assim nenhuma intenção da Lei em equiparar as duas figuras.

Salientamos que a questão encontra-se em votação no Supremo Tribunal Federal, tendo sido os argumentos da Defensoria Pública acatados no voto do Ministro Gilmar Mendes. Resta-nos, então, aguardar os votos dos demais Ministros e a decisão final, para então discutir, no cenário concreto, quais serão os reais efeitos da modificação, ou não, deste preceito legal. Esperamos que, acima de qualquer fator jurídico ou político, sejam aqueles que melhor atendam as necessidades da sociedade.

¹GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios;  JUNIOR, José Paulo Baltazar, LENZA, Pedro (Coord.).Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 79

²JUNIOR, Flávio Martins Alves Nunes; DEZEM, Guilherme Madeira; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patricia; FULLER; Paulo Henrique Aranda; JUNIOR, Marco Antonio Araujo (Coord.); BARROSO, Darlan (Coord.). Leis penais especiais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 219 (Coleção Elementos do Direito, 18).

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Sobre a autora
Aline Prado

Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012). Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus (2014). Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Professora de Direito Constitucional no curso preparatório Comprova Cursos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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