Proteção social no Brasil: a Seguridade Social assistencial e o enfoque contributivo da Previdência Social

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30/08/2015 às 20:15
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2. Afrontas assistenciais aos princípios da previdência social

Seguidamente, ouvem-se notícias de que o sistema previdenciário brasileiro é deficitário. Dentre as causas dessa falta de sustentabilidade podem estar algumas afrontas assistenciais à organização contributiva do sistema.

Segundo noticiado por Cucolo (2009), só nos quatro primeiros meses de 2009, o déficit nas contas da Previdência Social cresceu 14%, para R$ 15,2 bilhões, na comparação com o mesmo período do ano passado. O resultado é a diferença entre uma arrecadação de R$ 53,8 bilhões – aumento de 5,2% em relação a 2008 – e uma despesa de R$ 69 bilhões (alta de 7%). Esse déficit se concentra praticamente todo na área rural, para a qual o Ministério da Previdência Social prevê um saldo negativo de R$ 40 bilhões para o ano de 2009.

Ainda segundo a mesma reportagem (Idem, ibidem), quase 70% dos benefícios pagos pela Previdência Social possui valor de até um salário mínimo, o que representa 18,3 milhões de beneficiários. Trata-se de 47,2% dos benefícios pagos na área urbana (7,2 milhões de pessoas) e 99,3% na área rural (7,7 milhões de beneficiários). O valor médio dos benefícios e aposentadorias pagos no ano chegou a R$ 655,50, o que representa um aumento real (acima da inflação medida pelo INPC) de 22,4% desde 2002.

O sistema da previdência social, apesar de também regido pelo princípio da universalidade, tem seu ponto mais alto no caráter contributivo, que efetua, por si só, o princípio da seletividade.

Se apenas quem contribui pode usufruir do sistema, como enfrentarão os riscos aqueles que não contribuem, ou porque realmente não têm condições para tal, ou porque, por estarem no mercado de trabalho informal, optam por esquecer que, ainda assim, são segurados obrigatórios, na qualidade de contribuintes individuais (quem presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de emprego; ou a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não), conforme se extrai do art. 11, V, “g” e “h”, da Lei n° 8.213/91?

Para enfrentar essa situação, a Previdência Social precisa adotar uma estratégia de publicidade, como se empresa de seguro privado fosse, com novos modelos de inserção (o que depende de legislação própria), de forma a efetivamente atingir toda a classe trabalhadora, inclusive a informal e a momentaneamente desempregada.


3. O subsistema da previdência social rural

No período entre 1994 a 2000, um estudo realizado por Delgado e Castro (2003), pesquisadores do IPEA, demonstrou que a necessidade de financiamento (diferença entre gasto com benefícios e arrecadação com contribuições com finalidade específica de financiamento da previdência social rural) é de aproximadamente 90% (média de 10 bilhões de reais por ano, o equivalente a 1% do PIB da época), sendo coberta pelos recursos das contribuições da previdência social urbana e pelo sistema da seguridade social, mas fora do âmbito da previdência social.

Para os pesquisadores (Idem, ibidem), o gasto com a Previdência Rural caracteriza a contrapartida financeira de um direito social, que deve ser assumido pelo conjunto da sociedade e financiado sob a forma de uma transferência tributária, não devendo ser assumido pelos contribuintes urbanos, do ponto de vista da equidade fiscal. O sistema do seguro social contratual do INSS não tem déficit. O déficit é oriundo do subsistema da previdência rural, que não deveria ser financiado pela previdência social urbana, mas pelas contribuições parafiscais que financiam a seguridade social.

A inserção do subsistema da previdência rural no sistema da previdência social, realmente, foi equivocada. A previdência rural como se apresenta hoje tem um viés totalmente assistencialista, sem qualquer aproximação com o princípio contributivo, que rege a previdência social urbana.

De janeiro a setembro de 2008, a arrecadação líquida da Previdência Social totalizou R$ 115,6 bilhões, sendo R$ 111,8 bilhões na área urbana e R$ 3,7 bilhões na rural (3,2% do total arrecadado). A despesa com benefícios previdenciários somou R$ 147,9 bilhões, distribuída em R$ 118,3 bilhões para a clientela urbana e R$ 29,6 bilhões para a rural (20% do total pago). No acumulado do ano, o valor líquido arrecadado cobriu 78,1% da despesa com pagamento dos benefícios previdenciários, sendo que o valor arrecadado na área urbana cobriu 94,5% da despesa com benefícios urbanos e no meio rural apenas 12,6%. Esses resultados mostram que há uma tendência de equilíbrio entre receita e despesa na previdência urbana, enquanto a necessidade de financiamento é extremamente alta no meio rural, o que demonstra a feição assistencialista da previdência rural (BRASIL, MPS, 2008).

Disso, conclui-se que os subsistemas da previdência rural e urbana são incompatíveis. Logo, não poderiam ser financiados pelo mesmo caixa, sob pena de comprometer (como já vem ocorrendo) o princípio da universalização dos direitos para os contribuintes urbanos, além de onerá-los excessivamente.

Outro grave problema envolvendo a atividade rural é a sua contagem como tempo de serviço para fins de obtenção de aposentadoria urbana, sem a necessidade de recolhimento das respectivas contribuições, quando essa atividade é anterior a 24/07/1991 (data em que entrou em vigor a Lei n° 8.213/91, nos termos do art. 55, 2º do referido diploma legal).

É extremamente comum homens e mulheres computarem como tempo de serviço o tempo em que exerceram atividade rural em regime de economia familiar desde os 12 (doze) anos até o primeiro emprego urbano, o que gera concessões prematuras de aposentadorias urbanas, sem que isso afete o cálculo do salário de benefício, já que somente são computados os salários de contribuição vertidos a partir de julho de 1994 (plano real) para o referido cálculo.

Para Rocha (2003, p. 23), é comum a concessão de subsídios em um sistema previdenciário financiado por repartição, sendo aceita a flexibilização prevista no dispositivo em destaque no tocante aos legítimos trabalhadores rurícolas. Contudo, a interpretação dada pelo Judiciário e pelo próprio INSS, esse mais influenciado em razão das decisões daquele, acabou favorecendo os segurados urbanos que tinham origem no meio rural, mas que são os que menos necessitam de subsídios. E essa situação ainda perdurará por longo tempo, já que até as últimas décadas houve significativa migração da população rural para o meio urbano.

As mudanças necessárias ao sistema da previdência social envolvendo os trabalhadores rurais, portanto, são duas: separação da previdência social rural da urbana (como era antes da Constituição Federal de 1988), pois aquela é assistencialista e esta é contributiva, a fim de que os recursos sejam devidamente geridos; e a obrigatoriedade de indenizar ao sistema qualquer período de atividade rural que o segurado deseje ver computado para fins de concessão de benefício urbano. Só com a adoção dessas alternativas é que se vislumbra uma maior justiça social para todos os contribuintes do sistema.


4. A automação e seus reflexos na previdência social

A principal dinâmica da revolução da automação está no firme propósito do empresariado, diante da crescente concorrência global, de substituir trabalhadores por máquinas tanto quanto possível e, com isso, reduzir encargos trabalhistas, aumentar o controle sobre a produção e melhorar as margens de lucro (RIFKIN, 2004, p. 6. e 86). Assim, embora prazos sejam difíceis de prever, segundo o autor americano estamos nos encaminhando sistematicamente para um futuro automatizado e provavelmente chegaremos a uma era sem trabalhadores, pelo menos na indústria nas primeiras décadas do século XXI e no setor de serviços, embora mais lento na automatização, em meados do século XXI (p. 288-289). Com isso, em “O Fim dos Empregos” (2004), Rifkin conjetura que, em menos de um século, a mão-de-obra “colarinho de silício” (p. 136) eliminará o trabalho “em massa” no setor do mercado em praticamente todas as nações industrializadas do mundo (p. 3).

Os reflexos da automação sobre a previdência social são significativos, pois, quanto menos empregos com carteira assinada houver, menor será a arrecadação do sistema e, consequentemente, maior será o seu déficit, o que o obrigará a buscar recursos de outras fontes para se sustentar, afetando, basicamente, os outros dois ramos da seguridade social (saúde e assistência social). Esse circuito é perigoso, pois abalar a fonte da assistência social e da saúde em momentos de crise na geração de empregos formais é temerário, já que é nesse momento que a assistência social precisa de mais recursos, justamente para financiar a classe trabalhadora através do seguro-desemprego. Rifkin explica tal risco, citando que “a redução da rede social, em uma época em que números crescentes de trabalhadores estavam sendo deslocados pelas novas tecnologias e pela reestruturação gerencial, aumentou as tensões em toda a Europa” (2004, p. 204).

O fato é que a automação é uma realidade presente, não podendo o Estado e a sociedade vendarem seus olhos para não enfrentarem as suas consequências sobre os níveis de (des)emprego.

Diante desse cenário, é preciso investir em educação, transformar fábricas em escolas (FLUSSER, 2007, p. 42), a fim de reinserir a classe operária, e adotar políticas públicas que envolvam o princípio da equidade na forma de participação no custeio, ou seja, buscando maior contribuição de quem tem mais condições (grandes empresas com elevado uso de tecnologia, crescentes aumentos de produtividade e poucos funcionários) e sobre a base que seja mais rentável (faturamento ou lucro).

Rifkin sugere a expansão do terceiro setor para ajudar a reformular o contrato social no século XXI (2004, p. 239) e enfrentar as dramáticas consequências da automação sobre a vida das pessoas. O autor explica que isso poderia ocorrer, por exemplo, com o pagamento de salários indiretos por tempo voluntário, a cobrança de um imposto de valor agregado sobre o consumo de produtos e serviços da era high-tech, para ser usado exclusivamente como garantia a um salário social aos pobres em troca de serviços comunitários, e o aumento das deduções de impostos para a filantropia corporativa, vinculada aos ganhos de produtividade (p. 290). Ainda, sugere o uso de “transferências tributárias” para fomentar oportunidades de emprego no terceiro setor, isto é, a tributação de práticas e atividades social e ambientalmente danosas, com a destinação da receita especificamente à redução dos impostos sobre lucros corporativos, mão-de-obra e renda pessoal (p. xxxvii). A transferência tributária voltada a comportamentos tanto social como ambientalmente nocivos (os chamados “impostos pecaminosos”) poderia ser destinada a ajudar no financiamento de organizações do terceiro setor, fomentando empregos na sociedade civil e promovendo o desenvolvimento do capital social por todo o mundo (p. xl).

A ameaça representada pela automação sobre a estabilidade do sistema jurídico-atuarial-financeiro da proteção social, entre outras causas, levou Chiarelli (2007, p. 198-199) a sugerir alternativas para minimizar o problema, como o estímulo ao surgimento de novas e a expansão das atuais atividades, predominantemente marcadas pela criatividade, já que nelas prevaleceria a sensibilidade e, consequentemente, a contribuição humana em detrimento da máquina, gerando novos empregos e acréscimo de arrecadação pelo sistema; e a redução da jornada humana de trabalho, já que essa limitação, sem diminuição produtiva, tenderá a ocupar mais gente, significando mais arrecadação e menos encargos onerosos ao sistema decorrentes do desemprego, por exemplo.

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Segundo Rifkin, a França foi o primeiro país do mundo a adotar uma semana de trabalho de 35 horas (2004, p. xxxi). Só que sob a nova lei da semana de 35 horas, os trabalhadores continuavam a receber por 39 horas de trabalho. Assim, para assegurar a competitividade das empresas francesas, o governo subsidiou a remuneração horária dos trabalhadores, reduzindo os encargos de seguridade social dos empregadores. Além disso, criou um incentivo para que as empresas gerassem novos empregos, concordando em subsidiar as despesas sociais (aposentadoria, saúde, indenizações e seguro-desemprego) de quaisquer novos trabalhadores com baixos salários. Tais subsídios somam, no mínimo, US$ 3,3 bilhões por ano, sendo que grande parte dos fundos vêm de impostos sobre o tabaco e o álcool (2004, p. xxxii). Ressalta o autor:

Os governos perderão receita no fronte, mas a recuperarão ao fim. Mais pessoas trabalhando significa menos gente no bem-estar social, mais pagamentos, mais consumo, maior poupança e investimento pessoal e maior número de pessoas empregadas pagando tanto o imposto de renda pessoal como sobre transações – tudo isso aumentando a base de receita do governo (2004, p. xxxiii).

Segundo estudos realizados pela Previdência Social, publicados no Informe Evolução Recente da Proteção Social e seus Impactos sobre o Nível de Pobreza (2008), o crescimento do emprego formal tem um grande peso no aumento da arrecadação previdenciária, em especial nas receitas correntes que guardam uma vinculação muito estreita com o mercado de trabalho. Esse fato pode ser facilmente comprovado ao se confrontar os principais indicadores de mercado, divulgados mensalmente, com os resultados das receitas correntes do Regime Geral de Previdência Social.

Diante disso, imprescindível a atuação do Estado para melhorar a escolaridade dos brasileiros, pois quanto melhor essa característica, maior a tendência de inclusão do indivíduo no mercado de trabalho, inclusive aqueles com faixas etárias mais reduzidas, onde a informalidade costuma ser maior (COSTANZI, 2008).

Assim, além da instrução, a adoção de outras medidas como o estímulo à criação de novas atividades criativas, a aplicação do princípio da equidade na forma de participação no custeio da seguridade social, a redução da jornada semanal de trabalho, acompanhada de sistemas de subsídios como os utilizados na França, e a expansão do terceiro setor tendem a ser alternativas para enfrentar os impactos negativos da automação sobre o sistema da seguridade social.


5. Benefícios previdenciários: a questão da carência

Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus a determinado benefício previdenciário, conforme se extrai do art. 24. da Lei n° 8.213/91. O parágrafo único do mesmo dispositivo prevê que havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.

O art. 25. da Lei dispõe sobre os períodos de carência exigidos para a concessão dos diversos benefícios, como, por exemplo, 12 (doze) contribuições mensais para o auxílio-doença e aposentadoria por invalidez e 180 (cento e oitenta) para aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de serviço e aposentadoria especial; independendo de carência a concessão de pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente; bem como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho; os benefícios concedidos aos segurados especiais, entre outras prestações (art. 26).

Introduzida a questão, importa referir que a carência exigida para a concessão dos benefícios por incapacidade (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez) é extremamente reduzida, não sendo incomum o segurado filiar-se (ou refiliar-se) ao regime, na qualidade contribuinte individual ou segurado facultativo, somente após estar doente e sentir a proximidade da incapacidade, vindo a contribuir com apenas doze (filiação originária) ou quatro (reinscrição) recolhimentos, para o posterior requerimento do benefício.

Uma carência tão facilmente cumprível tende a ser um convite à prática de fraudes ao sistema, situação que tem se intensificado e precisa ser tratada rapidamente, sob pena de causar-lhe sérios prejuízos.

Outro aspecto a referir nesse tópico é a carência exigida para a concessão da aposentadoria especial e por tempo de contribuição, que é de apenas 180 contribuições, quando o tempo de serviço exigido é de 15, 20 ou 25 anos para a primeira e 30 ou 35 anos para a segunda, esta diferenciada para mulheres e homens, respectivamente.

Ora, se desde a Emenda Constitucional n° 20/98 a aposentadoria chama-se por tempo de contribuição e o art. 201, § 7º, inciso I, da Constituição exige trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher, não há motivos para manter a exigência de apenas 180 meses (quinze anos) de contribuições para efeito de carência, pois isso gera consideráveis prejuízos ao sistema, especialmente quando o segurado alega o desenvolvimento de atividade rural anterior a 1991, cujo período é contado como tempo de serviço sem exigir contribuições, conforme já referido acima, o mesmo ocorrendo com a conversão de tempo de serviço de atividade especial em comum (art. 57, § 5º, da Lei n° 8.213/91), com a contagem de tempo de serviço fictício, sem as competentes contribuições.

Assim, apresenta-se necessária uma revisão na sistemática da carência, a fim de que se torne efetivamente um requisito para a concessão de benefícios previdenciários, deixando de ser um mero passo.

Sobre a autora
Cirlene Luiza Zimmermann

Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Professora de Direito na Universidade de Caxias do Sul - UCS. Coordenadora da Revista Juris Plenum Previdenciária. Procuradora Federal - AGU. Autora do Livro “A Ação Regressiva Acidentária como Instrumento de Tutela do Meio Ambiente de Trabalho”.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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