Tutela antecipada “ex officio” e responsabilidade processual

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31/08/2015 às 09:29
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O presente estudo analisa a tutela antecipada incidental, com enfoque nas alterações trazidas pela Lei 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil), especialmente no tocante à sua concessão independentemente de pedido da parte.

1 Notas introdutórias: fundamentos constitucionais das tutelas de urgência

 

 

Desde a proibição da tutela privada dos direitos, incumbe ao Estado dirimir os conflitos, salvo em situações excepcionais previstas em lei (legítima defesa, desforço imediato para a defesa da posse etc.). Detentor do poder jurisdicional, o Estado assumiu o dever da jurisdição, bem como o compromisso de tutelar adequadamente as tensões sociais (restabelecer a paz coletiva).[i] Por isso a atividade jurisdicional precisa ser a mais eficaz possível, de modo a impedir o aparecimento de medidas judiciais acanhadas ou inúteis.[ii]

 

 

Mesmo antes da previsão expressa a um direito fundamental à razoável duração dos processos administrativos e judiciais, trazido pela Emenda Constitucional nº 45/2004,[iii] sua observância era obrigatória por imposição do artigo 8º, nº I, do Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelo Decreto nº 678/1992. Mais do que isso, resulta do direito de acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV, da CF) e do princípio do devido processo legal (art. 5º, LV, da CF), que incorpora o direito ao processo sem dilações indevidas.[iv]

 

 

O devido processo, no seu aspecto procedimental, é “princípio-síntese” ou “princípio de encerramento” da noção de um processo justo e adequado, representativo de todos os demais direitos indicados pela Constituição Federal, regente da atuação da jurisdição desde o momento da sua provocação até o instante em que o Estado-juiz, reconhecendo o direito lesionado ou ameaçado, crie condições concretas de sua reparação ou imunização correspondente.[v]

 

 

Nessa linha, teria sido suficiente o texto constitucional haver adotado o princípio do “due process of law” para que daí decorressem todas as demais consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É um gênero do qual todos os demais princípios constitucionais são espécies, motivo pelo qual bastaria a Constituição ter enunciado o princípio do devido processo legal para o “caput” e os incisos do artigo 5º, em sua grande parte, serem dispensáveis. De todo modo, a explicitação dos direitos fundamentais derivados do devido processo legal é uma forma de enfatizar a importância de cada um deles (contraditório, ampla defesa, juiz natural e outros), norteando a atuação da administração pública, do Legislativo e do Judiciário.[vi]

 

 

Ao intérprete do direito incumbe analisar e aplicar a legislação processual à luz dos valores da Constituição Federal, de modo a pensar o procedimento em conformidade com as necessidades do direito material e da realidade social. Diante de duas interpretações possíveis da lei processual, cabe ao aplicador, em um primeiro momento, valer-se daquela que não ofenda a Constituição. Existindo duas interpretações razoáveis na perspectiva constitucional, deve escolher a interpretação que garanta a máxima efetividade do processo, otimizando o exercício da jurisdição.[vii]

 

 

Do direito de acesso à justiça emana a postulação da tutela jurisdicional preventiva ou reparatória, sobre direitos individuais ou coletivos (art. 5º, XXXV, da CF).[viii] A jurisdição se presta a tutelar tanto a lesão, quanto a ameaça de lesão a bens e direitos; as técnicas processuais não podem lidar apenas com as situações de lesão já consumadas, relegando ao Judiciário a função única de repor as coisas no “statu quo ante”. Hodiernamente, exige-se um pensar do processo civil em duas frentes, uma delas voltada à reparação de lesões ocorridas no passado (visão retrospectiva da função jurisdicional) e outra voltada para o futuro (visão prospectiva do processo), destinada a evitar a consumação de quaisquer lesões a direito – consiste na emissão de tutela jurisdicional que imunize quaisquer ameaças, independentemente de elas se converterem em lesões; independentemente, até mesmo, de elas gerarem quaisquer danos, bastando que haja uma situação antijurídica.[ix]

 

 

Em um primeiro momento, verificou-se que o modelo de processo vigente durante o Estado Liberal burguês, de cunho meramente formal – embora fosse garantido o livre acesso formal à justiça, assim como qualquer outro bem no sistema do “laissez-faire”, só poderia ser usufruído por aqueles que enfrentassem os seus custos – era insuficiente. Os excluídos socialmente, naquela época, estavam largados à própria sorte; o acesso à justiça era meramente formal, e não efetivo. Somente com a atuação positiva do Estado (“welfare state”) que o acesso real à justiça ganhou importância, porque é o requisito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir (e não apenas proclamar) os direitos de todos.[x]

 

 

O despertar em torno de um acesso efetivo à justiça levou ao estudo de técnicas aptas para o processo realizar as suas finalidades, o que deu margem à criação das três ondas de acesso à justiça. A primeira delas se concentrou em proporcionar serviços jurídicos para os pobres, viabilizando meios para a representação dos interesses das pessoas socialmente excluídas, a fim de que todos os cidadãos, independentemente das suas condições financeiras, tivessem acesso ao Poder Judiciário com plenas possibilidades de requerer uma proteção judicial. Surgiram as defensorias públicas, as leis de assistência judiciária gratuita, dentre outras iniciativas que vieram para superar os graves defeitos do Estado liberal burguês.[xi]

 

 

A segunda onda de acesso à justiça é relacionada com a tutela dos direitos e interesses difusos, que não se encontram subjetivados ou individualizados em pessoa determinada, v.g., o direito dos consumidores, o direito à preservação ambiental e a defesa dos interesses sociais coletivos e difusos. A preocupação central recai na viabilização da representação judicial de direitos e interesses transindividuais, que de outra forma estariam carentes da proteção jurisdicional e, consequentemente, não passariam de meras declarações formais de tutelas a direitos.[xii]

 

 

Em linhas gerais, as duas primeiras ondas de acesso à justiça se ocupam da efetiva representação de direitos antes não representados ou mal representados. Já a terceira onda de acesso à justiça, de maior interesse para este estudo, cuida da necessidade de o processo garantir a plena realização do direito material. Encoraja-se a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais, a criação de novas cortes, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar a sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. Esse novo enfoque não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial. [xiii]

 

 

Na presente fase metodológica da disciplina, de cunho instrumentalista, o direito processual civil deve ser organizado com vistas a proteger, adequada e rapidamente, as situações de ameaça ou de lesão a direitos, o que justificou o desenvolvimento da tutela jurisdicional preventiva (tutelas antecipada, cautelar e inibitória), ao lado da tutela meramente repressiva ou reparatória.

 

 

2 Da cautelar satisfativa à tutela antecipada

 

 

A ausência de liminares genéricas no direito brasileiro (exceção feita às ações possessórias, ações de alimentos com prova pré-constituída do parentesco, ação de nunciação de obra nova, embargos de terceiro, mandado de segurança e outros poucos casos), antes do advento da Lei nº 8.952/1994, levou a uma crise de efetividade do processo de conhecimento, inapto a tutelar todas as situações de urgência.[xiv]

 

 

O vocábulo “liminar”, em sentido processual, na lição de Adroaldo Furtado Fabrício, consiste no “provimento judicial emitido in limine litis, no momento mesmo em que o processo se instaura. A identificação da categoria não se faz pelo conteúdo, função ou natureza, mas pelo momento da prolação. [...]. Rigorosamente, liminar é só o provimento que se emite inaudita altera parte, antes de qualquer manifestação do demandado e até mesmo antes de sua citação. Não é outra a constatação que se extrai dos próprios textos legais que, em numerosas passagens, autorizam o juiz a decidir liminarmente ou após justificação. Certo é, entretanto, que se tem usado, sem maiores inconvenientes e sem prejuízo da clareza de idéias, a designação de liminar também para os provimentos judiciais proferidos após justificação, na qual se tenha inclusive ouvido o demandado. O que não se pode tolerar é o alargamento do conceito até o ponto de confundir com liminar toda e qualquer providência judicial antecipatória, isto é, anterior à sentença”.[xv] Na mesma linha, Calmon de Passos esclarece que o termo liminar é o “nome que damos a toda a providência judicial determinada ou deferida initio litis, isto é, antes de efetivado o contraditório”.[xvi]

 

 

O Código de Processo Civil de 1973 confere ao juiz, por meio do artigo 798, o poder-dever, inclusive em sede liminar, de determinar as medidas provisórias que julgue adequadas, quando presente o fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação. Até 1994, a saída encontrada pelos juristas para a obtenção de liminares foi a utilização do que se passou a denominar de “ações cautelares satisfativas”, apesar da evidente impropriedade terminológica.[xvii] Logo, durante muito tempo, admitiu-se certo desvirtuamento do processo cautelar para se abreviar a concessão da tutela satisfativa, porque somente assim se possibilitava a antecipação liminar da tutela, o que, como regra, não era admitido no processo cognitivo. Esse mecanismo passou a ser adotado de forma genérica, permitindo a entrega da tutela jurisdicional antes do momento adequado, sem a segurança necessária e só adquirida no processo de conhecimento.[xviii]

 

 

Galeno Lacerda apregoava que, além de assegurar a produção da prova e proteger os bens em litígio, a cautelar também outorgaria segurança mediante a antecipação provisória da prestação jurisdicional, em especial nas situações de grande urgência, quando comprovada a necessidade de proteção imediata a pessoas (v.g,, ações de alimentos, guarda de menores etc.).[xix] Outro setor da doutrina, mais conservador e fiel à natureza da cautelar, repudiava a concessão de medidas sumárias satisfativas com base no poder geral cautelar. Para Humberto Theodoro Júnior, a cautelar nunca poderia transpor os limites da sua natureza provisória, já que a lei não autorizava uma disciplina que fundamentasse o desvio do poder geral de cautela para cumprir a missão nova de satisfação do direito material.[xx] Calmon de Passos, no mesmo sentido, asseverava que se, por acaso, a única medida deferível para a segurança da futura eficácia equivalesse à antecipação, provisoriamente, de algum ou alguns efeitos da futura tutela, isso não transformaria a cautelar em antecipação de tutela, nem a colocaria numa espécie “privilegiada” de cautelar satisfativa.[xxi]

 

 

A polêmica perdeu importância com a reforma de 1994, que concebeu a tutela antecipada genérica no processo de conhecimento (art. 273, do CPC), eliminando a necessidade de o interessado, para obter tutela urgente de cunho satisfativo, utilizar-se do artigo 798 do Código de Processo Civil.[xxii]

 

 

Naturalmente, cuida-se aqui do provimento antecipatório fundado no receito de dano irreparável ou de difícil reparação (art. 273, I, do CPC). As demais hipóteses permissivas da antecipação dos efeitos da tutela – abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu (art. 273, II, do CPC) e a parcela incontroversa do pedido (art. 273, § 6º, do CPC) – são destituídas de urgência e não traduzem perigo de dano grave a ensejar a concessão imediata do bem da vida almejado. No primeiro caso, tem-se uma sanção para o réu que abusa do seu direito de defesa e age de maneira a postergar a entrega da tutela jurisdicional; no segundo, pretende-se isentar os prejuízos oriundos da mora judiciária, quando incontroverso o pedido.[xxiii] Até por isso o tratamento dado pelo novo Código de Processo Civil é distinto, tratando da tutela da evidência (art. 311) ao lado das tutelas de urgência (arts. 300 a 310).

 

 

3 Fungibilidade entre as tutelas de urgência

 

 

Como visto, o legislador buscou afastar os riscos provenientes da demora do processo mediante a criação da tutela jurisdicional de urgência. O fator tempo é o ponto de contato entre a antecipada e a cautelar.[xxiv] Elas se assemelham ainda pelas seguintes características: cognição sumária, não definitividade (provisoriedade; revogabilidade), possibilidade de concessão de liminares (postergação do contraditório); existência do risco de dano irreparável ou de difícil reparação.[xxv]

 

 

O Código de Processo Civil de 1973, ligado às lições de Liebman, cuidou da atividade cautelar como uma espécie de tutela auxiliar e subsidiária, destinada a garantir o “curso eficaz e o resultado útil” das tutelas cognitiva e executiva, “concorrendo assim, indiretamente, para a consecução dos objetivos gerais da jurisdição”.[xxvi] Todavia, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, ainda persiste discussão relativa à verdadeira finalidade da tutela cautelar.

 

 

Parcela dos doutores considera a cautelar um “instrumento do instrumento”, conforme a clássica expressão de Piero Calamandrei, que se dirige a proteger o resultado útil e prático de um processo principal, seja ele de conhecimento ou de execução. A instrumentalidade entre a cautelar e o processo principal seria o traço característico desta modalidade de tutela.[xxvii] Outros entendem que a cautelar não tem por função primordial a proteção do resultado útil de um processo principal, mas assegurar a realizabilidade prática do direito da parte;[xxviii] seria um instrumento da tutela do direito, destinado a conferir segurança, utilidade e efetividade à tutela a ser concedida em um processo principal (cognitivo ou executivo).[xxix]

 

 

Seja um instrumento do instrumento, seja um mecanismo para garantir a útil e efetiva tutela do direito, pode-se dizer que as cautelares não satisfazem a pretensão das partes. Sua função é meramente instrumental em relação às outras espécies de atividade e, por seu intermédio, o Estado exerce uma tutela jurisdicional mediata.[xxx]

 

 

A existência de características comuns entre a tutela antecipada e a cautelar sempre dificultou a distinção dos institutos, o que até hoje é uma das mais intrincadas questões do direito processual civil. A falta de critério objetivo para uma diferenciação segura é fonte de grandes problemas práticos, levando à admissão de uma verdadeira fungibilidade entre as providências jurisdicionais urgentes, tudo para evitar prejuízos ao jurisdicionado.[xxxi]

 

 

A Lei nº 10.444/02, que incluiu o parágrafo 7º ao artigo 273 do atual diploma processual civil,[xxxii] pretendeu abrandar o formalismo exacerbado, de modo a emprestar concretude aos princípios do acesso à justiça, da economia, da celeridade e da efetividade processual.[xxxiii] As tutelas de urgência, desde então, comportam análise unitária; ambas objetivam evitar os efeitos deletérios do tempo; elas tanto podem se situar no plano da conservação de bens ou direitos, quanto no da antecipação de efeitos materiais do futuro provimento previsto para a tutela satisfativa. Seja quando se ocupe das medidas cautelares puras, seja quando se autorize a tutela antecipada do direito material litigioso, “o que se faz presente no direito positivo é sempre a luta legítima contra os males que o tempo pode causar aos direitos da parte enquanto aguarda o desfecho do processo”.[xxxiv]

 

 

Do ponto de vista do direito de acesso a uma tutela justa e efetiva (art. 5º, XXXV, da CF), as tutelas cumprem a mesma tarefa de eliminarem a colisão entre a segurança jurídica e a efetividade processual.[xxxv] Deste modo, a fungibilidade se revela um eficaz instrumento para a adequação da tutela de urgência pleiteada à real necessidade do caso concreto, deferindo-se a cautelar quando ausentes os requisitos da antecipação de tutela; de outro lado, possibilita-se a concessão da tutela antecipada, ainda que pedida a tutela cautelar, se preenchidos os pressupostos e requisitos daquela.

 

 

A distinção entre a tutela antecipada e a tutela cautelar pode ser vista em relação ao sujeito e ao processo: quando o mal é causado ao sujeito, o remédio é a tutela antecipada; quando o mal atinge o processo, a medida adequada é a cautelar.[xxxvi] Todavia, na prática, tal diferenciação, por vezes, não é suficiente para uma correta qualificação (e nomenclatura) da espécie de tutela a ser requerida. Diante da “nuvem cinzenta” que recai sobre a matéria, passou-se a condenar veementemente as posições que privilegiem os meios e técnicas em prejuízo do direito do jurisdicionado.[xxxvii]

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Em nome de um processo civil de resultados que se sobrepõe a formalismos desnecessários, o legislador inseriu o comentado dispositivo para resguardar os reais interesses e necessidades das partes, ainda que a via eleita não se mostre a mais adequada ao caso concreto. Sobre o tema, o escólio de Teresa Arruda Alvim Wambier, segundo o qual meras razões de ordem formal não devem obstar que a parte obtenha a seu favor provimento “cujo sentido e função sejam o de gerar condições à plena eficácia da providência jurisdicional pleiteada [...]. É indisputável que, como regra geral, nas zonas de penumbra, se decida a favor dos valores fundamentais”.[xxxviii] Em suma, nessas situações de fronteira, não deve o juiz adotar posição de intransigência, mas agir com maior flexibilidade, dando maior atenção à instrumentalidade e à efetividade do processo.[xxxix]

 

 

É indispensável, para a aplicação da fungibilidade, a presença dos requisitos autorizadores da espécie de tutela a ser apreciada. Importante salientar que a corrente majoritária rechaça o pensamento de que a fungibilidade entre as tutelas de urgência deva seguir os mesmos requisitos da fungibilidade recursal - existência de dúvida objetiva entre as medidas -, pois o artigo 273, § 7º, do Código de Processo Civil, não se subordina a qualquer outro comando legal. O legislador condiciona a fungibilidade somente ao preenchimento dos pressupostos da outra medida, isto é, “ainda que a medida pleiteada como antecipação de tutela seja desenganadamente cautelar, o juiz poderá concedê-la, desde que presentes seus pressupostos”.[xl] Esta interpretação se justifica porque a inovação legislativa teve por escopo flexibilizar e desburocratizar o processo. A utilização de elementos estranhos ao texto legal frustraria toda a finalidade da norma e o postulado da efetividade processual, prestigiando-se a forma em detrimento do direto em risco.

 

 

Como consequência, foi acolhida a chamada fungibilidade em "duplo sentido vetorial" ou "de mão dupla". Para tanto, Dinamarco explica que não há fungibilidade em uma só mão de direção; no direito, se os bens são fungíveis, isso significa que tanto se pode substituir um por outro, como outro por um. Aliás, a lei nem precisaria ser tão explícita a esse respeito, porque é regra batida no direito processual que o juiz não está vinculado às qualificações jurídicas propostas pelo autor, mas somente aos fatos narrados e ao pedido feito. À guisa de exemplo, nenhum juiz deixa de anular um contrato por dolo, só pela circunstância de o autor, equivocadamente, ter qualificado como coação os fatos narrados. O que importa é que os fatos narrados sejam capazes, segundo a ordem jurídica, de conduzir ao resultado que se postula (“mihi factum dabo tibi jus”), seguindo-se o princípio da substanciação, consagrado pelo Código de Processo Civil. Este também é o significado e a medida de aplicação da correlação entre o provimento jurisdicional e a demanda (arts. 128 e 460 do CPC/1973). No mais, inexiste dissenso entre o julgado e o pedido quando considerados exatamente os fatos descritos na inicial, não importando que lhe tenha sido emprestada qualificação jurídica não mencionada expressamente na peça inaugural. Logo, mesmo sem o permissivo do parágrafo 7º do artigo 273, o juiz já estaria autorizado a dar a sua própria qualificação jurídica aos fatos narrados pelo autor, o que realça o duplo sentido vetorial da fungibilidade entre as medidas urgentes.[xli]

 

 

A fungibilidade “de mão dupla” encontra guarida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ),[xlii] que reconheceu o interesse processual da parte em postular providência de caráter cautelar, a título de antecipação de tutela. Aliás, no julgamento do Recurso Especial nº 653.381/RJ, cujo voto condutor é da lavra da Ministra Nancy Andrighi, observou-se que, em virtude da inovação trazida pela Lei nº 10.444/2002, é irrelevante a distinção acadêmica entre medidas antecipatórias e cautelares. Cabe o provimento provisório, quer se trate de antecipar os efeitos do provimento definitivo, quer se trate apenas de se assegurar a sua eficácia prática.[xliii]

 

 

José Roberto dos Santos Bedaque recorda que a adequação a ser feita pelo juiz é da própria medida, deferindo-se aquela mais apta a afastar o risco de inutilidade da prestação jurisdicional.[xliv] Perfilhando deste entendimento, Cássio Scarpinella Bueno reconhece que o parágrafo 7º do artigo 273 do Código de Processo Civil prevê uma indiferença entre as tutelas, tendo em vista existir uma preocupação com o objetivo prático do processo.[xlv]

 

 

Agasalhando a intenção desburocratizadora da Lei nº 10.444/2002, a nova codificação prevê expressamente a fungibilidade entre as medidas de urgência (artigo 305, parágrafo único). A crítica à fungibilidade de “duplo sentido vetorial”, especialmente no tocante à impropriedade da via eleita e à falta de interesse processual, perde importância no novo sistema, tanto por contrariar entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça, quanto pelo tratamento homogêneo dado às tutelas de urgência, bastando a comprovação da probabilidade do direito e o risco de dano (art. 300, “caput”, do NCPC) para a concessão de qualquer das medidas urgentes.

 

 

A conversão do rito processual inicialmente requerido pelo autor, quando aplicada a fungibilidade, adequando-se o procedimento à natureza da providência concedida, vem prevista no artigo 305, parágrafo único, do novo Código. De tal modo, caso o autor ajuíze ação cautelar incidental, mas o juiz verifique ser situação de tutela antecipada, deverá transformar o pedido cautelar em pedido de tutela antecipada. Dado que os requisitos da tutela antecipada são mais rígidos que os da cautelar, ao receber o pedido cautelar como antecipação de tutela “o juiz deve dar oportunidade ao requerente para que adapte o seu requerimento, inclusive para que possa demonstrar e comprovar a existência dos requisitos legais para a obtenção da tutela antecipada”.[xlvi]

 

 

Valendo-se desse expediente, preserva-se o processo e o pedido já formulado, ao mesmo tempo em que é garantida a observância ao devido processo legal, sem prejuízo do ideal de um processo civil de resultados e do amplo acesso ao Judiciário.

 

 

4 Tutela antecipada: conceito, natureza e momento de concessão

 

 

A tutela antecipada consiste na possibilidade de antecipação total ou parcial dos efeitos da tutela almejada, tal como ela consta do pedido, antes do momento habitual para tanto.[xlvii] Cassio Scarpinella Bueno a define como sendo a possibilidade da “precipitação dos efeitos práticos da tutela jurisdicional”, que, de outro modo, não seriam perceptíveis no plano material até um evento futuro: proferimento da sentença, processamento e julgamento de recurso de apelação com efeito suspensivo e, eventualmente, seu trânsito em julgado.[xlviii]

 

 

Para Alexandre Câmara, trata-se de uma espécie de tutela jurisdicional “satisfativa, prestada – em regra – no bojo do módulo processual de conhecimento (independendo, assim, de processo autônomo para sua concessão), e que se concede com base em juízo de probabilidade”.[xlix] Bedaque a coloca como uma “decisão antecipatória dos efeitos materiais da sentença, o que pode ocorrer desde a propositura da ação, liminarmente portanto, e até após o julgamento em primeiro grau”.[l] Humberto Theodoro Júnior assevera que a tutela antecipada representa a possibilidade de se conceder à parte “um provimento imediato que, provisoriamente, lhe assegure o bem jurídico a que se refere a prestação de direito material reclamada como objeto da relação jurídica envolvida no litígio”.[li]

 

 

Embora não haja grande dissenso quanto ao conceito, no que tange à natureza jurídica, diverge a doutrina. Bedaque sustenta que as tutelas cautelar e antecipada possuem a mesma natureza, de cunho acautelatório, não havendo motivo para distingui-las: ambas são tutelas provisórias e instrumentais destinadas a assegurar o resultado final do processo, com finalidade e estrutura idênticas. Para ele, seria incorreto separá-las tão-somente por seus efeitos (conservativos ou antecipatórios), critério este puramente arbitrário.[lii]

 

 

Outros aduzem que as naturezas são distintas, embora ambas sejam espécies do gênero tutela de urgência. Marinoni e Arenhart esclarecem que a tutela antecipada não possui referibilidade, isto é, não faz referência a uma situação de direito material tutelada em outro processo. Entretanto, admitem que elas sempre estão relacionadas com uma tutela final, podendo ser chamadas “interinais”, por não assumirem a posição de tutela definitiva.[liii]

 

 

O novo Código de Processo Civil, da mesma forma que o texto de 1973, não prefixou o momento adequado para a antecipação da tutela. Nada impede a sua concessão liminarmente, na sentença ou após (na fase recursal), tal qual no sistema atual.[liv]

 

 

5 Requisitos legais para concessão

 

 

O novo CPC confere um tratamento uniforme às tutelas urgentes, ao prever disposições gerais (artigos 294 a 302) aplicáveis às duas espécies (tutela cautelar e tutela antecipada),[lv] aproximando, inclusive, os seus requisitos:[lvi]

 

 

a) “fumus boni iuris” (artigo 300, “caput”): o dispositivo menciona a “probabilidade do direito” invocado pela parte, que nada mais é do que a verossimilhança do direito pleiteado. A doutrina atual fala em prova inequívoca que conduza o magistrado a um estado de verossimilhança da alegação,[lvii] a despeito da contrariedade evidente entre os termos “inequívoca” (traduz um juízo de certeza) e “verossimilhança” (representa um juízo de probabilidade). Pelo novo texto, basta que a prova produzida seja suficientemente idônea para trazer a segurança suficiente para a concessão da medida urgente satisfativa.[lviii] O juízo é de probabilidade do direito invocado pela parte.

 

 

A antecipação de tutela exige prova preexistente, que não precisa ser necessariamente documental, ante a possibilidade, por exemplo, da prova oral ser produzida em audiência de justificação (artigos 273 e 461, parágrafo 3º, do CPC/1973, artigo 300, § 2º, do novo CPC).[lix]

 

 

b) “periculum in mora” (artigo 300, “caput”): o perigo de dano nada mais é do que “o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação” do artigo 273, I, do atual Código de Processo Civil. Para Bedaque, coerente com seu posicionamento acerca da natureza jurídica da tutela antecipada, é hipótese com nítida feição cautelar.[lx] No entanto, predomina o entendimento sobre a imunização do risco ao direito material, não ao processo.[lxi]

 

 

c) reversibilidade do provimento antecipatório: prevista expressamente no artigo 300, § 3º, do novo Código de Processo Civil (art. 273, § 2º, do CPC/1973). A lei trata da irreversibilidade dos efeitos da tutela antecipada, ou seja, da irreversibilidade no plano material, exterior ao processo;[lxii] na seara meramente processual, a decisão que concede a tutela antecipada sempre é reversível, porque pode ser modificada ou revogada a qualquer tempo (art. 296, “caput”, do novo CPC). Consiste na possibilidade de os efeitos práticos (materiais) da decisão serem desfeitos, se sobrevier revogação ou modificação da tutela antecipatória.

 

 

Segundo a doutrina, cuida-se de um pressuposto negativo da tutela antecipada; em regra, havendo risco de irreversibilidade dos efeitos materiais do provimento antecipado, a tutela deve ser indeferida.[lxiii] Assim como é de se evitar o “periculum in mora” para o autor, não é correto exigir do réu que suporte esse perigo exclusivamente, já que a tutela antecipada não pode ser vista como simples transferência dos riscos de uma parte para a outra.[lxiv]

 

 

De outra banda, há situações urgentíssimas que envolvem a escolha entre a proteção e o perecimento do direito da parte, caso o bem jurídico não seja tutelado imediatamente (a irreversibilidade se dá para o autor e para o réu). Cabe ao julgador considerar a verossimilhança como suficiente para a proteção do direito invocado, para posterior confirmação ou revogação da medida urgente na sentença. Ovídio Baptista ilustra que, em certos casos,

 

 

o julgador é posto ante a alternativa de prover ou perecer o direito que, no momento, apresenta-se apenas provável, ou confortado com a prova de simples verossimilhança. Em tais casos, se o índice de plausibilidade do direito for suficientemente consistente aos olhos do julgador – entre permitir sua irremediável destruição ou tutelá-lo como simples aparência, esta última solução torna-se perfeitamente legítima.

            O que, em tais casos especialíssimos, não se mostrará legítimo será o Estado recusar-se a tutelar o direito verossímil, sujeitando seu titular a percorrer as agruras do procedimento ordinário, para depois, na sentença final, reconhecer a existência apenas teórica de um direito definitivamente destruído pela sua completa inocuidade prática.[lxv]

 

 

Em situações extremas (negativa de cobertura por plano de saúde; autorização liminar de transfusão de sangue; desembaraço aduaneiro de mercadoria perecível; autorização para viagem no exterior com um dos cônjuges, contra a vontade do outro etc.), em vista da irreversibilidade fática da medida urgente, Bedaque reconhece que a noção de cautelaridade da tutela antecipada fica prejudicada, porque os efeitos dessa medida não serão provisórios, além de não existir a tutela final, eliminando-se qualquer relação de instrumentalidade hipotética (referibilidade). Todavia, o problema persiste para a corrente que refuta essa construção, pois a irreversibilidade também não se compatibiliza com a característica da provisoriedade. Fala o jurista em liminar satisfativa autônoma.[lxvi]

 

 

Outra posição aduz que a mera irreversibilidade dos efeitos da antecipação da tutela não coloca termo ao processo, continuando a existir motivo racional para o prosseguimento da demanda. A ação prossegue para a apuração de perdas e danos oriundos da efetivação da tutela de urgência.[lxvii]

 

 

6 A desnecessidade do requerimento da parte

 

 

Doutrina majoritária, que encontra ressonância em julgados do Superior Tribunal de Justiça, argumenta ser indispensável o requerimento da parte para a concessão da medida urgente satisfativa, com suporte no artigo 273, “caput”, do atual CPC. Perfilham deste entendimento Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, para os quais “é vedado ao juiz “conceder ex officio a antecipação da tutela, como decorre do texto expresso do CPC 273 caput. Somente diante de pedido expresso do autor é que pode o juiz conceder a medida”.[lxviii] No mesmo passo, é dito que se condiciona a concessão da tutela antecipada à iniciativa de parte, o que é inerente ao sistema de tutela jurisdicional (arts. 2º e 262 do atual Código) e “corresponde à idéia de que o titular da pretensão insatisfeita é o melhor juiz da conveniência e oportunidade de postular meios para a satisfação (princípio da demanda).[lxix]

 

 

Araken de Assis obtempera que se condiciona à iniciativa da parte a “antecipação dos efeitos do pedido. De modo absoluto, exclui a iniciativa do próprio órgão judiciário, situando o pleito na área reservada, pelo princípio dispositivo (art. 262)”.[lxx] Para Teori Zavascki,

 

 

a antecipação da tutela depende de "requerimento da parte", vale dizer, está sujeita ao princípio dispositivo, não podendo ser concedida de ofício pelo juiz. Considera-se parte, para esse efeito, quem está postulando a tutela definitiva cujos efeitos se busca antecipar, ou seja, o autor, o reconvinte, o oponente, o substituto processual. Nos casos de ação dúplice, em que a tutela definitiva poderá vir a ser conferida ao réu, mesmo sem reconvenção, nada impede que, presentes os requisitos exigidos, venha ele, réu, pedir medida antecipatória em seu favor.[lxxi]

 

 

Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini anotam que ter "havido pedido é pressuposto para poderem ser antecipados os efeitos da sentença", porquanto não existe antecipação dos efeitos da sentença sem provocação da parte".[lxxii]

 

 

Contudo, a expressão “requerimento da parte”, segundo decisões mais recentes do STJ, comporta análise flexibilizada, para não se inviabilizar a concessão da medida urgente por eventuais imperfeições no pedido formulado pelo interessado, devendo o julgador considerar suficiente, para tanto, a causa de pedir que denote a pretensão pelo provimento antecipado.[lxxiii]

 

 

O mesmo STJ, em outra oportunidade, foi explícito ao admitir a concessão da tutela de urgência satisfativa à míngua de requerimento do autor, quebrando o paradigma da inércia da jurisdição, “já flexibilizado nos casos de habeas corpus, de decretação de falência, de início de inventário, de condenação por litigância de má-fé, de fixação de medidas necessárias à efetivação das tutelas específicas”, conforme trecho do voto do Ministro Relator Herman Benjamin.[lxxiv]

 

 

A última visão, mais afeita à efetividade e à instrumentalidade do processo, encontra respaldo nas lições de João Batista Lopes: “Em princípio, como a antecipação está atrelada à ideia de efetividade do processo, seria cogitável a concessão da providência independentemente de pedido do autor [...]”.[lxxv] No mesmo sentido, Cassio Scarpinella Bueno propugna que “é irrecusável a questão sobre ser possível ao juiz conceder a tutela antecipada de ofício, isto é, sem pedido expresso para aquele fim”.[lxxvi] Bedaque também pondera que há situações excepcionais, de risco iminente de perecimento do direito, com provas suficientes da verossimilhança, nas quais a atuação oficiosa do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo. Nesses casos extremos, afastar-se a possibilidade da concessão por iniciativa judicial poderia levar a situações claramente injustas; também não haveria violação ao princípio dispositivo, pois o juiz não deixaria de proferir decisão dentro dos limites iniciais do pedido. [lxxvii]

 

 

O novo Código de Processo Civil (NCPC) retira o fundamento legal da primeira corrente, graças ao tratamento igualitário conferido à tutela cautelar e à antecipação da tutela, haja vista a criação das disposições gerais sobre as tutelas provisórias (arts. 294 a 299 do NCPC) e, mais especificamente, das disposições gerais sobre as tutelas de urgência (arts. 300 a 302 do NCPC), que em nenhum momento colocam o requerimento da parte como óbice à concessão “ex officio” de qualquer tutela urgente.[lxxviii]

 

 

7 Tutela antecipada de ofício e responsabilidade processual

 

 

A possibilidade de se conceder tutelas antecipatórias independentemente do pedido da parte faz emergir a necessidade do estudo da responsabilidade processual, máxime quando indevida a medida.

 

 

No diploma processual civil vigente, há três situações de responsabilidade dos sujeitos do processo, principais ou secundários, por danos causados à parte ou a terceiros, em virtude de conduta processual omissiva ou comissiva: a) artigos 16 a 18: responsabilidade subjetiva proveniente da má-fé, a exigir comprovação de dolo ou culpa do litigante (autor ou réu); b) artigo 20: responsabilidade proveniente da sucumbência na ação, a qual é definida em sentença; c) a responsabilidade advinda de outros prejuízos causados pela efetivação de medidas invasivas na esfera jurídica da parte contrária (v.g., atos executivos, cautelares, de antecipação da tutela). As três responsabilidades podem se cumular ou não, dependendo do caso concreto.[lxxix]

 

 

A primeira situação (arts. 79 a 81 do NCPC) é de responsabilidade subjetiva, a demandar comprovação de dolo ou de culpa da parte a ser penalizada. Nos demais casos é objetiva (arts. 82 e ss. do NCPC; art. 302 do NCPC). Importante mencionar que existe um sistema idêntico de responsabilidade processual para a execução de sentença provisória ou definitiva e na efetivação das tutelas de urgência, porque todas essas medidas são requeridas e executadas por conta e risco do demandante (responsabilidade objetiva).[lxxx]

 

 

O dever de indenizar reclama prova dos seguintes requisitos: conduta, nexo causal e resultado danoso (danos emergentes e lucros cessantes). Em se falando de responsabilidade objetiva, fica dispensada a demonstração do elemento subjetivo (culpa em sentido amplo).[lxxxi] José Frederico Marques apenas menciona o prejuízo por parte do demandado, o requerimento e a execução (efetivação) da medida danosa como requisitos para a responsabilização.[lxxxii]

 

 

São taxativos os casos de responsabilidade processual objetiva alistados no artigo 302 do novo Código de Processo Civil,[lxxxiii] não sendo admissível sua aplicação para além das situações nele previstas, quais sejam: sentença desfavorável àquele beneficiado pela medida, com ou sem resolução de mérito (inciso I); obtida a tutela de urgência “inaudita altera parte”, não se fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias, v.g., indicação do endereço onde o demandado pode ser encontrado, recolhimento das custas judiciais referentes à realização da citação (inciso II); ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal (inciso III); o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do requerente (inciso IV).[lxxxiv]

 

 

Muito embora a propositura da ação não seja um ato ilícito, a sentença desfavorável ao postulante da medida (incisos I e IV), ou a sua extinção nos demais casos (incisos II e III), torna injusta as consequências da tutela urgente para o demandado. Humberto Theodoro Júnior, ao tratar das cautelares, diz que a responsabilidade civil, nesses casos, observa o princípio da sucumbência[lxxxv] (o mesmo será aplicável à tutela antecipada, em razão do caráter de norma geral do artigo 302 do novo texto).

 

 

Extinta a medida, o demandante ficará responsável pelos eventuais danos causados, tenha ou não culpa, até mesmo por questão de equidade (“é mais équo que suporte o dano aquela dentre as partes que provocou, em sua vantagem, a providência a final tornada sem justificativa, do que a outra, que nada fez para sofrer o dano e nada poderia fazer para evita-lo”).[lxxxvi] O direito à indenização deve ser considerado efeito secundário (anexo) ao mencionado artigo 302, não sendo preciso condenar, expressamente, o requerente da medida pelos danos indevidamente sofridos pelo demandado (efeito que se produz “ipso iure”). A apuração dos danos, por liquidação, é realizada nos próprios autos em que se efetivou a medida urgente posteriormente extinta.[lxxxvii]

 

 

Na tutela de urgência concedida “ex officio”, parcela dos juristas lembra que, pela falta de pedido do demandante, não há como responsabilizá-lo por eventuais danos causados ao adversário; é a típica situação na qual se aplica o princípio da responsabilidade civil do Estado (artigo 37, § 6º, da CF), o qual responde objetivamente pelos danos que seus agentes, inclusive da magistratura, causarem no desempenho da função pública (hipótese de erro judiciário – art. 5º, LXXV, da CF). Se houver prova do dolo ou culpa do magistrado, seria possível, sem prejuízo da responsabilidade estatal, a responsabilização pessoal do agente (art. 133 do CPC/1973; art. 143 do novo CPC).[lxxxviii] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em seus comentários, também reconhecem o direito de o prejudicado postular, em face do Estado, indenização por dano processual. Na hipótese de condenação, o poder público voltar-se-ia contra o magistrado, desde que ele tenha agido com dolo (art. 37, § 6º, segunda parte, da CF).[lxxxix]

 

 

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, ao tratarem da cautelar “ex officio” (atual art. 811 do CPC), defendem que o Estado somente poderá ser responsabilizado quando o magistrado, ao agir oficiosamente, tenha atuado com culpa grave e se ausente o risco de dano (requisitos cumulativos); a posterior revogação da tutela urgente pela ausência do direito provável não acarreta qualquer responsabilidade ao Estado.[xc]

 

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou a respeito da responsabilização estatal por ato jurisdicional, afastando-a nesses casos, sob o argumento de preservar a independência do Judiciário; afronta à coisa julgada; evitar o amesquinhamento da atividade soberana do Estado na aplicação da ordem jurídica e na imposição da Justiça ao caso concreto; ausência de norma legal ou constitucional para tanto, que só prevê responsabilidade na situação prevista pelo artigo 5º, LXXV, da Constituição Federal e artigo 630 do Código de Processo Penal.[xci]

 

 

Para outros doutores (debruçados sobre o atual art. 811 do CPC), se o juiz entender que deva decretar diretamente a medida de urgência, os danos daí advindos não podem ser suportados por quem não a pediu, salvo se este perder a ação principal, condenado genericamente a perdas e danos, ou a repor o “status quo”. Aqui a responsabilidade derivará da sentença, não do artigo 811.[xcii]

 

 

Conclui-se que, até o presente momento, há divergência acerca da responsabilidade processual advinda do deferimento e da efetivação das cautelares “ex officio”. Na jurisprudência, a tese da responsabilização do Estado por erro judiciário foi rechaçada, conforme julgados do Supremo Tribunal Federal. Continua em aberto a possibilidade de se responsabilizar o magistrado e a parte beneficiada pela medida. Eventual conclusão pela irresponsabilidade destes chegaria ao cúmulo de se transferir ao demandado todos os riscos e prejuízos da tutela contra ele concedida e efetivada, transparecendo clara injustiça.

 

 

Os ideais de equidade e justiça, bem como o caráter satisfativo da tutela antecipada, estão a impor a responsabilidade processual da parte beneficiada pela providência a final tornada indevida, salvo comprovação inequívoca de que a parte demandada induziu o deferimento da medida posteriormente tornada sem justificativa (culpa da vítima).

 

 

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Sobre o autor
Pedro Pierobon Costa do Prado

Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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