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A prisão em flagrante e o crime habitual:

considerações sobre o conceito alargado do flagrante

23/09/2015 às 13:48
Leia nesta página:

Negar a possibilidade da prisão em flagrante em crime habitual é negar as modalidades de prisão que não configuram a situação de flagrância em sentido estrito.

Sabe-se que o crime habitual é aquele que exige a reiteração de atos reveladores de um modo de vida do agente. A prática de um ato isoladamente não é hábil a consumar o crime. Configurando-se, apenas, com a prática de vários atos, suficientes para caracterizar o tal estilo de vida.

A propósito, sintetizam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:

“O crime habitual é aquele que materializa o modo de vida do infrator, exigindo, para a consumação, a reiteração de condutas, que por sua repetição, caracterizam a ocorrência da infração.” (Távora, Nestor; Alencar, Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. rev. amp. e atual.: Salvador, JusPodivm, 2013, p.  569).

Como exemplo, pode-se citar o curandeirismo (art. 284, do Código Penal), o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica (art. 282, do CP).

A situação de flagrância, por sua vez, é aquela em que o indivíduo é surpreendido praticando um crime e em razão disso pode ser preso ali no momento e local da transgressão, independentemente de prévia autorização judicial, já que o fato ocorre de inopino.

Privilegia-se a defesa da sociedade, buscando-se a cessação imediata da infração que, de pronto, se verifica.

Assim prevê nossa Constituição Federal no art. 5º:

“LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;”

A respeito, dispõe o art. 301, do CPP:

“Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”

Ocorre que, não sem embargo, nosso Código Penal ampliou as hipóteses de flagrante. Autorizando a medida restritiva de liberdade não apenas quando o indivíduo é surpreendido cometendo o crime, quando o delito “queima”, quando presente relação de imediaticidade entre o fato ou evento e seu conhecimento por terceiro.

Cuidou nosso legislador de abranger também a situação do crime manifesto ou evidente: quando o agente acaba de cometê-lo; é perseguido logo após a prática do crime em situação que se possa presumir ser ele o autor; é encontrado logo depois do crime com elementos que também levem àquela presunção. Hipóteses que não coexistem com noção de “ardência” do crime.

Nesse sentido é o texto de lei:

“Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.”

Comentam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:

“É de se observar, entretanto, que o legislador, ao idealizar o cabimento da prisão em flagrante, não se restringiu à acepção restrita da palavra. Neste prisma, conseguiu elastecer aquilo que se entende por flagrante delito, distorcendo a própria essência do instituto, de sorte que teremos uma série de hipóteses disciplinadas em lei, que refogem ao conceito aqui esboçado, distribuídos a seguir entre as espécies de flagrante delito.” (Távora, Nestor; Alencar, Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. rev. amp. e atual.: Salvador, JusPodivm, 2013, p.  569).

Em resumo, atendo-se às modalidades de flagrante delito tratadas no Código de Processo Penal, sem olvidar a existência de outras disciplinadas na legislação especial, idealizadas ela doutrina e jurisprudência, pode-se falar em três espécies: (1) flagrante próprio, propriamente dito, real ou verdadeiro: quando o agente é surpreendido cometendo o crime ou acaba de cometê-lo (art. 302, I e II, do CPP); (2) flagrante impróprio, irreal ou quase-flagrante: quando o agente é perseguido logo após a prática do crime em situação que se possa presumir ser ele o autor (art. 302, III, do CPP); (3) flagrante presumido, quando é encontrado logo depois do crime com elementos que também levem àquela presunção.

Tecendo críticas ao sistema estabelecido, Eugênio Pacelli de Oliveira adverte quanto à inspiração autoritária da ampliação das hipóteses de flagrante:

“Já tivemos oportunidade de dizer, em várias ocasiões, que o Código de Processo Penal, de 1941, tem diretrizes extremamente autoritárias, até mesmo em função de seu paradigma, o Código de Processo Penal italiano, elaborado em pleno regime facista.

No campo das restrições à liberdade individual, então, predomina no Código de 1941 um certo espírito poliacialesco, fundado sempre na presunção da culpabilidade do acusado, quando não na presunção de sua fuga.

Para bem compreender o que sejam as mencionadas presunções (de culpa e de fuga), bastaria lembrar a redação original dos arts. 312 e 596 do CPP, nos quais se previa que, quando a infração imputada ao réu tivesse pena máxima cominada igual ou superior a oito anos (antigo art. 312), impor-se-ia a decretação da prisão preventiva obrigatória (sem necessidade de qualquer fundamentação), bem como a manutenção do réu no cárcere, mesmo após a sua absolvição em primeira instância, se o crime imputado tivesse pena máxima cominada igual ou superior a dez anos (antigo art. 596).

Nesse estado de coisas, a ampliação das situações legais de flagrante delito não chegou a surpreender, embora não deixasse de ser condenável, sobretudo porque, uma vez realizada a prisão em flagrante, o réu não mais podia ser posto em liberdade, salvo quando afiançável a infração (art. 323), ou no caso de existirem evidências de ter agido em quaisquer das hipóteses excludentes da ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade etc.), nos termos do art. 310 do CPP, cuja redação ainda é a mesma. [Anote-se que houve alteração pela Lei 12.403/2011, que, no entanto, não compromete a exposição do autor.]

Assim, se a regra era a prisão, somente admitindo-se a liberdade no curso do processo em situações excepcionais, cumpria então definir as situações em que se poderia impor a prisão em flagrante.” (Oliveira, Eugênio Pacelli  de. Curso de processo penal. 6.ed. rev. atual. e ampl.: Belo Horizonte, DelRey, 2006, p. 422)  

Feitas essas considerações, o que se pergunta é sobre a possibilidade de prisão em flagrante em crime habitual. Desenvolvendo-se duas correntes sobre o tema.

Entre outros, Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, v. IV, p. 89), Tourinho Filho (Comentários ao Código de Processo Penal, v.1. p. 530), Tales Castelo Branco (Da prisão em flagrante, p. 71), Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, p. 609), Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar ( Curso de Direito Processual Penal, p. 596) defendem a impossibilidade do flagrante, aduzindo, em suma, a impossibilidade, no momento da prisão em flagrante, de se comprovar a habitualidade que torna a conduta ilícita.

Tourinho Filho comenta:

“Não concebemos o flagrante no crime habitual. Este ocorre quando a conduta típica se integra com a prática de várias ações que, insuladamente, são indiferentes legais. Ora, quando a polícia efetua a prisão em flagrante, na hipótese de crime habitual, está surpreendendo o agente na prática de um só ato. O auto de prisão vai apenas e tão-somente retratar aquele ato insulado. Não os demais. Aquele ato insulado constitui um indiferente legal.” (Filho, Tourinho. Apud Távora, Nestor; Alencar, Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. rev. ampl. e atual.: Salvador, JusPodivm, 2013, p.  569)

Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, leciona:

“Crimes habituais: não admitem prisão em flagrante. O delito habitual é aquele cuja consumação se dá através da prática de várias condutas, em sequência, de modo a evidenciar um comportamento, um estilo de vida do agente, que é indesejável pela sociedade, motivo pelo qual foi objeto de previsão legal. Uma única ação é irrelevante para o Direito Penal. Somente o conjunto se torna figura típica, o que é fruto da avaliação subjetiva do juiz, dependente das provas colhidas, para haver condenação. Logo, inexiste precisão para determinar ou justificar o momento do flagrante. Diversamente, o crime permanente, com o qual é frequentemente confundido – a ponto de alguns sustentarem que exista crime habitual permanente -, consuma-se em uma única conduta, capaz de determinar o resultado, sendo que este arrasta-se sozinho, sem interferência do agente, que se omite.”(Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9 ed. rev. atual. e ampl.: São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 609)

Encabeçando posição em sentido contrário e admitindo a prisão em flagrante em crime habitual, adverte Julio Fabbrini Mirabete:

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“(...) não é incabível a prisão em flagrante em ilícitos habituais se for possível, no ato, comprovar-se a habitualidade. Não se negaria a situação de flagrância no caso da prisão de responsável por bordel onde se encontram inúmeros casais para fim libidinosos, de pessoa que exerce ilegalmente a medicina quando se encontra atendendo vários pacientes etc”. (Mirabete, Julio Fabbrini. Apud Távora, Nestor; Alencar, Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. rev. ampl. e atual.: Salvador, JusPodivm, 2013, p.  569)

Nesse sentido:

CASA DE PROSTITUIÇÃO. O CARÁTER HABITUAL DO CRIME NÃO IMPEDE A EFETUAÇÃO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, SE DESTE RESULTA QUE O AGENTE TEM LOCAL EM FUNCIONAMENTO PARA O FIM PREVISTO NA LEI. E IRRELEVANTE O LICENCIAMENTO DO HOTEL PARA A CARACTERIZAÇÃO DO DELITO. RECURSO EM HABEAS CORPUS DESPROVIDO. (Rec. em HC, Acórdão nº 46115, STF, Rel. Min. Amaral Santos, 26/09/1969)

'HABEAS - CORPUS'; SUA DENEGAÇÃO. O CRIME HABITUAL NADA TEM DE INCOMPATIVEL COM A PRISÃO EM FLAGRANTE. (Rec. em HC, Acórdão nº 36723, STF – Tribunal Pleno, Rel. Min. Nelson Hungria, 27/05/1959)

Com efeito, pressupondo o crime habitual a reiteração de atos para se falar em conduta típica, sendo um ato isolado, por sua vez, atípico, não há como se falar em situação de flagrância em sentido estrito.

Ora, o agente só pode ser surpreendido praticando um ato, que, por si só, será atípico.

A situação, de fato, não se confunde com o crime permanente, tampouco com o crime continuado.

Quanto ao crime permanente, é verdade que o resultado e, portanto, a consumação se arrastam de per si, conservando-se a situação de flagrância em sentido estrito.

Da mesma forma, no caso da continuidade delitiva, a situação de flagrância propriamente dita verifica-se na medida em que cada ato é um crime autônomo, sendo tratados todos como crime único por ficção jurídica apenas para fins de aplicação da pena, em favor do réu.

No entanto, não se pode olvidar que o nosso Código de Processo Penal, apesar das críticas, adotou um conceito alargado para o flagrante, autorizando a prisão em situações que a rigor também não caracterizam a “ardência da prática do crime”, a relação de imediaticidade entre o fato e seu conhecimento por qualquer do povo, pela autoridade policial ou seus agentes. 

É o caso, por exemplo, quando o agente acaba de cometer o crime; é perseguido logo após a prática do crime em situação que se possa presumir ser ele o autor; é encontrado logo depois do crime com elementos que também levem àquela presunção. Hipóteses plenamente conciliáveis, sim, com a situação do crime habitual.

Nesses termos, absolutamente pertinente afirmar que o crime habitual não admite a prisão em flagrante na modalidade própria em que o agente é surpreendido cometendo o crime, já que o ato isolado é atípico.

Contudo, por coerência, não há razão para se negar a prisão em flagrante nas demais hipóteses que não exigem situação de flagrância no sentido mais estrito da palavra. Repita-se: quando o agente acaba de cometer o crime; é perseguido logo após a prática do crime em situação que se possa presumir ser ele o autor; é encontrado logo depois do crime com elementos que também levem àquela presunção.

Destarte, diante dessas considerações, a despeito das críticas ao nosso sistema que alargou as hipóteses de flagrante nos termos do art. 302, do CPP, é de se concluir pela possibilidade de prisão em flagrante em crime habitual, sob pena de se negarem todas as demais modalidades de prisão em flagrante que também não configuram a situação flagrancial no sentido estrito do termo.


Referências:

Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9 ed. rev. atual. e ampl.: São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009.

Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 6.ed. rev. atual. e ampl.: Belo Horizonte, DelRey, 2006. 

Távora, Nestor; Alencar, Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. rev. amp. e atual.: Salvador, JusPodivm, 2013.

Tourinho Filho, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 4. ed.: São Paulo: Saraiva, 1999.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICTORASSO, Lorena Junqueira Victorasso. A prisão em flagrante e o crime habitual:: considerações sobre o conceito alargado do flagrante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42610. Acesso em: 24 nov. 2024.

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