Usucapião por abandono do lar

21/09/2015 às 21:45
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O presente artigo é uma breve abordagem sobre a previsão legal da modalidade de usucapião introduzida pela Lei nº 12.424 de 16 de junho de 2011, que inseriu a letra A no artigo 1.240 do Código Civil, dando ênfase à aquisição da casa pelo companheiro

Origem Etimológica e Histórica

A palavra USUCAPIÃO tem origem latina, usucapione, significando o modo de adquirir propriedade móvel ou imóvel pela posse pacífica e ininterrupta da coisa durante certo tempo.

A palavra usucapião também está sendo empregada pela doutrina e jurisprudência como prescrição aquisitiva. (Dicionário Aurélio, referência n.2 de usucapião)

Etimologicamente, usucapião é um vocábulo derivado da junção de capio (do verbo capere)  ou capionis  “tomada, ocupação, aquisição”; e usu “pelo uso”.

No direito romano era considerada uma maneira aquisitiva da posse conquistada através do tempo. Segundo o pesquisador Roberto José Stefeni, a usucapião é um instituto legado ao direito brasileiro, pelo direito romano.

Manifestou-se, pela primeira vez, na Lei das XII Tábuas, caracterizada pela posse prolongada por 2 anos, para os imóveis, e 1 ano, para os móveis, e as mulheres, tendo em vista que ‘usu’ fora tido como um dos meios de matrimônio na Roma antiga. Conseguinte, o prazo entre presentes passou para 10 anos para bens imóveis e, entre ausentes, passou para 20 anos.

Com o tempo outros requisitos foram exigidos, por exemplo, justo título e boa-fé para aquisição da propriedade. A usucapião no direito romano era aplicada sob algumas restrições: “A Lei Atínia a proibia para coisas furtadas; as leis Júlia e Pláucia impediam a usucapião de coisas obtidas pela violência, e a Lei Scribônia vedava a usucapião de servidões prediais.” (DINIZ, 2009, p. 153). Entretanto, tinha suas limitações, não podia ser aplicada aos imóveis provinciais, nem os peregrinos se beneficiarem dela.

Com Justiniano fundiram-se as regras da longi temporis praescriptio com as da usucapião, preponderando estas sobre aquelas, mas nem por isso a longi temporis praescriptio deixou de exercer sua influência, por o termo ‘usucapião’ designava a aquisição da propriedade por efeito de um longo exercício (DINIZ, 2009, p. 154).

A teoria defendida pelos juristas medievais era resumida por Domat (DINIZ, 2009, p. 154): “a prescrição é uma maneira de adquirir e de perder o direito de propriedade de uma coisa ou de um direito pelo efeito do tempo”. Esta doutrina monista foi adotada pelo Código Civil francês.

Clóvis Bevilacqua, organizador do Código Civil Brasileiro de 1916, preferiu fazer distinção entre os institutos. Considerava a prescrição como sendo uma medida extintiva e a usucapião, uma medida criadora, apoiado posteriormente por Orozimbo, Nonato e Pugliese.


Conceito e Fundamentação

 No entendimento de Maria Helena Diniz, a usucapião é uma energia criadora e, ao mesmo tempo, extintiva. Extintiva porque resulta na perda da propriedade, por um lado, e criadora porque resulta na aquisição da mesma, por outro, pela posse prolongada. (DINIZ, p.155)

De acordo com Flávio Tartuce, a usucapião:

constitui uma situação de aquisição do domínio, ou mesmo de outro direito real (caso do usufruto ou da servidão), pela posse prolongada. Assim, permite a lei que uma determinada situação de fato alongada por certo intervalo de tempo se transforme em uma situação jurídica (a aquisição originária da propriedade) (TARTUCE, 2013, p. 887).

Tartuce concorda com Diniz ao observar que este modo de aquisição assegura a estabilidade da propriedade através de sua consolidação, tornando fixo um prazo e afastando incertezas a respeito de vícios ou ausências do título de posse. De certa forma, por meio da usucapião, a função utilitária da propriedade é atendida. (TARTUCE, p. 887; DINIZ, p. 157)

Consoante Maria Helena Diniz “a usucapião tem por fundamento a consolidação da propriedade, dando juridicidade a uma situação de fato: a posse unida ao tempo” (DINIZ, p. 157), que, baseada no princípio da função social, é fato objetivo que se transforma em direito.

A usucapião trata-se de um direito atual, independente de negociações e da vontade do antecessor. Depende do reconhecimento legal da justiça que declara a aquisição através de sentença. Tem por finalidade essencial efetivar o princípio da função social da propriedade expresso no art. 5°, inciso XXVIII, da CF/1988.

Observando-se que, para a maioria das espécies, os requisitos gerais são coisa hábil, posse mansa e pacífica com intenção de ser dono e o prazo ininterrupto.

São várias as espécies das quais se apresentam as modalidades de usucapião em nosso ordenamento jurídico: a Ordinária; a Extraordinária: a Especial ou Constitucional.

(…) também chamada de constitucional por ter sido introduzida pela Constituição Federal sob duas formas: usucapião especial rural, também denominada pro labore, e usucapião especial urbana, também conhecida como pró-moradia. (GONÇALVES, 2009, p.240).

Há, ainda, a Coletiva e a modalidade usucapião Indígena, regulada pela Lei n°6.011/73 (Estatuto do Índio).


 Usucapião por abandono do lar

A usucapião por abandono do lar, introduzida pela Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, veio a inserir uma nova modalidade através da letra “A” no artigo 1.240: a usucapião especial urbana por abandono de lar, diferenciando-se de todas as outras até então existentes, por tratar-se do prazo mais curto para usucapir, 2 (dois) anos, para aquisição da propriedade.

Segundo Flávio Tartuce:

A principal novidade é a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com menor prazo previsto, entre todas as modalidades de usucapião, inclusive de bens móveis (o prazo menor era de três anos). (TARTUCE, 2013, p. 897).

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O artigo assim estabelece:

Art.1.240-A do CC/2002. Aquele que exercer , por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1° O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.  


Conceituando abandono do lar

Primeiramente, vamos atribuir algumas definições para o que é ou vem a ser abandono do lar.

É essencial entender que abandono significa total renúncia, cessão, desistência, desprezo pela família, inclusive de seu núcleo de sustento do lar conjugal, a fim de evitar aplicação equivocada desta nova modalidade. O ex-cônjuge ou ex-companheiro deve simplesmente ir de vez para nunca mais voltar, não deixando quaisquer possibilidades de contato ou retorno para o lar.

Adotada a ideia de que abandono seria o mesmo que “deixar de existir” para o cônjuge ou companheiro e para sua família, o jurista Anderson Maia Almeida lista situações nas quais podem ou não ser aplicado o art. 1.240-A, da Lei 12.424/2011: No caso em que o ex-companheiro ou ex-cônjuge deixa o lar conjugal de forma espontânea sem justificar-se, largando sua família à própria sorte, sem assistência material ou moral, ou o que simplesmente some sem deixar notícias abandona a família literalmente.

Em contrapartida, a aplicação desta nova norma não é autorizada, por exemplo, nos casos do cônjuge ou companheiro viajar para fins de estudo, negócios ou trabalho, mesmo por tempo superior a 2 (dois) anos.

Por conseguinte, esta nova usucapienda não poderá ser aplicada nos casos em que o companheiro ou cônjuge que, embora esteja afastado do lar por motivos de separação ou ação de divórcio, continua a prestar assistência moral e material do lar conjugal.

Importante ressaltar que esta lei beneficia, sem distinção, todos os formatos familiares, ou seja, pode fundamentar a aplicação do artigo 1.240-A tanto à família heterossexual formada por homem e mulher, como   à homossexual formada por companheiros do mesmo sexo.

Após a publicação da alteração, vários casos ocorreram pelo Brasil e o Poder Judiciário se manifestou favorável à aplicação do instituto, como podemos visualizar pela reportagem do Rio Grande do Sul:

Ex-marido que saiu de casa perdeu os direitos sob o domicílio.( Publicado por Jornal da Ordem - Rio Grande do Sul (extraído pelo JusBrasil) - 3 anos atrás)

Mulher divorciada obteve direito sob imóvel registrado em seu nome e do ex-marido, que vive em local incerto e não informado. A decisão do juiz Geraldo Claret de Arantes, em cooperação na 3ª Vara de Família de Belo Horizonte (MG), tomou como base a Lei 12424/2011, que regulamenta o programa Minha Casa Minha Vida. Além disso, inseriu no Código Civil a previsão daquilo que se convencionou chamar de "usucapião familiar", "usucapião conjugal" ou, ainda, "usucapião pró-moradia". No pedido liminar à Justiça, a mulher comprovou ser portadora de doença grave, necessitando imediatamente do pleno domínio da casa onde vive para resolver questões pendentes. A não localização do ex-marido, comprovada nos autos, impedia qualquer negociação que envolvesse o imóvel.

Com a decisão, a autora está livre para dar o destino que achar conveniente ao imóvel, que estava registrado em nome do ex-casal. Esse novo dispositivo inserido no Código Civil prevê "a declaração de domínio pleno de imóvel ao cônjuge que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. Em seu despacho, o juiz determinou a expedição de mandado de averbação, que deverá ser encaminhado ao cartório de registro de imóveis, para que seja modificado o registro do imóvel.

Na jurisprudência:

TJSP. Usucapião familiar- prescrição aquisitiva. Pedido fundado no art. 1240-A, do Código Civil, introduzido pela Lei Federal 12424/2011. Contagem do prazo de dois anos para aquisição da propriedade por usucapião, a partir da entrada em vigor da referida lei. Ajuizamento da demanda antes do decurso do lapso necessário. Prevalência da segurança jurídica na hipótese. Extinção do processo. Decisão mantida. Recurso não provido. (DOC. LEGJUR 140.9045.7019.2600)


Conclusão

Considerando que as relações humanas podem não ser “ad eternum”, ou seja, podem não durar para sempre, é elementar o entendimento desta nova forma de aplicação da usucapião legalmente estabelecida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Seu principal requisito, o menor dos prazos da modalidade, responde àquelas situações que se arrastavam por tempo indeterminado as quais prejudicavam a família abandonada, que, além de arcar com o sustento da prole, conviviam com o abandono do companheiro e ficavam desprovidas da alternativa de vender o imóvel ou usufruir do mesmo de forma plena devido aos impedimentos legais.

É com sentido de solucionar interesses comuns gerados pelo imediatismo dos dias atuais que este novo instituto fundamenta-se com a exclusiva finalidade de produzir soluções céleres para situações indefinidas que, na maioria das vezes, petrificavam-se ao longo do tempo.  


Referências Bibliográficas:

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil.São Paulo: Método, 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 5: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2009.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009.

 SILVA, Janaina de Alvarenga “Considerações acerca da usucapião no ordenamento jurídico brasileiro” . Disponível em: www.jus.com.br/artigos/7393/considerações-acerca-da-usucapiao-no-ordenamento-juridico-brasileiro

Stefeni, Roberto José  “Da Usucapião”. Disponível em: www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=7571

ALMEIDA, Anderson Maia “Lar conjugal: o abandono e o direito a usucapião especial” . Disponível em: www.andersonmaiaalmeida.jusbrasil.com.br/atigos/111746377/lar-conjugal-0-abandono-e-o-direito-a-usucapião-especal?ref=topic_feed

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Sobre a autora
Daniela Galvão Araújo

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Euripedes de Marília (2002), Pós-graduação em Direito Processual: Civil, Penal e Trabalho e Mestrado em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Euripedes de Marília (2005). Atualmente é professora e coordenadora do curso de Direito da UNILAGO (União das Faculdades dos Grandes Lagos). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito, Teoria do Estado, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Constitucional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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