Entre as mudanças introduzidas no sistema previdenciário brasileiro pela EC n.º 20, das mais importantes é a determinação, contida no caput do artigo 40 da CF, de manter-se um regime de caráter contributivo para os servidores públicos titulares de cargos efetivos, preservando-se o equilíbrio financeiro e atuarial. Seguem-se diversas outras alterações que visam, sobretudo, ao estabelecimento de condições menos favoráveis que as do regime anterior, para obtenção do benefício da aposentadoria.
Anteriormente à EC n.º 20, o servidor público não era submetido ao regime contributivo, de forma que apenas era importante a comprovação do tempo de serviço prestado, não interessando se, de fato, houvera a efetiva dedução e o recolhimento das contribuições previdenciárias. O Erário então arcava diretamente com o custo das aposentadorias e pensões concedidas. Nesse pretérito sistema, as eventuais alíquotas aplicadas sobre os vencimentos dos segurados eram quase simbólicas, e destinavam-se ao custeio de assistência médica.
Esse é o cerne da mudança constitucional em pauta.
Entretanto, a partir destas modificações, diversas interpretações forçadas e equivocadas foram construídas, assim como várias normas jurídicas de hierarquia inferior à EC n.º20 foram editadas, sempre comprometendo a harmonia do texto original da CF, demandando assim um grande empenho exegético.
Esse reduzido texto pretende, a partir do esclarecimento de alguns conceitos jurídicos pertinentes à matéria, fixar distinções essenciais a sua compreensão e dissipar alguns equívocos normalmente cometidos, mormente no âmbito municipal, em que a carência de conhecimento técnico é flagrante.
Consolida-se a tendência de a grande maioria dos municípios pernambucanos instituírem, aparentemente à revelia do inciso V do artigo 1.º da lei federal n.º 9.717/98, in fine, fundo previdenciário próprio a ser gerido por um consórcio de instituições financeiras. A solução encontrada pela AMUPE é a única que simultaneamente satisfaz as exigências da Ciência Atuária e da Dogmática Jurídica, como veremos.
É fato, demonstrado pela Atuária, que sistemas previdenciários muito pequenos, com baixo número de segurados, não se sustentam, sendo insuficientes para capitalização e conseqüente cobertura dos riscos. Destarte, frente à vedação de formação de consórcios e ao pequeno porte de vários municípios, cogitou-se de se vincularem os servidores efetivos municipais ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), solução esta claramente inconstitucional, mas defendida pelo Ministério da Previdência.
Não se compreende o princípio da hierarquia das normas jurídicas, viga mestra do Direito Moderno, sob o prisma único da literalidade. Assim, ainda que uma lei inferior não contenha dispositivo que expressamente contrarie mandamento constitucional, pode a mesma, ao não se harmonizar com a sistemática imposta pela Lei Maior, ser declarada inconstitucional. Conquanto a competência para essa declaração seja exclusivamente do STF, os Tribunais inferiores e os juizes monocráticos podem e devem, incidentalmente, negar eficácia jurídica a qualquer norma ou ato que se revista desta eiva. Outrossim os Tribunais de Contas, ex vi da súmula n.º 347 do próprio STF :
"O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público"
Uma simples leitura da seção III (DA PREVIDÊNCIA SOCIAL) inserta no capítulo II (DA SEGURIDADE SOCIAL) do título VIII (DA ORDEM SOCIAL) da Carta Magna, é suficiente para percepção de que as normas ali dispostas destinam-se à regulação da previdência social dos que mantêm vínculo empregatício de natureza privada, como também de outros particulares, a exemplo de autônomos e prestadores de serviços. Em contraposição, é o artigo 40 do mesmo Diploma que versa sobre aposentadoria do servidor público efetivo, dando a este, por motivo de ordem pública, um tratamento excepcional.
Termos e expressões como: "proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário" (inc. III do artigo 201); "empregado", "salário", "empresa", "trabalhador", "folha de salários", etc., permeiam todo o capítulo da Seguridade Social, dando conta de serem normas próprias dos que se regem pela CLT, com a qual o Regime Geral se coaduna perfeitamente. Aliás, diz-se "Regime Geral", por se tratar o mesmo de uma unificação dos diversos Institutos de Previdência e Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) que existiram nos primórdios da Previdência Social. Atualmente todos os benefícios foram centralizados numa autarquia federal, o INSS.
Entretanto, como já se viu, o RGPS não é o único existente. Ao lado dele, a CF prevê o regime próprio dos servidores efetivos e seu Complementar (art. 40, §15), como também, o regime de previdência privada, o qual complementa o RGPS e é normatizado no artigo 202 da Lei Maior, num perfeito paralelismo entre os que se regem pela CLT e os estatutários efetivos. Dos quatro regimes, o de previdência oficial complementar não se encontra implementado, haja vista a lacuna da lei complementar que o regulamentará, como preceituado no artigo 40, §15.
As normas do RGPS apenas se compatibilizam com os celetistas e outros particulares autônomos; e não poderia ser diferente, uma vez que os servidores efetivos regem-se por Estatutos Próprios e por preceitos constitucionais diferenciados. Se não, vejamos:
1.o RGPS prevê, de acordo com a lei federal 8.213/91, em seus artigos 57 e 58, a concessão de aposentadoria especial "ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei."; tal benefício apenas se aplica aos celetistas que, em decorrência das citadas condições, percebem gratificação de periculosidade, insalubridade ou penosidade, não atingindo os efetivos, uma vez que se faz necessário a edição de lei complementar que regulamente a hipótese, nos termos do §4.º do artigo 40 da CF; a única exceção que conhecemos é a de aposentadoria de policial civil, que é prevista em lei complementar específica;
2.o benefício de auxílio-doença, descrito nos artigos 59 a 63 da lei em comento, sucedâneo que é da licença para tratamento de saúde, prevista na maioria dos estatutos funcionais públicos, com esta não se compatibiliza; primeiro, porque se trata de uma suspensão do contrato de trabalho, não sendo esse tempo computado para efeito de aposentadoria; depois, porque eqüivale a 91% do salário de benefício, enquanto na licença referida o servidor tem direito a sua remuneração integral;
3.a aposentadoria compulsória, imposta ao servidor público efetivo ao completar setenta anos, conforme inciso II do §1.º do artigo 40, não existe realmente para o participante do RGPS. Há apenas uma questionável previsão infraconstitucional (art. 51 da lei 8.213/91) de que o empregado venha a aposentar-se aos setenta anos, mas se cumprido o período de carência e houver requerimento da empresa, configurando-se assim uma compulsoriedade mitigada e parcial, diferentemente do que ocorre com o servidor efetivo.
4.a revisão dos proventos de aposentadorias e das pensões, na mesma data e com o mesmo índice com que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, está longe de ser aplicável aos integrantes do RGPS, cujos benefícios são reajustados com base em percentual definido pelo INSS em regulamento;
5.o sistema de pagamento de carência (art.24-27 da lei 8.213/91) para obtenção do benefício previdenciário é inexistente na previdência do servidor efetivo;
6.a fixação de um teto para o benefício aposentatório, nos termos do artigo 33 da lei 8.213/91, assim como a forma de cálculo do benefício com base na média aritmética dos últimos trinta e seis salários de contribuição, é absolutamente inconciliável o §3.º do artigo 40 da CF, que preconiza a aposentadoria correspondente à totalidade da remuneração do cargo efetivo;
É bem verdade que no tocante à fixação do teto, e apenas neste tópico, a CF autoriza a legislação de cada ente federado a fixar o limite máximo estabelecido para o RGPS (Art. 40 §14). Como, porém, tal fixação não é obrigatória, continua a peculiaridade do regime, conforme a política adotada por cada gestão, após a edição da necessária lei complementar federal.
Essas são apenas algumas das incompatibilidades que tornam o RGPS inaplicável ao detentor de cargo público efetivo, como, de resto, também ao titular de cargo em comissão, visto ser este também regido por estatuto próprio. Ocorre, porém, que para estes últimos servidores há previsão expressa de vinculação ao RGPS (§13, art. 40 da CF), devendo os diversos estatutos adaptarem-se, por conta do princípio hierárquico. Essa é uma exceção que apenas confirma a regra para os efetivos e que é fortemente questionada, ante possível lesão ao princípio federativo e à autonomia municipal, garantias outorgadas pela Constituição.
Para os servidores efetivos, no entanto, não há qualquer indicação normativa, quer em nível constitucional, quer na legislação inferior, de que devam contribuir com o RGPS. Muito ao reverso, como visto acima.
Após elencar exaustivamente, em seu artigo 11, os segurados obrigatórios do RGPS, a lei 8.213/91, com modificação aditada pela lei 9.876/99, tímida e vacilantemente prescreve que, in verbis:
Art. 12. O servidor civil ocupante de cargo efetivo ou o militar da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como o das respectivas autarquias e fundações, são excluídos do Regime Geral de Previdência Social consubstanciado nesta Lei, desde que amparado por regime próprio de previdência social."(sic)
Pode-se daí concluir que devam os servidores efetivos vincularem-se ao RGPS? De forma alguma. Primeiro, por todas as razões acima enumeradas. Mas, ainda que houvesse mandamento expresso neste sentido, imperativo seria reconhecer sua inaplicabilidade, frente à existência de um regime próprio, com regras bem definidas, alçado ao nível de norma constitucional; ou seja, o servidor efetivo está sempre vinculado a regime próprio, pois este advém diretamente da CF. Ademais, a norma em apreço apenas quer se harmonizar com o ordenamento jurídico como um todo, principalmente com o §5.º do artigo 201 da CF, segundo o qual "É vedada a filiação ao regime geral de previdência social na qualidade de segurado facultativo, de pessoa participante de regime próprio de previdência.".
Assim, a única interpretação razoável que vislumbramos para o citado dispositivo é a de que ele, ao excluir o servidor efetivo do Regime Geral, quer impedir até mesmo sua inclusão como segurado facultativo, confirmando, desta forma, o preceptivo constitucional acima transcrito.
Como se viu, o regime próprio dos servidores públicos efetivos já se encontra previamente desenhado no Corpo Constitucional, de forma que, ao pretender vinculá-los ao RGPS, a legislação infraconstitucional desvirtua a ordem jurídica e agride o sistema. Isto fica ainda melhor caracterizado na leitura das seguintes expressões:
1."Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo..."(Art. 40, §1.º)
2."...à conta do regime de previdência previsto neste artigo."(Art. 40, §6.º)
O artigo 40 da CF prevê então um regime de previdência bem definido, perfeito e acabado, independentemente de regulamentação legal. Já o artigo 201, também da CF, apenas informa os fundamentos da previdência social, havendo necessidade de lei para sua plena eficácia.
Possivelmente, a exegese que se deu ao citado artigo 12 da lei 8.213/91 deveu-se à confusão comum entre regime previdenciário próprio e fundo previdenciário. Conquanto os servidores tenham sempre o primeiro, nem sempre os municípios possuem o segundo. A formação de um fundo previdenciário, porém, seja sob a forma de pessoa jurídica de direito público (autarquia ou fundação pública), seja sob a forma de um fundo especial, tal qual previsto pela lei 4.320/64, é altamente desejável, haja vista o necessário alcance dos objetivos de capitalização e equilíbrio financeiro e atuarial. Esses objetivos, embora com muito maior dificuldade, poderiam eventualmente ser atingidos ainda que na ausência de um fundo próprio, mas, neste caso, a fim de não vir a descaracterizar-se a natureza contributiva do regime, as contribuições auferidas devem ser mantidas em conta específica, vinculada exclusivamente à cobertura dos eventos.
De nenhuma maneira se justifica a confusão que parece haver, quando nem mesmo a defeituosa lei 9.717/98 a admite. Nesta lei se percebe claramente o estabelecimento de critérios¾ todos inconstitucionais, como se demonstrará¾ para a organização de regimes próprios (Art. 1.º), ao lado de outros critérios para a constituição de fundos (Art. 6.º), os quais são facultativos, não apenas na sua textual dicção, mas, sobretudo no dizer da Constituição Federal, in verbis:
Art.249. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir fundos integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desses fundos.
Disto se dessume que: os fundos são facultativos; destinam-se apenas ao pagamento de aposentadoria e pensões; têm a natureza que a lei determinar e; não fica afastada, de forma nenhuma, a obrigação de o Erário custear o benefício previdenciário, como sempre foi, numa eventual insuficiência do fundo.
O regime oficial de previdência complementar, sempre facultativo, bem se aplicará não apenas para efeito de complementação de proventos em relação ao teto de aposentadoria que porventura venha a ser fixado para servidores efetivos, mas, principalmente, para as hipóteses em que o servidor ocupa um cargo efetivo cumulativamente com um temporário e deseja garantir a inatividade com os rendimentos deste último, mais vantajoso. É o caso do vereador que também é servidor público municipal vinculado a regime próprio.
O Poder Legislativo Federal está autorizado pelo Constituinte a editar lei complementar contendo normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, consoante o disposto no artigo 40,§15 da CF. O mesmo não ocorre relativamente ao regime próprio dos servidores efetivos.
Assim, pode-se comprovar que a lei 9.717/98 invade a seara da autonomia municipal, padecendo de insanável inconstitucionalidade. Debalde, argumentam alguns que é competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre previdência social (art. 24, XII) e neste âmbito caberia à União editar normas gerais. Acontece que aposentadoria de servidor público efetivo é matéria de direito administrativo, não havendo disciplina mais intimamente relacionada com a autonomia municipal.
Por outro lado, há muitos pontos de contato entre o direito administrativo e o direito previdenciário. Tanto, que Russomano já disse que "o Direito da Previdência Social nasceu do Direito Administrativo e caminha, durante longos anos, ao lado do Direito do Trabalho" (apud Martins, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 12ª edição. p 50).
A aposentadoria do servidor público efetivo é um ponto, porém, que se conserva na órbita do direito administrativo. Sabiamente, o Constituinte não usou o termo previdência social, quando versou sobre o regime próprio do servidor público efetivo. Em todo o artigo 40, com seus 16 parágrafos, o Constituinte apenas se refere a regime de previdência, numa coerência digna de aplauso. A propósito, trata-se de séria impropriedade nominar o regime próprio do servidor público de RPPS (Regime Próprio de Previdência Social), sigla cunhada pela legislação infraconstitucional. Na verdade, o servidor público efetivo possui regime de previdência, mas não de previdência social.
Previdência Social propriamente dita é apenas a direcionada à Sociedade como um todo, sendo, por isto mesmo, regulada no título da Constituição que trata da Ordem Social. Sobre esta previdência social, e seu regime geral, pode a União realmente legislar, nos termos do artigo 24, XII, da CF, ficando ainda adstrita aos princípios que informam a Seguridade Social, como o solidarismo, a universalidade da cobertura e do atendimento, a uniformidade e equivalência dos benefícios às populações urbanas e rurais, a seletividade e distributividade na prestação de benefícios e serviços, etc. (art. 194 da CF)
De outra maneira não poderia ser, pois não se pode conceber que o ato administrativo de concessão de aposentadoria de um servidor público municipal seja outorgado ao presidente de uma autarquia federal. É o Chefe do Poder Executivo Municipal que possui competência para tanto, podendo, inclusive, anular, revogar e cassar o ato concessivo, se amparado pelas hipóteses pertinentes.
Fica ainda tal ato sujeito à apreciação de sua legalidade, para fins de registro, por parte dos Tribunais de Contas (art. 71, III, da CF). A manter-se a esdrúxula possibilidade de vinculação de servidor efetivo ao RGPS, esvazia-se tão importante atribuição constitucional dos Tribunais de Contas Estaduais, o que é inadmissível.
Outro equívoco comum é imaginar que o ente deva vincular-se apenas a um ou a outro regime. Não é o ente que possui, ou não, regime próprio, mas o servidor de determinada categoria. Desta maneira, os municípios devem, a fim de manter a coerência do sistema, remeter os servidores celetista para o RGPS, enquanto os estatutários, exceção feita aos comissionados, dependem do Tesouro ou do fundo próprio, se existente, para obtenção dos benefícios. Também os temporariamente contratados devem ficar no RGPS, celetistas que devem ser, dada a sua natureza transitória.
Como se sabe, a partir da promulgação da EC n.º 19, com a supressão do Regime Jurídico Único, tornou-se possível a contratação de servidores celetistas para o desempenho de funções subalternas ou de apoio. Evidentemente, os cargos integrantes da estrutura administrativa do ente hão de ser estatutários.
O município pode e deve, de acordo com a composição de seu quadro funcional, vincular-se ao RGPS, ao lado da manutenção do regime próprio constitucional de previdência. Outrossim, um mesmo servidor que tenha dois vínculos, um efetivo e um celetista público, acumuláveis na forma da Constituição, ou um efetivo com um celetista privado, estará simultaneamente atrelado a, pelo menos, dois regimes previdenciários distintos. O que é realmente incompreensível é a concepção de regimes híbridos, em que se misturam normas de naturezas antagônicas, ao arrepio da Constituição.
Ante as razões aduzidas, concluí-se que, na formação de consórcio pelos municípios pernambucanos para administração de seus fundos previdenciários próprios, não há qualquer ofensa à legislação. Mais ainda, quando se sabe estarem amparados por medida liminar em sede de agravo de instrumento.