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Usucapião de bens imóveis:

uma análise à luz da função social da propriedade e da posse

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22/10/2015 às 10:11
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Ao converter a posse exercida nos moldes legais (que, em última análise, dá aproveitamento ao bem imóvel) em direito de propriedade, o instituto da usucapião, privilegia, a um só tempo, a função social da posse e a função social da propriedade em sentido amplo.

INTRODUÇÃO

A usucapião é um modo de aquisição originária da propriedade móvel e imóvel que tem por fundamento a posse.

Embora caracterize uma situação de fato, a posse possui relevância social, sendo reconhecida pelo ordenamento jurídico, assim como o direito de propriedade.

Conforme veremos, o reconhecimento de que tanto a posse como o direito de propriedade possuem uma função social é uma conquista histórica que, baseada em teorias de cunho sociológico, tornou-se princípio jurídico consagrado pelos Estados modernos.

Em primeiro momento, faremos o estudo do direito de propriedade, de sua evolução histórica e função social.

Na sequência, abordaremos o tema da função social da posse e na conversão desta em direito de propriedade, mediante o instituto da usucapião, que é rico em espécies no direito brasileiro.


1. CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

O direito de propriedade é objeto de investigação de um ramo específico do direito civil, o chamado direito das coisas (ou direitos reais), que estuda a relação entre os seres humanos e a res (coisa), entendida esta como tudo o que existe a par do ser humano (GONÇALVES, 2014, p. 26) e que desperta seu interesse, em especial econômico (bens), conceito que, embora egocêntrico, é condizente com o espírito abolicionista e aceito pela comunidade jurídica.

Em sua obra, Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 33) ensina que:

Segundo a concepção clássica, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No polo passivo incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster-se de qualquer atitude que possa turbar o direito do titular. No instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado.

Consideram-se elementos essenciais dos direitos reais: (a) o sujeito ativo (dono); (b) a coisa; e (c) o poder exercido pelo dono sobre a coisa (domínio), que se manifesta em face dos demais (caráter erga omnes), resultando nas faculdades de perseguição e retomada (direito de seqüela).

Os direitos reais são regidos pelos princípios da tipicidade (previsão em lei), da publicidade ou visibilidade (necessidade de registro no Cartório de Registro de Imóveis, em regra, para aquisição de direitos reais sobre imóveis (Código Civil de 2002[1] (CC/2002), art. 1.227), e de tradição (entrega), para aquisição de bens móveis (Código Civil de 2002, arts. 1.226 e 1.267)), da perpetuidade (permanência da titularidade do domínio, salvo hipóteses legais), dentre outros (GONÇALVES, 2014, p. 37/45).

O direito de propriedade consta do rol de direitos reais previstos no art. 1225 do CC de 2002, e é o mais completo dos direitos reais; para Gonçalves (2014, p. 254), “matriz dos direitos reais e o núcleo do direito das coisas”, dando ao seu titular “a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1228, do CC).

Diz-se que o indivíduo detém a propriedade plena, a qual é legalmente presumida (art. 1.231, do CC/2002), quando dispõe de todas as faculdades elencadas no dispositivo legal.

Em sentido contrário, quando alguma dessas faculdades é atribuída a terceiro, como, por exemplo, o direito de usar e gozar reconhecido ao usufrutuário, a propriedade é tida por limitada (GONÇALVES, 2014, p. 256).

1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Posto que as relações jurídicas se modifiquem conforme a época histórica, com os avanços e retrocessos das relações políticas e sociais, os contornos jurídicos do direito de propriedade têm oscilado no tempo, baseando-se, nos primeiros tempos, ora na hereditariedade e no poder político, ora na concepção individualista (e egoísta) da liberdade, da qual resultava a sacralização e abuso dos poderes de dono, caracterizados pelo absolutismo, imutabilidade, ilimitabilidade, perpetuidade etc.

A atuação do Estado, até o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), era pautada no modelo liberalista de “Estado mínimo”, baseado no absenteísmo e segundo o qual ao governo não era dado interferir nos negócios dos particulares, apenas zelar pela manutenção da ordem, da segurança e da paz (SUNDFELD, 2009, p. 54),

Somente com a crise econômica do primeiro pós-guerra, o Estado passou a assumir um papel ativo, interferindo na ordem econômica, na propriedade privada, e garantindo aos cidadãos os direitos sociais mínimos.

As primeiras Cartas Constitucionais a dedicarem parte de seus textos à ordem social foram a Constituição alemã de Weimar (1919) e a do México (1917), denotando a preocupação estatal com o desenvolvimento e a justiça social.

Nos tempos atuais, como legado histórico, restou consagrada pela maioria dos Estados, dentre os quais a República Federativa do Brasil, a supremacia do interesse público sobre o privado, não havendo espaço, ao menos no plano jurídico-teórico, para abusos de direitos de caráter individualista.

Desse modo, na medida em que os Estados assumiram em suas cartas fundamentais o compromisso de zelar e prover o bem-estar coletivo, a propriedade privada passou a ser objeto de grande regulação, a ponto de ser vinculada ao exercício de uma função social.


2. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

As primeiras referências à função social da propriedade ocorreram na Constituição mexicana de 1917 e na Constituição alemã de Weimar (1919) que, em seu art. 153, assentava que o uso da propriedade deveria estar a serviço do bem comum, de modo que a propriedade, além de direito, obrigava.

O espírito de tal assertiva é explicado por Rochelle Jelinek (2006, p. 22), que aduz:

[...] a expressão função social passa por uma idéia operacional, impondo ao proprietário não somente condutas negativas (abstenção, como não causar contaminação do solo), mas também positivas (obrigações de fazer, como de parcelar gleba de sua propriedade).

A despeito de ser um direito fundamental (art. 5.º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988 (CF)), o direito de propriedade (e as faculdades que lhe são inerentes) só terá proteção individual garantida pelo Estado, se respeitar a sua função social (art. 5.º, inciso, XXIII, da CF).

Conforme acentuado por José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 738/739):

A noção de função social traduz conceito jurídico aberto (ou indeterminado). A Constituição, no entanto, consignou certos parâmetros para dar alguma objetividade à citada noção. Para tanto, distinguiu a função social da propriedade urbana da propriedade rural, fixando parâmetros específicos para cada uma.

Nos termos do art. 182, §2º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, que “aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” (art. 40, da Lei nº. 10.257/01 – Estatuto da Cidade).

Já a função social da propriedade rural, nos termos do art. 186 da Constituição de 1988, é exercida quando atendidos, segundo os parâmetros legais, os seguintes requisitos: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Interessante observar que, sob o aspecto da realização prática, a função social da propriedade, tanto urbana quanto rural, possui um conteúdo estrito, representado pelo atendimento dos requisitos básico delineados nos supramencionados arts. 182, §2º, e 186 da Constituição de 1988, e outro amplo, consistente na submissão da propriedade privada a outros institutos de interesse público (servidão administrativa, tombamento, usucapião etc.).

Tal distinção é útil para identificar o motivo pelo qual um imóvel urbano que atenda a todas as exigências previstas no plano diretor municipal e, portanto, cumpra a função social em sentido estrito, discriminada no arts. 182, §2º, possa ser objeto de desapropriação pelo poder público.

O conteúdo amplo da função social da propriedade resulta de sua natureza de princípio, constitucional (CF, art. 5.º, inciso XXIII) e legal (CC/2002, art. 1228, §1º, e art. 2035), e de cláusula geral, ou seja, de conceito a se determinar com base nas especificidades dos casos concretos (TARTUCE, 2014, p. 62).

Não se olvide que o conteúdo da função social da propriedade, tanto no aspecto amplo como no estrito, tem por fundamento o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, um dos pilares de nosso sistema jurídico-administrativo.

O descumprimento da função social da propriedade urbana pode resultar na aplicação de penalidades pelo poder público, tais como: (a) parcelamento ou edificação compulsórios; (b) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; (c) desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais (art. 182, §4º da CF); e (d) expropriação pelo cultivo ilegal de plantas psicotrópicas ou exploração de trabalho escravo (art. 243, da CF).

Já o não exercício da função social da propriedade rural pode ensejar: (a) desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária (art. 184, da CF), ressalvado o disposto no art. 185 da CF; e (b) expropriação, pelo cultivo ilegal de plantas psicotrópicas ou exploração de trabalho escravo (art. 243, da CF).


3. A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E A CONVOLAÇÃO DESTA EM DIREITO DE PROPRIEDADE: A USUCAPIÃO

A posse é uma situação de fato existente entre pessoa e coisa, a qual o ordenamento jurídico dispensa proteção.

Tal proteção, segundo Silvio de Salvo Venosa (2013, p. 27), resulta da importância atribuída pela sociedade aos estados de aparência, sem a qual teríamos que investigar a realidade jurídica atrelada aos mais simples fatos cotidianos:

Se a sociedade não pode prescindir da aparência para sua sobrevivência, o Direito não pode se furtar de proteger estados de aparência, sob determinadas condições, porque se busca, em síntese, a adequação social. Sempre que o estado de aparência for juridicamente relevante, existirão normas ou princípios gerais de direito a resguardá-lo. Não é, no entanto, a aparência superficial que deve ser protegida, mas aquela exteriorizada com relevância social e consequentemente jurídica.

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O conceito de possuidor nos é dado pelo art.196 do Código Civil, segundo o qual possuidor “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Segundo a teoria subjetiva de Friedrich Von Savigny, a posse seria formada por dois elementos, a saber: a apreensão física da coisa e a intenção (animus) de possuí-la.

Já para a teoria objetiva desenvolvida por Rudolf Von Ihering, a posse se caracterizava, pura e simplesmente, pela apreensão física da coisa, com sustentação da aparência de dono.

Sem olvidar da importância das teorias objetivista e subjetivista da posse, que, foram parcialmente adotadas pelo legislador brasileiro (aquela, no art. 1.196 do CC de 2002; esta, na qualificação da posse, para fins de usucapião), as conjecturas da sociedade atual atribuem relevância às teorias sociológicas da posse, que dão ênfase à sua função social.

Para os idealizadores das teorias sociológicas, dentre os quais Silvio Perozzi, Raymond Saleilles e Antonio Hernandez Gil, o conceito de posse não é restrito à conduta de dono, sequer à detenção física do bem ou a vontade de tê-lo como seu, mas se traduz na fruição de um bem, seu aproveitamento econômico, com o reconhecimento da coletividade e respeito à sua função social.

Diante de um panorama global em que as necessidades humanas se multiplicam e os recursos naturais se esvaem, incumbe à coletividade, na figura do Estado, não apenas impor condicionamentos à utilização dos bens pelos particulares, mas também prestigiar a conduta daqueles que, não sendo proprietários, dão aos bens destinação útil, provendo o próprio sustento, em geral, pelo trabalho.

Conforme aduzido por Odilon Carpes Moraes Filho (p. 19):

Isto se desdobra no direito inerente da pessoa humana de ter um patrimônio mínimo, justificando a proteção possessória a quem cumpre a função precípua da terra: gerar riqueza. Admitir a função social da posse é admitir direito subjetivo ao não-proprietário de, através da terra, obter uma vida digna, assegurando um patrimônio mínimo, ou seja, uma existência autônoma. Ao contrário, negar a função social da posse, é continuar acreditando que apenas os proprietários têm direito subjetivo sobre a terra, e, de certa forma, respaldar as doutrinas tradicionais clássicas que entendem, na função social, apenas seu caráter negativo.

Embora não seja um princípio expresso na Constituição da República, a função social da posse pode ser extraída de alguns de seus dispositivos, dentre os quais, o que prevê a proteção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e o direito fundamental à moradia (art. 6º, caput).

No Código Civil de 2002, a função social da posse tem raiz no princípio da socialidade, que procura superar o caráter egoísta e individualista da codificação de 1916 (TARTUCE, 2014, p. 61) e da valorização da posse-trabalho, evidenciada nos arts. 1.238, parágrafo único e 1.242, parágrafo único (que tratam da redução dos prazos para a usucapião extraordinária e ordinária relativa a bens imóveis) e art. 1.228, §§ 4º e 5º (desapropriação judicial por posse-trabalho), todos do Código Civil de 2002 (TARTUCE, 2014, p. 641/642).

Não é equívoco, portanto, afirmar que o Código Civil de 2002 não adota, pura e simplesmente, as teses de Ihering e Savigny, mas está pautado na tese da posse-social, concebida por Perozzi, Saleilles e Gil (TARTUCE, 2014, p. 642).

A proteção jurídica da posse tem como ápice a aquisição originária do direito de propriedade pelo possuidor, a chamada usucapião ou prescrição aquisitiva, que pode recair sobre bens móveis ou imóveis.

Cabe consignar que nem todo tipo de posse induz usucapião, mas somente a posse ad usucapionem, qualificada, não só pelo decurso do tempo, mas por outros requisitos exigidos em lei, tais como a justiça (posse justa), mansidão, caráter pacífico etc.

O ordenamento jurídico brasileiro contempla diversas espécies de usucapião de bens imóveis, sintetizadas no quadro abaixo.

Quadro 1: Espécies de usucapião, previsão legal e requisitos

Espécie

Previsão legal

Requisitos

Usucapião extraordinária

Código Civil, art. 1.238, caput

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono de imóvel, pelo prazo de quinze anos.

Usucapião extraordinária com moradia ou produção

Código Civil, art. 1.238, parágrafo único

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono de imóvel pelo prazo de dez anos, desde que o possuidor nele tenha estabelecido a sua moradia habitual, ou realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

Usucapião especial rural (pro labore)

Constituição, art. 191; Código Civil, art. 1.239

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono de área rural, não superior a cinqüenta hectares, pelo prazo de cinco anos, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e que torne o imóvel possuído produtivo por seu trabalho ou de sua família e que nele estabeleça sua moradia.

Usucapião especial urbana (pró-moradia ou pro misero)

Constituição, art. 183; Código Civil, art. 1.240

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono de área urbana, de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e que estabeleça no imóvel possuído sua moradia ou de sua família.

Usucapião especial urbana por abandono de lar

Código Civil, art. 1.240-A

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com exclusividade, de imóvel urbano de até duzentos e cinquenta metros quadrados, cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e que utilize o imóvel possuído para sua moradia ou de sua família.

Usucapião ordinária

Código Civil, art. 1.242, caput

Posse ininterrupta, mansa e pacífica de imóvel, por dez anos, com justo título e boa-fé.

Usucapião ordinária decorrente de registro cancelado

Código Civil, art. 1.242, par. único

Posse ininterrupta, mansa, pacífica, com justo título e boa-fé, por cinco anos, de imóvel adquirido onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Usucapião coletiva

Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001, art. 10

Posse ininterrupta, mansa e pacífica, por cinco anos, de área urbana com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, por possuidores de baixa renda que nela tenha estabelecido sua moradia, desde que não seja possível identificar os terrenos ocupados por cada um dos possuidores e que estes não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

Usucapião indígena

Lei nº. 6.011/73, art. 33

Posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono de trecho de terra inferior a cinquenta hectares, pelo prazo de dez anos, por índio.

Fonte: desenvolvido pela autora.

Ao converter a posse exercida nos moldes legais em direito de propriedade, o instituto da usucapião privilegia, a um só tempo, a função social da posse e a função social da propriedade em sentido amplo.

Isso porque o possuidor dá aproveitamento ao bem imóvel que, presumidamente, foi renunciado pelo proprietário, o que atende aos anseios da sociedade.

Nos dizeres de Silvio de Salvo Venosa (2013, p. 165):

[...] É obrigação do proprietário aproveitar seus bens e explorá-los. O proprietário e possuidor, pelo fato de manter uma riqueza, tem o dever social de torná-la operativa. Assim, estará protegido pelo ordenamento. O abandono e a desídia do proprietário podem premiar a posse daquele que se utiliza eficazmente da coisa por certo tempo. A prescrição aquisitiva do possuidor contrapõe-se, como regra geral, à perda da coisa pelo desuso ou abandono do proprietário. O instituto do usucapião é veículo perfeito para conciliar o interesse individual e o interesse coletivo na propriedade. Daí ter a Constituição atual alargado seu alcance. [...]

Orlando Gomes apud Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 287), por sua vez, conclui:

O fundamento da usucapião está assentado, assim, no princípio da utilidade social, na conveniência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio. Tal instituto, segundo consagrada doutrina, repousa na paz social e estabelece a firmeza da propriedade, libertando-a de reivindicações inesperadas, corta pela raiz um grande número de pleitos, planta a paz e a tranquilidade na vida social: tem a aprovação dos séculos e o consenso unânime dos povos antigos e modernos.

Com efeito, não é de se olvidar que o instituto da usucapião possui grande relevância social. 

Em 11 de maio de 2015, foi publicado pelo Supremo Tribunal Federal o Informativo nº. 783, no qual consta que, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº. 422349/DF[2], sob a sistemática da repercussão geral prevista no art. 102, §3º, da CF, o Plenário do Supremo firmou a tese de que “o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote)”.

No caso dos autos, o pedido de usucapião formulado pela parte fora rejeitado pelo Tribunal a quo, sob o fundamento de que o aludido imóvel teria área inferior ao módulo mínimo definido pelo Plano Diretor do respectivo município para os lotes urbanos.

O Plenário, por sua vez, entendeu que o direito constitucionalmente assegurado ao possuidor deveria prevalecer sobre as normas e posturas municipais relativas aos módulos urbanos.

Ao decidir desta forma, o Pretório Excelsior reconheceu, implicitamente, que a norma prevista no art. 191 da Constituição da República Federativa do Brasil possui eficácia plena (não necessitando de complemento legislativo infraconstitucional para aplicação, nem admitindo restrições oriundas da atividade do legislador ordinário) e que a autoridade dada pelo art. 182, §2º, da Constituição Federal às regras do Plano Diretor municipal, elementares do conceito de função social da propriedade urbana em sentido estrito, não podem interferir no direito à usucapião, constitucionalmente assegurado ao possuidor.

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Sobre a autora
Maria José Nunes de Almeida

Advogada, Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba, Pós-Graduada em Direito Imobiliário pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, Pós-Graduanda em Gestão Pública pela Universidade Cruzeiro do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Maria José Nunes. Usucapião de bens imóveis:: uma análise à luz da função social da propriedade e da posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4495, 22 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43652. Acesso em: 23 abr. 2024.

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