A influência da imprensa no Tribunal do Júri e a inversão do princípio "in dubio pro reo"

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Estudaremos a tensão dialética entre o princípio da presunção de inocência e a liberdade de imprensa no âmbito do Tribunal do Júri abordando, para isso, estudo de alguns casos emblemáticos na instituição mais democrática do processo penal brasileiro.

INTRODUÇÃO

O Tribunal do Júri é a instituição que mais aproxima o homem médio do Poder Judiciário. Previsto no artigo 5º, inciso XXXVIII, é verdadeira garantia com a qual são assegurados os princípios da plenitude de defesa, o sigilo das votações a soberania dos veredictos; e, além disso, competindo a ele o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

De certo, estes são os crimes que geram maior reprovabilidade social, visto que atentam contra o bem jurídico mais valioso ao ser humano, a vida. A interrupção indiscriminada da vida de outrem nunca fora tolerada em qualquer sociedade, por mais primitiva que seja, então coube à instituição do júri, por atribuição constitucional, formado por juízes leigos, aqueles que estão em pé de igualdade com aquele que supostamente cometera crime tão reprovável, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e os a eles conexos.

A imprensa, por seu turno, degustou durante a história da República de diversos tratamentos, passando pelo período de forte censura dos anos de chumbo do regime militar, até o gozo da plena liberdade de expressão, informação e pensamento.

A plenitude do exercício profissional da imprensa possibilitou a criação de diversas ramificações, dentre elas, a mídia policial, destinada à cobertura de acontecimentos ligados à prática criminosa. Como objeto principal desta, temos os casos em que envolvem crimes contra a vida, muitas vezes expostos na imprensa como verdadeiros seriados, com episódios, furos de reportagem, criação de personagens e induzimento da opinião pública.

Não se trata aqui de uma crítica ao trabalho da imprensa, instituição fundamental para a ideia de democracia que norteia nossa República, mas a propositura do debate acerca da tensão dialética entre o direito do acusado de ser visto como inocente até o trânsito em julgado de sentença condenatória e o livre exercício de imprensa.

Faremos, para isso, exposições dos conceitos históricos de cada instituição tratado e, finalmente, o aparente conflito gerado entre dois direitos e garantias previstos em nossa Carta Magna, a discussão em torno da matéria e o estudo de possíveis soluções adotadas para a pacificação da celeuma.

1. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O nascimento com vida gera ao homem, desde o início, a condição de integrante de uma sociedade e, por consequência, a aceitação tácita das regras convencionadas por seus membros para que esta permaneça incólume. Desta forma, para garanti-la, a punição apresenta-se como forma de remediar aqueles que se rebelam contra as convenções postas aos membros de um grupo.

Para que haja a punição, necessariamente, requer que o sujeito tenha praticado uma ação que afronte normas, evitando, assim, que este não seja alvo de uma sanção que não guarde conexão com um fato ilícito. Daí a fundamentação da assertiva de que a inocência é estado natural do homem desde o seu nascimento, pois a alteração de tal exige uma justa causa.

Havendo um fato delituoso, deverá o indivíduo ser submetido ao devido processo legal, do qual o princípio da presunção de inocência apresenta-se como verdadeiro desmembramento, vez que é através da apuração de fatos e análise do conteúdo probatório que se busca imputar a este a autoria de um delito.

A natureza do estado de inocência, intrínseco ao homem, remete a quem acusa o ônus de provar a culpa do acusado, ficando este isento da obrigação de demonstrar sua inocência. Neste sentido já decidiu o STF ao firmar entendimento de que a inocência prevalece até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória.

Do mesmo modo, o princípio da presunção de inocência figura como um real garantidor da liberdade do indivíduo, vez que o cerceamento da liberdade antes do trânsito em julgado da sentença que condenou o réu, poderá dar-se tão somente através de prisão em flagrante delito e da prisão cautelar, esta última em caráter de estrita exceção visto que, para que seja decretada, deverá ser devidamente fundamentada e figurar como ineficiente a adoção de qualquer outra medida cautelar.

Sob o desdobramento do in dubio pro reo, celebra garantia ao acusado de que havendo conflito entre o estado de inocência e a culpa, deve prevalecer o estado de inocência e, ainda, havendo dúvida quanto a interpretação da norma, esta deverá ser interpretada sempre conforme o interesse de quem se veja processar.

Aury Lopes Jr. (2014, p. 216) trata, ainda, do princípio da presunção de inocência como garantidor de outros direitos do acusado fora do processo criminal, vejamos:

Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência.

1.1. Precedentes Históricos

Foi no Direito Romano que a presunção de inocência ganhou seus primeiros traços, sob o prisma do in dubio pro reo, mas já na idade média, tal princípio fora severamente atacado nos Tribunais da Santa Inquisição, de forma que sofrera, já naquele período, uma verdadeira inversão, pois no processo penal medieval para que houvesse a condenação de um herege, bastaria a existência de uma suspeita ou uma dúvida razoável de culpabilidade, para que configurasse uma semiprova, o que era interpretada como presunção de culpa e consequente condenação (FERRAJOLI, 2006).

O processo penal medieval era marcado não somente pela ausência da presunção de inocência, mas também por não haver contraditório, ampla defesa, dentre outras garantias fundamentais. O tratamento conferido ao acusado era o de verdadeira presunção de culpabilidade.

Contudo, superado o período inquisitório, aos poucos a presunção de inocência voltaria a figurar como princípio norteador do processo penal universal. Nota-se que ao longo da história fora diversas vezes proclamado na senda do Direito Internacional em diversos tratados e convenções.

A consagração histórica do princípio da presunção de inocência veio em 1789, com a Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, a qual fora proclamada em Paris, que versava em seu artigo 9° que Todo homem é presumido inocente, até que tenha sido declarado culpado e se for indispensável será preso, mas todo rigor que não for necessário contra sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei”.

Sobre a importância da Declaração, Rogério Greco (2014, p. 18):

Sua influência sobre as demais declarações que a seguiram é incontestável. Serviu de modelo a muitas outras declarações, que nela buscavam os valores que haviam sido destacados e protegidos devido a sua importância para o ser humano. Seus princípios continuam sendo utilizados e aperfeiçoados, gerando, a partir deles, novos direitos fundamentais, descobertos por conta da modernidade ou pós-modernidade.

Já em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecia em seu art. 11 que “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Importante frisar a importância deste marco, tendo em vista que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fora proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e fora elaborada por juristas de diversos lugares do mundo, firmando-se como objetivo a ser alcançado pelas nações.

Ainda, em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos celebrou o princípio da presunção de inocência em seu art. 14, o qual garantia que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.

Observa-se que ao longo dos anos, o princípio da presunção de inocência foi afirmado diversas vezes como um postulado em níveis universais de direito, estando presente nos mais importantes tratados internacionais de direitos inerentes ao homem.

1.2. A incorporação do princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro

Apesar de estar expresso no artigo 5°, inciso LVII da Carta Magna, onde ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, o princípio da presunção tem seus primeiros resquícios no ordenamento jurídico brasileiro ainda no ano de 1976, quando o Supremo Tribunal Federal efetuou reforma a uma decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral, a qual, na oportunidade, lecionava que aqueles que respondessem uma ação penal, ainda que não houvesse sentença penal condenatória transitada em julgado, seria inelegível.

Na decisão o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que, apesar de não expresso na Constituição vigente a época, o princípio da presunção de inocência encontrava-se em perfeita sintonia com o nosso sistema jurídico. Tal entendimento pode se extrair do trecho do voto do Ministro Leitão de Abreu, brilhantemente citado por Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet (2014, p. 626):

Em nosso sistema constitucional, dispensável se faz colocar esse problema, especialmente naquilo que entende com o princípio da presunção de inocência, não tanto em nome do princípio cardial do direito internacional públicopacta sunt servanda – mas principalmente em face da regra posta na vigente Carta Política, regra que acompanha a nossa evolução constitucional. Nessa norma fundamental se estatui que ‘a especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota’. Ora, o postulado axiológico da presunção de inocência está em perfeita sintonia com os direitos e garantias do regime e dos princípios que ela adota. O valor social e jurídico, que se expressa na presunção de inocência do acusado, é inseparável do sistema axiológico, que inspira a nossa ordem constitucional, encontrando lugar necessário, por isso, entre os demais direitos e garantias individuais, especificados no art. 153 da Constituição Federal. Além de se tratar, desse modo, (...) de princípio eterno, universal, imanente, que não precisa estar inscrito em Constituição nenhuma, esse princípio imanente, universal e eterno constitui, em nossa ordem constitucional, direito positivo.

Apesar de já produzir seus efeitos, o princípio da presunção de inocência só foi expresso no texto constitucional com o advento da Constituição Federal de 88, no seu capítulo destinado aos Direitos e Garantias fundamentais.

Deste modo, o texto constitucional veio ratificar o expresso no artigo 8º do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana Sobre Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário, o qual teve a adesão ratificada pelo Decreto n.º 678 de 06 de novembro de 1992, cujo texto dispõe: Art. 8°. […] 2 – Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.

No âmbito do STF já inspirou diversas passagens em sua jurisprudência em matéria penal, como no caso do reconhecimento de antecedentes criminais para a fixação da pena-base, onde o Ministro Gilmar Mendes declarou que “o simples fato de existirem ações penais ou mesmo inquéritos policiais em curso contra o paciente não induz, automaticamente, à conclusão de que este possui maus antecedentes. A análise do caso concreto pelo julgador determinará se a existência de diversos procedimentos criminais autoriza o reconhecimento de maus antecedentes” STF – HC 84.088/MS, rel . Min. Gilmar Mendes; rel. p/ Acórdão: Min Joaquim Barbosa (29.11.2005).

Neste mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado da Súmula 444, na qual preceitua que “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

Seguindo os mesmos moldes do Direito Internacional, o ordenamento jurídico brasileiro trata o princípio da presunção de inocência como direito e garantia fundamental ao homem, atribuindo-o status constitucional e, ainda, amplamente consolidado na jurisprudência de suas cortes.

1.3. A presunção de inocência na Primeira Fase do Tribunal do Júri: O tratamento de exceção adotado no sumário da culpa

O procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri caracteriza-se por ser bifásico onde, na primeira fase, temos judicium accusationis ou sumário da culpa, o qual compreende os atos praticados entre o recebimento da denúncia até a possível pronúncia. Já a segunda fase é aquela compreendida entre a decisão de pronúncia e o veredicto do conselho de sentença, pois sendo pronunciado, o réu será submetido a julgamento perante o Tribunal popular.

O artigo 413 do Código de Processo Penal preceitua em que deve ser embasada a decisão de pronúncia, lecionando que “o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”.

Da leitura do mencionado dispositivo, podemos extrair a ideia de que o legislador fez preferência em homenagear a soberania do Tribunal popular e não a presunção de inocência, pois expressa que basta o convencimento quanto a materialidade do fato, ou seja, que este tenha ocorrido e que haja indícios de autoria ou participação do acusado.

No tocante à materialidade, esta é facilmente comprovada através do laudo de exame necroscópico ou, ainda, do exame de corpo de delito. Contudo, quanto à autoria, nota-se que, para que decida pela pronúncia, o juiz não precisa estar necessariamente convencido de que o réu cometeu ou que tenha participado do fato delituoso, basta que haja meros indícios de tal, ou seja, havendo dúvida, opta-se pela pronúncia. Trata-se de verdadeiro in dubio pro societate, pois caberá ao conselho de sentença a tarefa de sanar a dúvida.

Em seu Manual de Processo Penal e Execução Penal, Guilherme Nucci (2014, p. 674-675) ensina que:

… é preciso destacar que o controle judiciário sobre a admissibilidade da acusação necessita ser firme e fundamentado (o que também se tornou expresso na nova redação trazida pelo art. 413), tornando-se inadequado remeter a julgamento pelo Tribunal do Júri um processo sem qualquer viabilidade de produzir uma condenação legítima e justa do acusado. A dúvida razoável, que leva o caso ao júri, é aquela que permite tanto a absolvição quanto a condenação. Assim, não é trabalho do juiz togado “lavar as mãos” no momento de efetuar a pronúncia, declarando, sem qualquer base efetiva em provas, haver dúvida e esta dever ser resolvida em favor da sociedade, remetendo o processo a julgamento pelo Tribunal Popular. Cabe-lhe, isto sim, filtrar o que pode e o que não pode ser avaliado pelos jurados, zelando pelo respeito ao devido processo legal e somente permitindo que siga a julgamento a questão realmente controversa e duvidosa. Esta, afinal, é a função do judicium accusationis – fase de instrução – pela qual passaram as partes, produzindo provas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

Assim, é aparente que, ao menos na fase do sumário da culpa, em um primeiro momento no rito do Tribunal do Júri, o princípio da presunção de inocência fique em segundo plano, guardado para a segunda fase, a do julgamento do conselho de sentença, aquele que possui, de fato, a competência para decidir quanto à responsabilização do réu pelo fato delituoso, não obstante, reconhecendo que há verdadeiro tratamento de exceção ao princípio em estudo, face aos outros procedimentos adotados no direito processual penal brasileiro.

Recentemente, quando do julgamento do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado do Amazonas em conjunto com a assistência da acusação, nos autos do processo em que fora julgado o suposto homicídio praticado contra a perita da Polícia Civil do Estado do Amazonas, Lorena Baptista, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, ao tratar da aplicabilidade do instituto da absolvição sumária e, pautando-se na utilização do princípio in dubio pro societate na primeira fase do Tribunal do Júri, posicionou-se conforme transcrito:

APELAÇÃO CRIMINAL – HOMICÍDIO – PARECER CUSTOS LEGIS – VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – INEXISTÊNCIA – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – NÃO CABIMENTO – DÚVIDA RAZOÁVEL QUANTO À AUTORIA DELITIVA – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE – PRONÚNCIA – PRECEDENTES – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. A Procuradoria de Justiça, na condição de custos legis, desde que sempre se manifeste sem qualquer parcialidade e em prol da garantia da escorreita observância da ordem jurídica, tem a liberdade de manifestar-se tanto em favor dos interesses do Parquet quanto da defesa, o que ilide a alegada desigualdade no tratamento conferido às partes.

2. O instituto da absolvição sumária, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, somente é cabível quando houver nos autos prova unívoca de uma das hipóteses previstas no art. 415 do Código de Processo Penal, demonstrada de maneira peremptória. Em havendo dúvida razoável, deve-se preservar a competência do Tribunal do Júri, a quem compete incursar no mérito da causa, dirimindo todas as controvérsias atinentes ao fato. Precedentes.

3. Hipótese em que os autos do processo evidenciam duas hipóteses prováveis quanto aos fatos narrados na denúncia, ensejando dúvida razoável que desautoriza a absolvição sumária do acusado sob o fundamento invocado pela juíza de primeira instância (art. 415, II, CPP), que entendeu que o réu comprovadamente não foi o autor do fato.

4. Considerando a totalidade de elementos de prova carreados nos autos, não se pode afirmar de maneira segura e incontestável, nesta fase processual, que o disparo da arma de fogo se deu acidentalmente, nos termos defendidos pela defesa. Se há elementos que corroboram esta tese, há, igualmente, outros subsídios probatórios que a ilidem, apoiando a possibilidade de homicídio simples levantada pela acusação e que não podem ser descartados pela autoridade judicial.

5. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo-se para a superação dessa fase somente indícios mínimos da ocorrência do crime e de sua autoria, resguardando o mérito ao juiz natural da causa.

6. Recurso conhecido e provido. (grifo nosso)

(TJAM, Apelação Criminal, Proc. N.º 0232252-38.2010.8.04.0001, Relator Desembargador João Mauro Bessa, Primeira Câmara Criminal).

Deste modo, leciona a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas que a absolvição sumária do acusado só deve dar-se quando restarem provas inequívocas de que ocorrera uma das hipóteses previstas no artigo 415 do código de Processo Penal, verbis:

Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

I - provada a inexistência do fato;

II - provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III - o fato não constituir infração penal;

IV - demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.

Assim, havendo dúvida razoável de que não ocorrera nenhuma das hipóteses acima elencadas, deve o juiz submeter o acusado a julgamento perante o conselho de sentença, tido como juiz natural para os casos de crimes dolosos contra a vida.

Posto isso, em sendo permitido o tratamento de exceção ao princípio da presunção de inocência na primeira fase do rito do júri, há de se reconhecer que o mesmo, apesar de ser um direito do acusado, também é garantia da sociedade, admitindo mitigação, ou seja, não é absoluto, face a possíveis colisões com demais direitos, garantias e princípios celebrados em nosso ordenamento jurídico, como será analisado no decorrer do presente trabalho.

2. LIBERDADE DE IMPRENSA

Uma imprensa livre dos desmandos autoritários peculiares aos anos de chumbo vividos no país, certamente fora uma das maiores conquistas para a história da democracia brasileira. O exercício da liberdade de imprensa pode sim ser visto como a materialização da democracia em nosso país.

Deste modo, passaremos à abordagem da Lei de Imprensa e seu contexto histórico, desde sua publicação até a discussão quanto sua (in)compatibilidade com a Constituição Federal do 1988 e qual fora o tratamento conferido pelo Supremo Tribunal Federal  ao seu conteúdo e aplicabilidade. Ainda, discutiremos pontualmente a presença da liberdade de imprensa como garantia assegurada na Carta Magna.

2.1. Breves comentários a respeito da Lei n.º 5.250/67 e o conceito histórico de sua publicação.

A Lei n.º 5.250/67, ou, como conhecida popularmente, “Lei de Imprensa”, é fruto dos anos em que a República Federativa do Brasil encontrava-se submergida em regime militar. Tal Lei fora publicada no Diário Oficial da União no dia 10 de fevereiro de 1967 e, posteriormente, ratificada em 10 de março do mesmo ano.

A Lei de Imprensa nasceu ainda nos últimos dias de governo Castello Branco, marcado desde o início pelo seu caráter de transitoriedade, pois visava preencher o vazio provocado na presidência da República ocasionado pela deposição de João Goulart. Cinco dias após sua ratificação, ocorrera a posse do General Arthur da Costa Silva.

O governo Costa e Silva foi marcado, principalmente, pelo endurecimento do regime militar, predominando intensamente a censura e a repressão. Neste período ocorreram fortes manifestações no mundo, tais como as manifestações de movimentos estudantis na França, ou os protestos contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos. No Brasil, a luta armada contra o regime ditatorial intensificava-se em decorrência da morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto, tido como um verdadeiro mártir na luta contra a ditadura, o qual fora baleado pela polícia em março daquele ano.

Pressionado, o governo militar instaurava aquele que, mais tarde, seria conhecido como o “golpe dentro do golpe”, era editado o Ato Institucional n.º 5. Tal ato, sob o argumento de proteger a segurança nacional, autorizava o Presidente da República a estipular, de toda sorte, medidas repressivas como cassar mandatos, direitos políticos e garantias individuais, além de, como sabido, uma das maiores lesões provocadas pelo AI-5: a censura à imprensa e as diversas formas de pensamento artístico.

Sobre o período histórico em que fora publicada a Lei de Imprensa, Cíntia de Freitas Melo e Clara Coutinho (2009, p. 196), expõem de forma brilhante o que ocorrera naquele período:

Percebemos assim, que a Lei de Imprensa foi publicada num momento da história brasileira em que, na visão dos militares, eram necessários instrumentos para aparelhagem, de que falava o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que funcionassem como forma de defesa contra a subversão. Assim sendo, percebemos que ela não pode condizer com o nosso atual Estado Democrático de Direito.

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No que diz respeito à sua aplicação, a Lei de Imprensa guardava algumas peculiaridades, como é o caso da previsão dos crimes contra a honra cometidos por profissionais da imprensa ou aqueles em que a lei poderia ser aplicada.

Em um breve comparativo, o crime de Calúnia tipificado ao teor do art. 20 da Lei de Imprensa tinha previsão de pena de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa de 1 (um) a 20 (vinte) salários mínimos da região, ao passo que, no Código Penal, a pena prevista era de detenção de seis meses a dois anos e multa. Da mesma forma, o crime de Injúria possuía previsão de pena de detenção de um ano, ou multa de um a dez salários mínimos da região, ao passo que, no Código Penal, a previsão era de um a seis meses ou multa. Finalmente, o crime de Difamação possuía previsão de pena de detenção de 3 a 18 meses e multa de 2 a 10 salários mínimos da região, tendo previsão no Código Penal de pena de detenção de três meses a um ano e multa.

Posto isso, percebemos que a cominação mínima das penas aos crimes contra a honra na Lei de Imprensa guardava perfeita semelhança com o previsto no Código Penal, o que não se pode dizer do máximo previsto na Lei n.º 5.250/67, as quais eram ligeiramente superiores. Tal previsão decorre do entendimento de que os crimes contra a honra cometidos por profissionais da imprensa no âmbito de suas atividades geram lesividade muito maior, tendo em vista o poder de disseminação de uma informação injuriosa, caluniosa ou difamatória as quais tendem a desabonar a honra de outrem.

A lesividade dos atos de imprensa em face do direito à honra e a imagem do indivíduo, chegaram à Suprema Corte do país, objetivando que esta ficasse incumbida de solucionar tais conflitos. A própria Lei de Imprensa fora objeto de questionamento quanto à sua recepção pela Constituição Federal de 1988 quando do julgamento da ADPF 130, a qual estudaremos a seguir.

2.2. O julgamento da ADPF 130 e o tratamento conferido pelo STF à liberdade de imprensa.

Objetivando inicialmente a total revogação da Lei n.º 5.250/67, em 7 de novembro do ano de 2008 fora ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7 pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, como medida alternativa, sugeriu-se que a eficácia de alguns dispositivos da mencionada lei fosse retirada, sendo eles:

a) Art. 1º, §2º na parte onde havia a expressão “a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei...”. Tal dispositivo era totalmente incompatível com o art. 5º, inciso IX e §2º, bem como inciso I do §3º, todos eles pertencentes ao art. 220 da Constituição Federal.

b) Os artigos 3º, 4º, 5º, 6º, e 65, os quais não permitiam que houvesse qualquer tipo de participação estrangeira no jornalismo brasileiro. Tais dispositivos colidiam-se com o disposto no artigo 222 da Constituição da República de 1988, q qual teve sua redação dada pela Emeda Constitucional de n.º 36/2002.

c) O artigo 56 em sua parte final, quanto à expressão “... e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa...”.

d) O artigo 57 em seus parágrafos 3ºe 6º, pois aquele estipulava o prazo de cinco dias para que o réu contestasse uma possível ação de indenização objetivando o ressarcimento de danos morais e, este, pois fazia exigência que houvesse depósito prévio do valor de uma possível condenação como uma espécie de condição de recorribilidade. Tais previsões dificultavam muito a defesa de jornalistas (ou de outros profissionais) em juízo.

e) Artigo 60, parágrafo 1º e 2º, além da íntegra dos artigos 61, 62, 63 e 64. Tais dispositivos contidos na Lei de Imprensa autorizavam a apreensão e destruição de impressos, o que configura verdadeira afronta à liberdade de informação jornalística.

f) Os artigos 20, 21, 22 e 23, que previam – como já tratado anteriormente – os crimes de calúnia, injúria e difamação cometidos por profissionais da imprensa no exercício de suas profissões. Os mencionados artigos cominavam penas mais gravosas do que aquelas previstas no Código Penal Brasileiro para os mesmos tipos penais.

g) Os artigos 51 e 52, que estabeleciam limites para as indenizações por danos morais provocados pela imprensa. É importante frisar que, mesmo antes da ADPF 130, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal posicionava-se amplamente no sentido de declarar a não recepção de tais dispositivos pela Constituição Federal de 1988.

A Lei de Imprensa era uma verdadeira limitação à liberdade de expressão de forma que se encontrava totalmente fora do perfil democrático assumido pela República Federativa do Brasil. Entendendo dessa maneira, os Ministros Eros Grau, Carlos Alberto Menezes Direito e Celso de Mello, defendiam que, desde logo, toda a Lei n.º 5.250/67 deveria ter sua vigência suspensa, encontrando, para tanto, posicionamento contrário do Ministro Marco Aurélio.

Em seu voto o Ministro Marco Aurélio declarou que:

Não é o fato de ter-se, no cenário jurídico, diploma editado em pleno regime de exceção que firmará a premissa do conflito com a Constituição Federal. A lei é de 1967, e está em vigor há 41 anos (...) Mas não houve, nesse período de quase vinte anos, quer a movimentação do Congresso Nacional, objetivando alterar essa lei, porque ela vem sendo observada no que compatível com a Constituição Federal.

O Ministro argumentava, ainda, que caso a lei fosse declarada não recepcionada em sua totalidade pela Constituição Federal de 1988, o cidadão perderia “o direito de ingressar em juízo para ver prevalecer um certo pleito, um certo entendimento, que acredita, agasalhado pelo direito subordinante”.

O voto do Ministro Marco Aurélio fora vencido, vindo o Supremo Tribunal Federal, ao tratar da liberdade de imprensa no julgamento da ADPF 130 - que discutia a recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal de 1988 - conceder-lhe um “status” de sobredireito - um direito que viria a antecipar-se a outros direitos – tratando-a como livre de qualquer tipo de censura legislativa ou judicialmente intentada, garantindo-lhe a liberdade para atuar como formadora da opinião pública e “real alternativa à versão oficial dos fatos” (ADPF 130 QO, Relator: Min. CARLOS BRITO, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2008, DJe – 211).

Oportuno salientar, ainda, que, no ano de 2015, quando do julgamento da ADI 4815, o Supremo Tribunal Federal novamente viu-se obrigado a discutir a colisão entre a liberdade de informação e a vida privada, honra e a imagem do indivíduo.

A decisão deu-se a partir da polêmica gerada através da publicação de biografia não autorizada do cantor Roberto Carlos, pelo jornalista Paulo Cesar de Araújo. Na oportunidade a Suprema Corte decidiu pela não exigência de autorização prévia para a publicação de biografias:

É inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes. STF. Plenário. ADI 4815/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/6/2015 (Info 789).

Posto isso, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal vem, em reiteradas oportunidades, posicionando-se em total desacordo com a imposição de limites para a atividade exercida pela imprensa, porém assegurando a responsabilização da mesma face aos seus excessos, quando estes venham a ferir a imagem ou a honra de outrem. Todavia, como debateremos em momento oportuno, no Tribunal do Júri, os excessos cometidos pela imprensa no exercício do “Direito Penal do Espetáculo”, acarretam muitas vezes em danos irreversíveis, opiniões públicas manipuladas e decorrentes imposições de desigualdade em plenário, situações estas que, por si, apresentam-se como atentatórias a eficácia do processo penal.

Entretanto, não poderia ser outro o posicionamento adotado pela Suprema Corte, visto que, assim como a intangibilidade à honra e a vida privada do indivíduo, a liberdade de informação e expressão são amplamente tratadas na Constituição Federal de 1988.

2.3. A imprensa na Constituição Federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988 foi um divisor de águas na história do país. Era o amanhecer para a democracia após um período obscuro sob o regime militar. Ao longo de seu texto é notória a preocupação do constituinte originário em declarar expressamente que, nestes novos tempos, não haveria mais espaço para qualquer tipo de censura. Reinaria a liberdade de expressão, livre de qualquer limitação quanto à forma e conteúdo.

O papel da imprensa, compreendido como atividade que encontra sustentação no pleno exercício de alguns direitos e garantias fundamentais, dispõe ao longo de todo texto constitucional de diversos dispositivos tendentes a regula-lo, contando, inclusive, com capítulo próprio (Da Comunicação Social) para tratamento do tema. A título exemplificativo citamos:

Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 5°, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV;

§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Entretanto, não diferente de outros direitos, o exercício da atividade da imprensa encontra freios na própria Constituição Federal, como, por exemplo, a vedação ao anonimato, este que tão somente é permito quando imprescindível ao exercício profissional. Esta preocupação se sustenta em uma forma de assegurar que informações tendentes a desabonar a honra alheia não alcancem difusão desenfreada sem a devida responsabilização de seus autores.

A postura incorporada pela Constituição Federal de 1988 em relação à imprensa nos parece a que melhor se enquadra com o novo perfil do Estado brasileiro. O profissional da imprensa hoje conta com plena liberdade para exercer suas atividades, livre de qualquer cerceamento ou censura. A informação foi assegurada, a liberdade de disseminação sob as mais variadas óticas, delegando a aquele que a recebe posicionar-se sobre determinado fato. Ao homem médio, a segurança quanto à busca pelo seu reparo ao dano sofrido pela informação inverídica.

Todavia, para o Processo Penal, é no Tribunal do Júri que a influência da imprensa ganha maior relevância. Afinal, o indivíduo, aquele que amanhã ficará incumbido do julgamento de um semelhante, só será capaz de formar juízo a partir das informações que possui. Informações estas que, não raras vezes, são mais comprometidas com fins comerciais do que com os direitos e garantias daquele que se vê processar.

3. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E LIBERDADE DE IMPRENSA. A TENSÃO DIALÉTICA ENTRE DUAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO TRIBUNAL DO JÚRI.

A Constituição Federal de 1988 caracteriza-se como um dos textos constitucionais que mais abrangeu direitos e garantias destinadas ao indivíduo e a sociedade como um todo, na história do constitucionalismo brasileiro. Dentre os previstos figuram a presunção de inocência como estado nato do homem, o qual, para que sofra alteração, se faz necessária a superveniência de uma sentença penal condenatória e seu respectivo trânsito em julgado. Do mesmo modo, a liberdade de imprensa e suas ramificações, como o direito à informação, neste caso, em contrariedade ao primeiro, com aplicação mais abrangente, sendo um direito voltado à coletividade.

Ambos, considerados em abstrato, de igual maneira, estão assegurados no texto constitucional e, como normas constitucionais, não possuem hierarquia entre si. Deste modo, como solucionar os eventuais conflitos ocorridos entre esses direitos e garantias no Âmbito do Tribunal do Júri?

Discutiremos a fundo o papel da imprensa na formação da opinião pública e como a utilização do sensacionalismo pode ser prejudicial ao estado de inocência daquele que será submetido a julgamento pelo povo. Ainda, relataremos como as informações veiculadas pela mídia podem integrar os autos – ganhando até mesmo o status de provas – através do estudo de um caso em concreto e, por último, discutiremos quanto a eficácia do desaforamento como instrumento para solucionar ou minorar os efeitos da influência da mídia nas decisões proferidas pelo conselho de sentença.

3.1. A imprensa como formadora da opinião pública em crimes de grande repercussão.

A abordagem massiva adotada em crimes de grande repercussão sempre geraram um resultado em comum: a formação da opinião pública sobre um determinado fato delituoso.

Opinião pública é a ideia que emana de um determinado grupo de indivíduos acerca de um fato ocorrido em seu meio social. É a expressão do pensamento de uma coletividade acerca dos acontecimentos que os circundam. Em uma abordagem mais atual, podemos dizer que a opinião pública é a formação daquilo que conhecemos como senso comum.

Atualmente, é crescente a corrente dentro dos veículos de comunicação que concentram seus esforços na cobertura, muitas vezes em tempo real, de crimes que geram grande comoção popular. Entretanto, refletimos: o que gera a comoção do público sob um crime em específico?

Um crime, muitas vezes desprovido de qualquer diferencial perante tantos outros semelhantes ocorridos, repentinamente, ganha uma roupagem teatral diante das reportagens de telejornais e periódicos. Na contramão de milhares de outros crimes, semelhantes, até, personagens (supostos autores e vítimas) ganham identidade, histórias, famílias. Nestes casos o crime não integra uma estatística, mas ganha um título, como “O Caso Nardoni”, título que fora empregado ao episódio do homicídio que vitimou a menina Isabella Nardoni, que tivera como réus Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da vítima.

Um mês após o julgamento em plenário do Tribunal do Júri, o advogado Roberto Podval, a quem fora atribuída a difícil tarefa de defender Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, escreveu excelente artigo ao jornal Folha de São Paulo, o qual fora publicado na edição do dia 16 de maio de 2010 e, na mesma data, fora reproduzido pelo site Consultor Jurídico1.

Na oportunidade o advogado relatou suas impressões quanto à cobertura massiva que sofrera o caso e da dificuldade encontrada pela defesa em praticar as teses defensivas diante de um conselho de sentença que vinha sofrendo, durante dois anos, influências midiáticas acerca do caso. Assim argumentava que:

Desde logo adianto que não irei trazer nenhum fato relativo ao processo em si, que ainda tem seu trâmite na Justiça. É fato que a vítima, Isabella Nardoni, era uma criança, e, como qualquer criança, linda e inocente. Também é fato que os envolvidos pertencem a uma família de classe média, um ingrediente a mais no caldo da curiosidade popular.

Mas é possível imaginar um julgamento justo diante de todo o clamor que se acumulou durante dois anos, entre a morte da pequena Isabella e o início do julgamento?

Se o corpo de jurados é formado por sorteio dentre os membros da sociedade, e se demais membros dessa mesma sociedade permaneceram na porta do fórum clamando por vingança e linchamento, como encontrar pessoas predispostas a ouvir as partes com imparcialidade?

Como esperar neutralidade de jurados que passaram dois anos sob cobertura jornalística pouco técnica, embora legítima e cada vez mais profissional? Como convencer os jurados a relevar o bombardeio de emoções a que foram submetidos no período?

Não se trata aqui de criticar a figura dos jurados sorteados, e que ali estavam exercendo seu papel da forma mais digna possível. Trata-se de refletirmos sobre a possibilidade ou impossibilidade de essas pessoas se desprenderem do peso das ruas, do peso do público ruidoso - que podíamos ouvir à distância - cobrando a cabeça dos réus. Éramos, os membros da defesa, chamados de “assassinos”.

O “Caso Nardoni” gerou tamanha comoção na população brasileira que, nos cinco dias em que ocorreram o julgamento, uma multidão aglomerava-se na porta do Fórum de Santana com brados por justiça onde, em verdade, justiça, naquela ocasião, traduzia-se em condenação. Assim, ao final do julgamento o clamor público foi atendido e, quando da leitura da sentença condenatória prolatada pelo juiz de direito Maurício Fossen, procederam-se três minutos de queima de fogos em comemoração ao resultado dos votos do conselho de sentença2.

Ressaltamos que o caso em análise é emblemático. Muitos foram os crimes que geraram grande repercussão na história recente do direito penal brasileiro e, em sua grande maioria, homicídios, naturalmente julgados pelo Tribunal do Júri e consequentemente mais suscetíveis à influência dos meios de imprensa em seus julgadores. Como exemplo, podemos citar o julgamento de Misael do Santos Bispo, condenado pelo assassinato de sua então namorada Mércia Nakashima, bem como o julgamento de Bruno Fernandes das Dores de Souza, o “Goleiro Bruno”, condenado pelo assassinato de Eliza Semúdio. No ano de 2013, o conselho de sentença da 1ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Manaus-AM, condenou Jimmy Robert, Ruan Pablo Bruno e Rodrigo de Moraes Alves pelo assassinato de Gracilene Belota, Gabriela Belota e Roberval Brito, naquele que foi denominado pela imprensa amazonense como “O Caso Belota”. Este último guarda a particularidade de ter sido transmitido ao vivo por diversas rádios e emissoras de televisão local.

Mas o que esses crimes possuem em comum e qual a motivação para o despertar de tanta atenção da imprensa e, consequentemente, clamor do público pela condenação daqueles apontados como acusados?

No ano de 2014 o Brasil teve uma média de 143 assassinatos por dia3, um número elevado, alarmante, o que faz o país superar, proporcionalmente, o número de mortes ocorridas na guerra do Iraque4. Contudo, em meio a tanta violência, alguns crimes destacam-se fortemente na “mídia policial” e, talvez, o fator determinante para esta comoção seja o modus operandi empregado pelo autor do delito. Talvez os personagens do fato (vítima, autor, etc). Podemos considerar até mesmo as circunstâncias em que ocorrera o crime.

Em verdade, todos estes aspectos, certamente, contribuem para que um crime ganhe grande repercussão, entretanto, por mais bárbaro o meio empregado, por mais notórios sejam os personagens que integram o fato e, por mais relevantes as circunstâncias, estes, sozinhos, não possuem o poder de atingir a um grande número de indivíduos.

A população, de certo modo, acostumou-se com as barbáries ocorridas em seu cotidiano. Folheiam-se os cadernos policiais de jornais com certa indiferença, com a sensação de distância. A violência é diariamente vivida através das reportagens de televisão. Entretanto, há um fator determinante em prender a atenção do público em um crime em específico: a cobertura da imprensa.

Desde as primeiras notícias do acontecido, a cena do crime muitas vezes violada pelo melhor ângulo de filmagem, entrevistas com autoridades policiais tentando extrair as linhas de investigações, a identificação da vítima, possíveis testemunhas, reviravoltas nos fatos e, finalmente, a indicação de um nome, um suspeito. Não há busca pela verdade dos fatos, mas sim por aquilo que, dentro deles, apresenta-se como surpreendente. A notícia, em si, é a busca pela novidade.

O mero apontamento por parte da autoridade policial de que um indivíduo é suspeito da autoria de um crime é o marco inicial para o linchamento público de sua imagem e da falência de seus direitos. O tribunal da mídia tem rito sumário. Desapegado de direitos e garantias constitucionalmente assegurados, sustenta-se na liberdade do exercício de imprensa para promover a condenação indireta de indivíduos e, para isso, não tardam no emprego de diversas expressões carregadas de significados, muitas vezes preconceituosos, para referir-se a aquele que se vê acusar.

Em outro polo encontra-se o público como receptor de toda informação propagada pela imprensa. Público este que, por óbvio, não possui nenhuma experiência direta com os fatos ou com seus personagens. A este é chegada tão somente a informação filtrada pelos interlocutores da imprensa.

Percebe-se que, em verdade, a realidade dos fatos para fins de formação da opinião pública quando se fala na cobertura de crimes tidos como repugnantes, é a “verdade” propagada pela astúcia de jornalistas comprometidos em assinar matérias que mais comprometem-se com o sucesso de leituras e acessos (considerando os meios digitais de informação) do que com a verdade real dos fatos. Para que se chegue a esse resultado, é crescente a utilização de meios que envolvam emocionalmente o público de maneira que sentimentos como a curiosidade, revolta, compaixão e ódio sirvam como o motor da procura de informação sobre o caso. Dentre estes meios empregados, o mais comum é o sensacionalismo, o qual passaremos ao estudo.

3.2. Sensacionalismo. Uma ameaça real ao princípio da presunção de inocência.

O sensacionalismo é um recurso utilizado para a transmissão de notícias que visa atingir o estado emocional daquele que a recebe. É o processo de metamorfose da notícia, visando que esta provoque mais interesse em seu conteúdo do que naturalmente provocaria.

Danilo Agrimani (1995, p. 10), sobre o sensacionalismo, comenta que:

Todas essas definições convergem para alguns pontos comuns. Sensacionalismo é tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não mereceria esse tratamento. Como o adjetivo indica, trata-se de sensacionalizar aquilo que não é necessariamente sensacional, utilizando-se para isso de um tom escandaloso, espalhafatoso. Sensacionalismo é a produção de noticiário que extrapola o real, que super dimensiona o fato. Em casos mais específicos, inexiste a relação com qualquer fato e a notícia é elaborada como mero exercício ficcional.

Para o autor, o sensacionalismo é a tentativa de transformar uma notícia comum em algo sensacional e a busca pela espetacularização do fato. Neste ponto, podemos destacar os recursos utilizados, principalmente em programas televisivos, objetivando atingir esse fim, como as insistentes reportagens e entrevistas com pessoas relacionadas com o fato, estas muitas vezes antecipando de forma precária o que seria utilizado em juízo como prova testemunhal.

O fato é que a imprensa assume para si um papel investigativo, feito de forma precária, mas que não deixa de estar presente quando falamos de crimes de grande repercussão. O ponto que sustenta esse posicionamento é a criação da expressão “Jornalismo Investigativo” utilizada não raras vezes pelos meios de comunicação. Sua presença é tão notória que foi capaz de gerar, até mesmo, repórteres especializados nesse tipo de conteúdo.

E é utilizando-se do seu principal recurso, o sensacionalismo, que o jornalismo investigativo galga seu espaço nas pautas de telejornais, impressos e meios digitais de comunicação. Quando utiliza-se do sensacionalismo o objetivo da notícia deixa de ser o relato fato em si e passa a ser atingir as sensações do público através de informações que não versam diretamente sobre os fatos, mas sobre seus personagens, como características pessoais, fatos ocorridos em seu passado, etc.

É nesse ponto que o sensacionalismo mostra-se como ameaça ao estado de inocência do indivíduo. Afinal, o que prende mais a atenção do público, o respeito aos direitos do indivíduo que se vê processar ou a pintura de sua imagem como o autor da barbaridade em questão?

Claramente, tal artifício fora insistentemente utilizado na matéria publicada pela Revista Veja no ano de 2008 intitulada “O anjo e o Monstro”. O texto de autoria de Juliana Linhares e Renata Moraes (2008, p. 97) destinava-se a relatar o caso do assassinato de Isabela Nardoni, entretanto, o que se vê é a tentativa de traçar um perfil violento dos acusados, verbis:

Alexandre Nardoni é tido como uma pessoa violenta. Das quinze testemunhas ouvidas até agora pela polícia, dez afirmaram ter tido conhecimento de que ele agredia fisicamente a mulher. No prédio em que Nardoni e Anna Carolina residiam antes de se mudar para o atual apartamento, moradores contam que as brigas eram tão freqüentes e ruidosas que já haviam resultado em quatro advertências. 

Nota-se que, no trecho em questão, há um desapego no relato do fato principal. O assassinato da vítima ganha um perfil de relevância secundária diante da tentativa de descrever os personagens envolvidos no crime, o que, naturalmente, gera no público um sentimento de revolta e repulsa pela pessoa dos acusados. Provoca-se a conclusão de que, se possuem perfil violento, se há histórico de violência, é perfeitamente possível que tenham praticado ato tão brutal.

Entretanto, tal conclusão, em si, já demonstra-se atentatória ao estado de inocência do acusado. E não poderia ser diferente, visto que o público permanece por semanas, meses e até anos sendo bombardeado com informações tendenciosas, comprometidas tão somente em tornar a história atraente e que, em sua grande maioria, tendem para a degradação da imagem do acusado.

Deste modo, a utilização do sensacionalismo como meio de propagação de notícias em crimes de grande repercussão apresenta-se como uma real ameaça ao estado de inocência do réu, principalmente no que se diz respeito aos crimes em que serão submetidos a julgamento pelo tribunal popular, justamente pela origem dos juízes leigos, o povo, o qual é submetido diretamente aos efeitos de uma imprensa tendenciosa.

Entretanto, não somente no povo a imprensa e seus artifícios são capazes de exercer influência. A participação da imprensa, não raro, chega até mesmo a integrar os autos de processo crime com status de prova. Tal afirmativa só demonstra que a relação entre a imprensa e o Poder Judiciário estreita-se cada vez mais com a evolução dos meios de comunicação, é o que analisaremos.

3.3. Matérias veiculadas pela imprensa utilizadas como prova na Ação Penal. O caso Renato Benigno.

Renato Brasileiro (2015, p. 571) acerca da terminologia da prova, leciona que:

Em sentido amplo, provar significa demonstrar a veracidade de um enunciado sobre um fato tido por ocorrido no mundo real. Em sentido estrito, a palavra prova tem vários significados (...) tem a mesma origem etimológica de probo (do latim, probatio e probus), e traduz as ideias de verificação, inspeção, exame, aprovação ou confirmação. Dela deriva o verbo provar, que significa verificar, examinar, reconhecer por experiência, estando relacionada com o vasto campo de operações do intelecto da busca e comunicação do conhecimento verdadeiro.

Deste modo, considerando a acepção jurídica de meio, a prova, para o processo penal, é o instrumento pelo qual a parte, seja ela acusação ou defesa, busca demonstrar a veracidade do que fora alegado a fim de formar o convencimento do órgão julgador.

De outro modo, ganhando a roupagem de atividade probatória, a prova é o conjunto de atividades que visam atingir a verdade real dos fatos, ou seja, é a produção dos eventos processuais que destinam-se a formar o convencimento do juiz sobre os fatos relevantes para a elucidação da causa. Sob esse aspecto, podemos dizer que a atividade probatória está relacionada ao direito das partes – e também do magistrado que pode fazê-lo de ofício – de produzir o conteúdo necessário para a comprovação de sua versão dos fatos.

Finalmente, a prova pode ser vista como resultado, oportunidade em que é formada a própria convicção do órgão julgador sobre os fundamentos que o guiarão quando da decisão quanto ao mérito da ação. Renato Brasileiro (2015, p. 572), considerando a prova como resultado da atividade probatória pela exploração de seus meios, observa que:

Por mais que não seja possível se atingir uma verdade irrefutável acerca dos acontecimentos ocorridos no passado, é possível atingir um conhecimento processualmente verdadeiro acerca dos fatos controversos inseridos no processo sempre que, por meio da atividade probatória desenvolvida, sejam obtidos elementos capazes de autorizar um determinado grau de certeza acerca da ocorrência daqueles mesmos fatos.

Podemos concluir, desta maneira, que a finalidade da prova é o convencimento do julgador acerca de seu objeto, este que podemos apontar como sendo a verdade real dos fatos. Entretanto, como observado anteriormente, a relação entre matérias veiculadas pela imprensa e os resultados de julgamentos, principalmente aqueles realizados no âmbito do Tribunal do Júri, vem estreitando-se com o decorrer dos anos.

Não somente os jurados estão expostos a influências externas provenientes de matérias jornalísticas, mas da análise pontual de casos concretos podemos observar que materiais jornalísticos vem integrando inquéritos policiais e sendo utilizadas pelo Ministério Público, bem como pela defesa, ganhando até mesmo o perfil de prova dentro da ação penal.

No dia 12 de maio de 2014, por volta das 05:30 horas da manhã, os jovens Keyllene Nogueira de Almeida e José Henrique Monteiro Galvão, foram vítimas fatais de um acidente de trânsito ocorrido na Avenida Coronel Teixeira, Zona Oeste da cidade de Manaus. No evento, após saírem de uma casa de shows, os jovens teriam sido atingidos pela Pick Up S-10 conduzida por Renato Fabiano dos Santos Benigno, quando empurravam um veículo que sofrera pane de combustível na avenida mencionada.

Na oportunidade, o Ministério Público quando do oferecimento da peça acusatória assinada pelo então Promotor de Justiça Carlos Fábio Braga Monteiro, da 14ª Promotoria de Justiça, a qual atua em conjunto com a 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital amazonense, nos autos de número 0222242-90.2014.8.04.0001, utilizou-se de diversas informações obtidas através da imprensa para fundamentar suas alegações. Verbis:

No dia 12 de maio de 2014, por volta de 04h45, o denunciado, imediatamente depois de se colocar voluntariamente em total estado de embriaguez (detinha 0.69 miligramas de álcool por litro de sangue – fl. 12), dirigiu um Chevrolet S-10, prateado, placas OAK-2643, em alta velocidade acima de 60km/h¹, que era o máximo permitido², na Av. Coronel Teixeira, Ponta Nera, nesta cidade, assumindo o risco de produzir o resultado morte a qualquer instante.

Quando, então, nas proximidades do Shopping Ponta Negra, o veículo dirigido pelo denunciado atingiu fortemente por trás o Fiat Strada, placas JXP-6657 (…)

O choque foi tão potente que o Fiat Strada e os cinco jovens foram arrastados por alguns metros, tendo Keyllene Nogueira de Almeida e José Henrique Monteiro Galvão vindo a óbito, além de terem perdido uma perna cada. Jhony Lemos Rodrigues, Weslem Tavares e Silva e Rodrigo de Oliveira Barroso somente não faleceram por circunstâncias alheias à vontade do agente, porque foram prontamente socorridos em unidade hospitalar (conferir notícias de jornais e blogs locais que seguem anexa à presente peça). (grifo nosso)

As informações obtidas pelos meios de imprensa apresentam-se em dois momentos. Primeiramente o Ministério Público alega que o condutor trafegava “em alta velocidade acima de 60km/h”, a frase indica nota de rodapé constante na Denúncia que aponta matéria5 do portal de notícias “A crítica”. Não fora indicado no corpo da peça acusatória, outro meio de prova para sustentar a alegação de excesso de velocidade empregado no veículo pelo condutor, mas tão somente a matéria produzida pelo portal de notícias mencionado.

Em um segundo momento, em breve relato do acidente, onde aponta a consumação do homicídio das duas vítimas fatais, bem como as causas que impediram a consumação do homicídio das outras três vítimas, o Ministério Público, expressamente, menciona a fonte das informações, juntando, inclusive, duas matérias aos autos, sendo, a primeira, de autoria do repórter Danilo Alves para o “Portal D24 AM”6 e uma segunda matéria, de autoria não indicada, para site de notícias “Fato Amazônico”7.

Brilhante lição de Guilherme de Souza Nucci, acerca do que se busca com a produção de provas, aponta que:

Se a prova é a demonstração lógica da realidade, com o objetivo de gerar, no magistrado, a certeza em relação aos fatos alegados, naturalmente, a finalidade da prova é a produção do convencimento do juiz no tocante à verdade processual, vale dizer, a verdade possível de ser alcançada no processo, seja conforme a realidade ou não.

O julgador deve ater-se à verdade processual para proferir o seu veredicto. Portanto, o esforço da parte, no contexto probatório, concentra-se na extração do maior número de elementos viáveis para a persuasão racional dos órgãos do Poder Judiciário.

Assim, considerando que a finalidade da prova é gerar a certeza no magistrado em relação aos fatos alegados pela parte, observamos que, no caso em análise, no afã de oferecer uma resposta rápida para o público acerca de um fato que gerou tamanha comoção, o Ministério Público não exitou em utilizar-se das frágeis e questionável alegações da imprensa – e assim classificamos considerando a óbvia precariedade técnica de recursos que dispõe a imprensa para sustentar a afirmação de que o acusado empregava velocidade excessiva ao veículo - contidas em matérias publicadas horas depois do acidente, para atingir o que defendia como sendo a verdade real para o processo.

Posto isso, observamos que a imprensa vem exercendo o poder de influenciar, não somente o público em geral, mas os próprios órgãos atuantes na ação penal. Tal constatação faz crescer a necessidade de se chegar a uma solução para o conflito, a qual deverá garantir ao acusado o seu estado de inocência e, de igual maneira, não afetar o livre exercício das atividades da imprensa. Deste modo, apresentando-se como a solução em potencial, com previsão no artigo 427 do Código de Processo Penal, o instituto do desaforamento será analisado a seguir.

3.4. O desaforamento como possível alternativa para a garantia da imparcialidade do conselho de sentença.

O desaforamento, previsto no artigo 427 do Código de Processo Penal, é estabelecido nos seguintes termos:

Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.

§ 1º O pedido de desaforamento será distribuído imediatamente e terá preferência de julgamento na Câmara ou Turma competente.

§ 2º Sendo relevantes os motivos alegados, o relator poderá determinar, fundamentadamente, a suspensão do julgamento pelo júri.

§ 3º Será ouvido o juiz presidente, quando a medida não tiver sido por ele solicitada.

§ 4º Na pendência de recurso contra a decisão de pronúncia ou quando efetivado o julgamento, não se admitirá o pedido de desaforamento, salvo, nesta última hipótese, quanto a fato ocorrido durante ou após a realização de julgamento anulado.

Da leitura do texto legal compreendemos que o desaforamento trata-se de deslocamento territorial de competência para o julgamento pelo Tribunal do Júri, alterando, assim, aquelas inicialmente previstas no artigo 70 do CPP. Para que ocorra, faz-se necessária uma provocação, seja através de representação do juiz competente, de requerimento do Ministério Público, do querelante, do assistente, bem como do Acusado. Por outro lado, o órgão competente para a concessão do desaforamento é, conforme o caso, o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal, o qual o fará através de prolação de sentença de natureza jurisdicional, não sendo admitida a hipótese de decisão administrativa para concessão ou denegação do instituto.

Importante salientarmos que o pedido de desaforamento deverá sustentar-se sob uma das hipóteses previstas no Caput do artigo 427 do Código de Processo Penal, quais sejam:

a) Interesse da ordem pública: trata-se de hipótese bastante subjetiva, tendo em vista a imprecisão na definição do que é a ordem pública. Entretanto, podemos considerar que o que se quer assegurar nesta hipótese é a tranquilidade e segurança necessárias para que ocorra o julgamento.

b) Dúvida sobre a imparcialidade do júri: como intensamente abordado no presente estudo, os casos em que envolvem os crimes que são processados e julgados sob o rito do Tribunal do Júri são, de certo, os que mais possuem o poder de gerar comoções coletivas. Tal hipótese mostra-se como real solução para os casos em que o conselho de sentença mostre-se visivelmente influenciado por fatores externos ao julgamento, gerando certeza quanto a ausência de imparcialidade dos jurados e demonstração de lesão aos direitos do réu. Entretanto, como abordaremos adiante, apesar de louvável, tal hipótese demonstra-se de eficácia limitada, pois somente protegeria os casos em que a comoção popular restrinja-se a lugares pequenos.

Entretanto, esta não é a única barreira que a presente hipótese encontra para a sua aplicação, visto que, como bem defendido por Aury Lopes Jr. (2014, p. 1070-1071), tal hipótese é de difícil aceitação nos Tribunais, pois:

É uma causa importante, mas dificílima de ser comprovada e, portanto, admitida. Se a suspeição por quebra da imparcialidade de um juiz de direito ou federal, julgador perfeitamente individualizado, portanto, é rarissimamente reconhecida pelos tribunais (pelos mais diversos motivos, mas principalmente pelo sentimento corporativo e o protecionismo), imagine-se uma alegação genérica de quebra da imparcialidade de um grupo difuso de jurados. Não significa que o problema não exista, todo o oposto, senão que é de difícil comprovação. Em geral, tal situação decorre do mimetismo midiático, ou seja, o estado de alucinação coletiva (e contaminação psíquica, portanto) em decorrência do excesso de visibilidade e exploração dos meios de comunicação. O bizarro espetáculo midiático e a publicidade abusiva em torno de casos graves ou que envolva pessoas influentes ou personalidades públicas fazem com que exista fundado receio de que o eventual conselho de sentença formado não tenha condições de julgar o caso penal com suficiente tranquilidade, independência e estranhamento (ou alheamento, desde uma perspectiva de terzietà). Diante disso, proporcional à cautela que devem os tribunais ter ao julgar tal pedido, para evitar uma molesta banalização da medida, está a necessidade de ter sensibilidade e coragem para decidir pelo desaforamento quando houver uma dúvida razoável acerca da alegada imparcialidade. Também se deve considerar nessa rubrica o sentimento e prejulgamento gerado não pelo crime em si, mas pela pessoa sujeita ao julgamento, ou seja, há que se distinguir o sentimento de repulsa que em geral acompanha o crime, da animosidade existente contra a pessoa do réu (autorizadora do desaforamento).

c) Segurança pessoal do acusado: por motivos semelhantes ao item anterior, esta hipótese é cabível quando haja fundado receio de que a integridade física do acusado esteja sob risco.

Ainda, é cabível o pedido de desaforamento por excesso de prazo para a realização do julgamento. Esta hipótese encontra aplicação para os casos em que, a contar da data de preclusão da decisão de pronúncia e demonstrado o acúmulo de serviços na comarca, bem como de que a demora não fora provocada pela defesa, o julgamento não ocorra no prazo de seis meses. Busca-se a garantia de que, estando o acusado pronunciado, o julgamento ocorra dentro de um prazo razoável.

Ao tratarmos da hipótese de aplicação do instituto do desaforamento quando houvesse fundada dúvida sobre a imparcialidade do júri, salientamos que, malgrado apresente-se como uma solução para o conflito entre a garantia da presunção de inocência do acusado e o livre exercício de imprensa, tal previsão encontraria limitação em casos onde a comoção popular transcenda as fronteiras da comarcar originariamente competente para a realização do Julgamento.

Em tempos atuais, com os avanços tecnológicos no campo da comunicação, as notícias são facilmente difundidas, principalmente através dos meios digitais de informação como blogs, portais e sites de notícias. Ressaltamos que, até os veículos de comunicação tradicionalmente impressos, não raro, hoje possuem sua versão digital. Deste modo, a propagação de notícias não encontra barreiras de tempo e lugar, propagam-se no espaço em um curto lapso temporal.

Esta facilidade de difusão da notícia e consequente popularização dos casos que geram comoção popular retiraram, quase que em totalidade, a eficácia do instituto do desaforamento, haja vista que os casos em que envolvem crimes de grande repercussão popularizam-se de tal maneira que, em nenhuma comarca de um determinado estado – ou do país, em alguns casos – haveria a possibilidade em lograr êxito nas garantias que o instituto se propõe em atingir.

Sobre o tema, em excelente artigo publicado na revista eletrônica do Ministério Público Federal, o então Procurador da República, Vladimir Aras (2010, p. 5-6), fazendo alusão ao “Caso Nardoni”, expõe que:

Num caso como o de Isabella Nardoni dificilmente o desaforamento resolveria o problema do viés condenatório do tribunal, evitando a formação de um júri viciado. As reportagens publicadas ao longo de dois anos pela imprensa foram massacrantes . A difusão massiva de dados do processo foi proporcional ao mal causado à inocente menina. Seria muito difícil encontrar em qualquer comarca do Estado de São Paulo, mesmo a mais longínqua, um ambiente razoavelmente “neutro”, no qual pudessem ser selecionados sete jurados para julgar a causa com verdadeira isenção de ânimo, ou sem idias preconcebidas.

Não estou aqui dizendo que os Nardoni são inocentes, pois não cabe a mim fazê-lo. Creio que a Polícia Civil e o Ministério Público de São Paulo fizeram um excelente trabalho e convenceram os jurados. Apenas pontuo o problema da “midiatização” do júri popular, que pode repetir-se em prejuízo de pessoas verdadeiramente inocentes. Todos se lembram das lamentáveis cenas da turba reunida em torno do fórum paulistano, à espera de “justiça” a qualquer preço, como se fossem voluntários para tomar parte de um linchamento iminente.

Devido à grande exposição que o crime obteve na mídia, somente em locais parcamente alcançados por serviços noticiosos (emissoras de rádio e TV, jornais e internet) seriam encontráveis jurados não “contaminados” pelas opiniões acachapantes dos veículos de comunicação social. Portanto, tomando o caso de Isabella Nardoni apenas como um exemplo, não seria viável desaforar o julgamento para qualquer outra comarca paulista. Talvez só fosse possível encontrar jurados “imunes” à explosão de notícias dos rincões do Brasil profundo.

Como bem exposto pelo autor, hoje dificilmente seria possível a formação de um conselho de sentença livre das influências vindas das massivas reportagens midiáticas acerca de determinados crimes. Situação esta que impõe ao instituto do desaforamento, antes visto como uma solução, hoje, uma situação de mero paliativo. Ineficaz e vencido perante as reinvenções da tecnologia nos meios de comunicação.

Posto isso, pode-se chegar a compreensão de que a aplicação do desaforamento, na grande maioria dos casos que geram forte comoção popular, não seria a medida mais eficiente para a garantia da imparcialidade do conselho de sentença, até considerando o caráter subjetivo desta e de difícil reconhecimento pelos tribunais. Precisamos, sim, de inovações legislativas para a pacificação da celeuma, vencendo, assim, o repouso dogmático que estabeleceu-se sob a matéria.

CONCLUSÃO

Muito ainda há o que se estudar quando pensamos em solução para a tenção dialética entre a influência da imprensa no tribunal do júri e a presunção de inocência daquele levado a julgamento perante o conselho de sentença. No entanto, parece-nos que estamos diante de uma situação que ensejaria a abertura de novos horizontes dentro do próprio processo penal brasileiro. Tomemos como exemplo a possibilidade de se recusar ao julgamento pelo tribunal do júri, conferida ao acusado em alguns estados norte-americanos. Entretanto tal renúncia só seria possível após emenda à Constituição Federal de 1988, uma vez que esta efetua o reconhecimento do júri como instituição competente para julgar os crimes dolosos contra a vida em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea d.

Em contraponto, notório é o estabelecimento de um repouso dogmático acerca da matéria, onde a instituição do júri permanece incólume diante da ausência de propostas legislativas e discussões sérias sobre o tema. Sendo assim, júri, presunção de inocência e liberdade de imprensa permanecerão em rota de colisão, dependentes de inovação por parte do poder legislativo, o qual entendemos como competente para tal, para a afetiva garantia de direitos contrapostos em um sistema democrático tão abrangente em garantias individuais e coletivas.

Posto isso, o cenário atual e futuro, a curto prazo pelo menos, continuará sendo figurado por acusados dependentes de toda sorte para quando expostos ao julgamento da imprensa, principal formadora da opinião pública, bem como de defensores dependentes de toda astúcia para a luta contra o senso comum formado acerca dos crimes de grande repercussão, marcando mais uma desigualdade dentro de um processo penal que guarda igualdade tão somente no plano do ideal.

Ao processo penal brasileiro, sobretudo à instituição do júri, a coragem para equilibrar a balança da justiça diante do “espetáculo do direito penal”.

Que o direito em seu estado puro e perfeito não repouse sob o berço da utopia.

REFERÊNCIAS

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1Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-mai-16/imprensa-nao-retratou-fato-passou-julgamento-nardoni2 Acessado dia 04/10/2015.

2Disponível em: http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL1546912-15528,00-CASAL+NARDONI+E+CONSIDERADO+CULPADO+PELA+MORTE+DA+GAROTA+ISABELLA.html Acesso dia 02 de outubro de 2015.

3Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/brasil-teve-em-media-143-assassinatos-por-dia-em-2014.html Acesso dia 02 de outubro de 2015.

4Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/nem-iraque-nem-sudao-brasil-esta-em-guerra-e-nao-sabe Acesso dia 02 de outubro de 2015.

5Disponível em: http://acritica.uol.com.br/manaus/Condutor-S-10-acidente-possuia-NH_0_1136886313.html Acesso em 09/10/2015.

6Disponível em: http://new.d24am.com/noticias/amazonas/acidente-grave-ponta-negra-deixa-dois-mortos-tres-feridos/111895 Acesso em 09/10/2015.

7Disponível em: http://www.fatoamazonico.com/site/noticia/grave-acidente-na-estrada-da-ponta-negra-deixa-dois-mortos-e-tres-feridos-na-manha-desta-segunda/ Acesso em 09/10/2015.

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