No decorrer do Século XX, houve vigoroso debate acerca das questões concernentes à jurisdição constitucional, principalmente a respeito de quem deteria sua titularidade, o ápice da querela doutrinária se deu com Hans Kelsen e Schmitt que possuíam entendimentos opostos sobre o tema.
De uma maneira concisa, costuma-se abreviar tal debate dizendo-se que Schmitt defendia que tal mister deveria ser conferido ao chefe do Executivo, no caso o Presidente do Reich alemão. O controle de constitucionalidade haveria de ser exercido por um órgão político, atribuído de legitimidade e que transmitisse validade às suas decisões, para Schmitt judicializar o controle de constitucionalidade seria uma extravagância.
Já Hans Kelsen, em direção contrária, defendia a ideia de que a jurisdição constitucional deveria ser realizada por uma corte jurídica especializada. Respaldando-se no argumento de que os componentes dessa corte deveriam ser independentes, vez que o controle não poderia se dar em pilares políticos, necessitando ser realizado com base em um diagnóstico entre norma e norma, não apenas entre fato e norma, como sugeria Schmitt. Cultivando assim, a teoria da pirâmide normativa, que teria com ponto mais alto a norma fundamental, de onde todas as outras normas deveriam extrair sua base legal, para que isso ocorresse far-se-ia imprescindível a existência de um tribunal constitucional que realizaria uma análise de compatibilidade entre o texto editado e a norma superior, impedindo que os poderes de cunho político, executivo e o legislativo, julgassem suas próprias leis.
Sobrevindo mais de meio século do calor de tal contenda, pode-se assegurar hoje que a posição kelseniana restou vitoriosa. A existência da jurisdição constitucional e sua atividade por meio de tribunais constitucionais é fato difundido mundo afora, abrangendo-se ser imprescindível um controle de constitucionalidade. Dentro desta lógica, afirma-se que o conceito de jurisdição constitucional se acorrenta à necessidade de uma instância que exerça a competência de solucionar os conflitos constitucionais da maneira mais neutra e justa possível, de modo independente aos anseios políticos.
Afirma-se, portanto que o debate Kelsen x Schmitt resta-se superado, no sentido de que quase não se falar mais, nas hodiernas discussões sobre tema, ser o chefe do executivo o guardião da Carta Constitucional.
Todavia, semelhante discussão pode ser retomada quando lhe facultado outro viés, menos formal e mais substancial, qual seja, os limites das ações dos Tribunais Constitucionais. Nasce assim o debate da legitimação das cortes constitucionais, vez que não são estes, corpos democráticos, eletivos ou representativos, não obstante suas disposições afetarem explicitamente a vida social da coletividade. Floresce, desse modo, assuntos igualmente polêmicos e cuja a altercação é rica e diversa.
A discussão em relação à legitimidade dos tribunais constitucionais obteve ânimo recentemente, sobretudo contra o Supremo Tribunal Federal, cúpula de nosso sistema judiciário, devido ao amplo número de deliberações enunciadas por tal corte, sobre matérias não somente jurídicas, mas de agudo caráter político e moral, assuntos que dividem a população e que, muitas vezes, contrastam os interesses políticos e sociais majoritários.
É nessa conjuntura que começa a ser discutida a legitimidade de tais órgãos: quando se passa a deliberar no domínio do Judiciário acerca de assuntos de caráter proeminentemente legislativo, é que se iniciam as imprecisões e os questionamentos. Até que ponto tal intromissão, denominada de ativismo judicial é legítima, e qual o alcance pode ela se dar sem intimidações a democracia e ao comedimento institucional da divisão de competências entre os Poderes, sem que desenvolva-se uma “ditadura constitucional”, são temas a serem aventados dentro desse contexto.
É nesse ambiente que se tem majorado o conflito institucional entre os Poderes Judiciário e Legislativo, questionando-se se o exercício da Jurisdição Constitucional estaria sendo ativista, lançando-se sobre temas caracteristicamente políticos e invadindo domínios de competência do Poder Legislativo, enquanto órgão de representação política da República.
Essa tensão institucional suscitou reações do Poder Legislativo, que, omisso em pontos que carecem de regulamentação, assistiu o Poder Judiciário, e em especial o Supremo Tribunal Federal, atuar em searas que prima facie estariam àquele conferidas. Essas reações foram demonstradas com a Proposta de Emenda Constitucional nº. 33/2011 (PEC 33/2011), a qual sugere inovações que majorem o controle sobre a performance do Supremo Tribunal Federal, gerando mecanismos de revisão, ou confirmação, de seus julgados.
É por ter uma função essencial na democracia brasileira, exercendo papel de fundamental importância na garantia de direitos fundamentais é que se cobram e se discutem tanto os temas relativos ao Supremo Tribunal Federal. É inevitável que se acabem propondo ao supremo temas controversos em nossa coletividade e de feitios políticos, como por exemplo, o reconhecimento legal das uniões estáveis homo afetivas como um tipo de entidade familiar, esse papel acentua-se devido a omissão do Poder Legislativo de assegurar direitos individuais que se encontram tolhidos, mediante as lacunas legislativas.
Toda essa conjuntura se dá, como já dito, em uma atmosfera de alegada anormalidade na legitimação do Poder Judicante, visto que o modo de composição de seus componentes não se dá por acessos democráticos ou eletivos.
O princípio contramajoritário e a democracia constitucional.
A atenção ao princípio da Primazia das normas constitucionais frente às demais normas do ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito é imperioso, vez que constitui garantia a soberania popular.
Como visto acima as normas infraconstitucionais não podem ir de encontro às regras e princípios abraçados pela Carta Constitucional a fim de coibir exageros e violação de poder, bem como garantir a observância dos direitos constitucionais e ao regime político democrático.
Para que a Supremacia da Constituição seja acatada é preciso à existência de um sistema que vigie e controle a constitucionalidade das demais normas do ordenamento jurídico para que as cláusulas pétreas possam ser resguardadas pelo Estado.
Como dito o controle de constitucionalidade é essencial para garantir a Supremacia da Constituição, a observância aos direitos e garantias fundamentais e a concretização da democracia.
Segundo Lenio Luiz Streck a “Constituição foi criada para conter o absolutismo e transformou-se em instrumento para frear o poder das maiorias”. Streck (2009, p. 19) defende ainda a “ideia de uma democracia constitucional e uma democracia majoritária, sendo aquela a responsável por frear as maiorias ocasionais”, tal como ocorre com a proposta de emenda constitucional 33/2011.
O anseio da multidão não pode ser absoluto, devendo o texto constitucional fazer menção aos valores fundamentais da coletividade para que o princípio majoritário não seja utilizado para lesar os ideais ponderados pelo poder Constituinte Originário.
O doutrinador e ministro do STF, Luís Roberto Barroso assim ensina:
[...] Por meio do equilíbrio entre Constituição e deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do diaadia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo. [...]
Esse equilíbrio é fundamental para que um governo não permaneça “engessado” aotexto constitucional, sendo admissíveis, certos progressos oriundos da vontade da maioria (ordinária), sem que para isso seja preciso destruir os aspectos fundamentais do Estado Democrático de Direito, tais como a cláusula pétrea.
Segundo o doutrinador Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 59):
[...] uma verdadeira democracia é aquela onde todas as pessoas são tratadas com igual respeito e consideração. Se é certo que a democracia é o governo segundo a vontade da maioria, não menos exato é afirmar que o princípio majoritário não assegura o governo pelo povo senão quando todos os membros da comunidade são concebidos, e igualmente respeitados, como agentes morais.
O Estado Democrático de Direito está fundado no respeito aos valores essenciais da coletividade e tudo aquilo que pode ser considerado essencial a coletividade constitui uma conquista histórica do povo, devendo ser protegido pelo o judiciário se silente for os outros poderes, por isso a referida PEC não há como prosperar.
Eis o pensamento de Lenio Luiz Streck (2009, p. 18 e 19):
Se compreendesse a democracia como a prevalência da regra da maioria, poder-se-ia afirmar que o constitucionalismo é antidemocrático, na medida em que este “subtrai” da maioria a possibilidade de decidir determinadas matérias, reservadas e protegidas por dispositivos contramajoritários. O debate se alonga e parece interminável, a ponto de alguns teóricos demonstrarem preocupação com o fato de que a democracia possa ficar paralisada pelo contramajoritarismo constitucional, e, de outro, o firme temor de que, em nome das maiorias, rompa-se o dique constitucional, arrastado por uma espécie de retorno a Rousseu.
O que se procura instituir é a oposição vivente entre “democracia constitucional” e “democracia majoritária”, sendo esta, em função de seu modo efêmero, restringida por aquela.
Konrad Hesse ao tratar da jurisdição constitucional como estrutura de conservação da Constituição, doutrina:
Essa tarefa inclui a tarefa do controle dos poderes estatais, do mesmo modo como a tarefa da concretização e aperfeiçoamento do Direito Constitucional que, no entanto, não é exclusivamente e nem sequer em primeiro lugar, assunto da jurisdição constitucional mesmo que essa tenha a dizer a última. A concretização do Direito Constitucional pela jurisdição constitucional decididora autoritariamente serve, nisto, à clareza jurídica e certeza jurídica; ela deve desenvolver efeitos racionalizadores e estabelizadores, o que somente é possível, se a jurisprudência do Tribunal Constitucional segue princípios de interpretação firmes e visíveis e evita, no possível, o recurso a princípios de direito gerais e determinados.
A distinção entre o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e a jurisdição constitucional é realizada por Mauro Cappelletti que explana ser o controle jurisdicional da constitucionalidade “um dos vários possíveis aspectos da assim chamada “justiça constitucional”, e, não obstante, um dos aspectos certamente mais importantes”.
A legitimidade da jurisdição constitucional situa-se no fato de ser preciso harmonizar o “governo da maioria” com a supremacia da Constituição e com a defesa dos direitos fundamentais. Essa legitimidade consente ao Poder Judiciário agir contramajoritariamente, até mesmo porque em episódio de conflito entre o princípio majoritário e a Constituição esta deve preponderar.
A Constituição é soberana as outras leis e concebe a vontade autêntica do povo que não pode ser desobedecida pelo poder constituinte sob o ingênuo argumento deste poder representar a maioria, pois tal maioria é provisória.
Sobre a seriedade de se acatar o texto constitucional e os direitos fundamentais, bem como o imperativo do controle judicial de constitucionalidade, elucida Eduardo Cambi:
Em uma sociedade justa e bem ordenada, as leis não podem comprometer a realização dos direitos fundamentais. Sendo tais direitos fundamentais trunfos contra a maioria, não poderia essa maioria, mas um órgão independente e especializado deveria ter a competência para verificar a existência de ações ou omissões contrárias à Constituição. A jurisdição constitucional representa a grande invenção contramajoritária, na medida em que serve de garantia dos direitos fundamentais e da própria democracia. Caso contrário, se a jurisdição constitucional não existisse ou não detivesse os poderes que tem, ficando a maioria democrática na incumbência de afirmar a prevalência concreta de direitos em colisão ter-se-ia que negar a ideia de que os direitos fundamentais são trunfos contra a maioria e questionar a própria razão de ser dos mesmos direitos fundamentais.
O Poder Judiciário vigia a ação da maioria, lendo-se maioria como sinônima de representação, no alcance em que não admite mudança do texto constituinte se não estiver tal alteração de acordo com a Constituição. Importante se faz entender que a democracia possui limites que impede que o Poder Legislativo sob argumento de deter legitimidade popular possa alterar a Constituição como bem entender, conforme preceitua a aludida PEC 33/2011.
O controle judicial de constitucionalidade ainda que contramajoritário consiste em elemento essencial de um Estado Democrático de Direito, visto que age contra a vontade da maioria ordinária, mas em favor dos valores tidos como essenciais pelaConstituição. É possível perceber que o princípio contramajoritário está pautado no Estado Democrático de Direito, na Supremacia da Constituição e na soberania popular.
Desde a concepção do controle judicial de constitucionalidade há quem ampare a ideia de que tal controle consiste numa espécie de usurpação de poder por parte do judiciário que arrasta inevitavelmente a um risco democrático. Este juízo baseia-se no fato de que os juízes (no Brasil) não são selecionados pelo voto popular e, em tese, não possuem legitimidade democrática, tão pouco representa a pretensão do povo.
Outro entendimento é o de que o Poder Legislativo é soberano por ser constituído pelos representantes eleitos pela coletividade e que por isso o Poder Judiciário deve ser subordinado a ele e não o oposto, Kant afirma que:
Todo Estado contém em si três poderes, isto é, a vontade geral se une em três pessoas políticas (trias política): o poder soberano (a soberania), que reside no poder legislativo; o poder executivo, que reside em quem governa (segundo a lei) e o poder judiciário, (que possui a tarefa de dar a cada um o que é seu, na conformidade da lei), na pessoa do juiz [...]
Com a evolução do Direito Constitucional firmou-se o entendimento de que soberano é o povo e a Constituição além de soberana é suprema.
José Afonso da Silva assevera que:
Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.
Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se conformarem com as normas da Constituição Federal. Todos os Poderes devem reverência à Constituição, e o Poder Judiciário, ao agir contramajoritariamente, somente retifica os excessos perpetrados pelos demais Poderes que sequer deveriam ter sido cometidos.
Apesar de a democracia ser o “governo da maioria” compete ao Poder Judiciário praticar uso do princípio contramajoritário para evitar, como dito, que o Poder Legislativo por meio de Emendas à Constituição extrapole os limites impostos pelo o Poder Contsituinte Originário.
Luís Roberto Barroso ao explicar os motivos pelos quais a Constituição limita as maiorias atuais ensina:
A Constituição de um Estado democrático tem duas funções principais. Em primeiro lugar, compete a ela veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais. […] Em segundo lugar, cabe àConstituição garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos. [...] A Constituição não pode, não deve nem tem a pretensão de suprimir a deliberação legislativa majoritária.
A Constituição é sem suspeita a maior declaração da soberania popular e o controle judicial de constitucionalidade atua contra a maioria atual em amparo a maioria constitucional e da soberania popular.
Dirley da Cunha Junior ensina:
Não obstante contramajoritária em relação aos atos do parlamento, a jurisdição constitucional não é antidemocrática, uma vez que sua autoridade lhe é confiada e assegurada pela vontade suprema do povo, para controlar não só a lisura do processo político em defesa das minorias, como também o respeito pelos valores substantivos consagrados no Estado Democrático.
O Brasil é um Estado Democrático visto que abraça o princípio majoritário, mas é ao mesmo tempo um Estado de Direito que prima pela Supremacia da Constituição e pelo amparo dos direitos fundamentais, abrangendo nesse rol as cláusulas pétreas. Essa precisão de harmonizar tais valores acaba por legitimar a ação contramajoritária do Poder Judiciário e especialmente do STF.
Ascensão do Judiciário como Concretizador de Direitos e Garantias Constitucionais.
O exercício de uma jurisdição constitucional é traço típico do Estado constitucional de Direito. Conforme afirma o constitucionalista Luís Roberto Barroso (2012), esse modelo de Estado só começou a se firmar partir do término da II Guerra Mundial, em meados do século passado.
Antes disso, preponderava um modelo de Estado pelo qual os textos constitucionais eram apresentados como documentos políticos cuja aplicação era submissa a uma maior ação do legislador e do administrador público. O judicial review, nos escassos lugares em que havia, tinha desempenho discreto e sem relevância, e preponderava a supremacia do Parlamento, mediante a centralidade da lei. Com o implemento do Estado constitucional de direito, a Constituição passa a ser tida como norma jurídica, ou melhor, como a maior das normas jurídicas dentro do ordenamento legal.
Nesse novel modelo que se instaura, o texto constitucional é que passa a ocupar colocação de centralidade, e ganha ânimo à supremacia judicial, exatamente pelo exercício da jurisdição constitucional, que se dá em dois formatos comuns de atuação:
A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. [...] A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). (Barroso, 2012, p.5).
É nessa conjuntura de um novo modelo de Estado, que prima pela Constituição e por uma supremacia judicial que, aos poucos, foi se dando a ascensão institucional do Poder Judiciário, por meio desse fenômeno, o qual não é adstrito ao Brasil, mas antes é um acontecimento manifesto em diferentes democracias mundo afora, dá-se a judicialização da política e das relações sociais, onde questões tidas como relevantes, passam a ser deliberadas de forma decisiva, pelo Poder Judiciário e, no Brasil, em especial pelo Supremo Tribunal Federal.
Diferentes motivos têm sido conferidos a esse fenômeno, alguns gerais e outras que seriam mais particulares das circunstâncias jurídicas, políticas e sociais brasileira. Primeiramente, fala-se na necessidade e importância da existência de um Poder Judiciário forte e livre para as democracias hodiernas, há ainda certa descrença com a política brasileira no âmbito do executivo e uma crise de representatividade no poder legislativo dos entes federados, especialmente no que se refere ao Congresso Nacional, que na maioria das vezes coloca-se em posição cômoda ao deixar que questões controversas e polêmicas sejam deliberadas pelo Judiciário, evitando assim, o desgaste frente à opinião pública e às bases eleitorais.
Em nossa nação, a dita judicialização é ainda mais robustecida dado nosso extenso modelo de constitucionalização, que é bastante amplo, e a vasta extensão do exercício do controle de constitucionalidade, que combina características do modelo americano (difuso e concreto) com o modelo europeu (concentrado e abstrato).
Dentro dessa conjuntura, é clara e inegável a existência de um ativismo judicial, esse visto, não como uma alternativa política do Judiciário, mas como um acontecimento proveniente da representação institucional, e até constitucional, que vige em diversos dos ordenamentos jurídicos, em meio à os quais localiza-se o brasileiro. Os magistrados têm sido provocados, as demandas têm sido levadas ao crivo do Judiciário e este não pode negar-se a deliberar-se sobre as mesmas, não havendo opção senão pronunciar-se sobre a controvérsia.
A expressão ativismo judicial foi empregada pela primitiva vez nos Estados Unidos por Arthur Meier Schlesinger, um historiador norte-americano, em um artigo que se aludia à Suprema Corte americana. A conjuntura era a ocasião do New Deal, circunstância na qual o referido tribunal ocupou função essencial na acepção de políticas públicas frente ao então presente colapso econômico global. Não obstante sejam versos antigos, a definição de Schlesinger acerca da divisão que se deu na Suprema Corte merece ser transcrita.
Deu-se no tempo a polarização de duas coligações principais: de um lado os comandados por Hugo Black e Willian Douglas, os quais percebiam ser inteiramente possível a ingerência do Tribunal em assuntos de políticas públicas; de outro, o grupo de Felix Frankfurter e Robert Jackson, os quais divergiam da primeira apreciação.
Logo se apreende que a polêmica é remota. A noção de ativismo judicial satisfaz a uma mais intensa e dilatada participação do Poder Judiciário em campos de ação natural característica dos outros dois poderes, a fim de materializar valores e princípios abraçados pelo texto constituinte. Em se tratando de um Tribunal constitucional, tem-se ainda o alargamento de uma jurisprudência dita progressista, sobretudo no que tange aos direitos fundamentais e às garantias individuais.
No Brasil, no campo do Supremo Tribunal Federal, são múltiplos os exemplos:
A enunciação que se segue, meramente exemplificativa, serve como boa ilustração dos temas judicializados: (i) instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); (ii) criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3367); (iii) pesquisas com células-troncos embrionárias (ADI 3510/DF); (iv) liberdade de expressão e racismo (HC 82424/RS – caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF), (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91952 e Súmula Vinculante nª 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais (ADI 3330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº 13); (x) não-recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130).5 (BARROSO, 2011, p.8).
Alguns outros julgados de grande visibilidade do mesmo modo poderiam ser lembrados, tais como o julgamento do mote relativo à importação de pneus usados (ADPF 101/DF), do impedimento ou não do uso do amianto (ADI 3937/SP) e um dos principais julgamentos da história hodierna do STF e um dos iniciais a ser lembrado quando a matéria é ativismo judicial, dadas as dissensões especialmente de ordem religiosa que o contexto abarca: a possibilidade de existência das uniões estáveis homoafetivas (ADPF 132 e ADI 4277).
Dizem alguns que foi a partir do julgamento deste derradeiro caso, coligado ao recente reconhecimento de interpelação terapêutica da gestação de fetos anencéfalos que induziu o Deputado Federal Nazareno Fonteles (PT/PI), componente da bancada evangélica, a formular a já referida Proposta de Emenda Constitucional número 33/2011.
O que há de comum em todos os eventos mencionados é que neles nota-se certo distanciamento dos Tribunais de sua atividade típica de aplicação e interpretação da legislação existente e vigente, para uma função mais proativa que se equipara à criação do próprio direito, interferindo, assim, no âmbito de competência do Legislativo.
Nota-se uma inquietude institucional entre os independentes, porém imbricados, poderes da República, em especial o Legislativo e o Judiciário. Importante ressaltar que tal tensão é também existente em um contexto maior, isto é, uma inquietude imanente e natural entre Constitucionalismo e Democracia.
Como bem assevera Michel Rosenfeld:
De fato, há uma tensão importante entre constitucionalismo e democracia. Não é óbvio que os dois devam caminhar juntos. Há muitas definições de democracia. Eu adotarei aqui uma definição que considero uma versão simplificada: democracia é a regra da maioria, a regra majoritária. É uma forma política de organização, um sistema político em que as decisões que são contestadas resultam do voto da maioria. Dessa forma, constitucionalismo e democracia estão em lados opostos. Numa democracia, os direitos constitucionais vão diretamente contra a vontade democrática. A liberdade de pensamento ou de expressão, e aqui pode-se comparar uma monarquia a uma democracia, realmente significa proteger os pontos de vista com os quais a maioria não está de acordo, porque os pontos de vista com os quais a maioria concorda não precisam de proteção constitucional. A maioria tomará conta de si mesma, por meio do processo legislativo e do devido governo. Parenteticamente, estou assumindo que nós temos uma democracia em funcionamento. Muitas coisas que são chamadas de democracias não são realmente democracias que funcionam, e as maiorias de fato não têm o poder. No entanto, nas democracias que funcionam, os direitos constitucionais deveriam ser, em certa medida, antidemocráticos.
Ora, é dever acastelado pelo instituto das cláusulas pétreas a guarda e defesa daConstituição, como esta mesma bem assegura. Guardar a Constituição é velar para que esta não seja modificada de modo a atingir a si mesma, sendo fundamental o controle independente de emendas constitucionais, tendo em vista o que prediz, oparágrafo 4º do art. 60 da CF/88 (CFRB/88).
Guardar a Constituição significa zelar para que os atos normativos não postulem contra o Texto Magno, guardar a Constituição é, precípua e essencialmente, certificar que os princípios, valores e ideais que norteiam a Constituição Federal sejam satisfeitos. Direitos como a igualdade, dignidade da pessoa humana, liberdade, direito a um meio ambiente equilibrado, à saúde, educação, segurança, cultura, lazer, enfim, todo o extenso rol de direitos fundamentais e garantias individuais indicados pelo texto constitucional devem ser garantidos pelo Supremo Tribunal Federal, não apenas meramente visualizados. Tais direitos são garantias dos cidadãos, e necessariamente hão de ser protegidos pela República Federativa brasileira, não interessando se trata de função típica do Executivo, Legislativo ou do Judiciário.
Ao longo da história recente da República brasileira, tem-se averiguado, não raras vezes, o descumprimento por parte do Estado das garantias constitucionais e direitos individuais do cidadão, principalmente por parte do executivo e do legislativo. Tal desrespeito, se dá de forma explícita e principalmente de forma implícita, onde há omissão voluntária e consciente dos poderes da república, com flagrante desrespeito ao texto constitucional, restando assim certo vácuo de poder; no qual não são exercidas as atribuições devidas.
É diante desse cenário de omissão dos poderes Executivo e particularmente do Legislativo que se deu a já mencionada ascensão institucional do Poder Judiciário, o qual, pela judicialização dos conflitos, granjeou papel de maior relevância na democracia brasileira, servindo até de referência para os anseios da coletividade.
O espaço de poder que fora preenchido pelo Poder Judiciário, foi na verdade, cedido pelos outros poderes, vez que os mesmos não efetuavam o controle e as funções que lhes eram devidas. Agora, vendo-se em descredito em relação à opinião pública, o Poder Legislativo tenta forçosamente reaver um espaço de poder que por anos menosprezou. Passa-se agora a análise da Proposta de Emenda à Constituição 33/2011.
A Proposta de Emenda a Constituição nº 33/2011
O aprendizado democrático vindica que incessantemente os poderes estatais desenvolvam a harmonia exigida pelo artigo 2º da Constituição Federal, a sombra de se deflagrar uma querela institucional, tão nociva à República Federativa do Brasil.
A PEC 33/2011, cuja constitucionalidade foi admitida pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados no dia 24 de abril de 2014, objetiva expandir a competência do Congresso Nacional para sustar atos normativos do Poder Judiciário que extrapolem o poder regulamentar, além de condicionar a eficácia das súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal à aceitação do Congresso
O autor da proposta, o relator Deputado Nazareno Fonteles, notabiliza a importância da PEC 33/2011, sustentando a necessidade da minoração dos poderes normativos do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral, dizendo ainda que “não deve o Poder Legislativo consentir com a tese de que a Suprema Corte representa um ‘arquiteto constitucional”.
A razão da existência da PEC 33 de acordo com a justificativa proposta é recompor o equilíbrio entre os poderes, visando fortalecer o Poder Legislativo, renovando a sua competência legislativa plena, além de reorganizar os mecanismos que o Poder judicante dispõe para efetuar o controle de constitucionalidade.
Observando tanto a justificação da Proposta de Emenda à Constituição, como o voto favorável do Relator, verifica-se que os primordiais argumentos da PEC, são os seguintes:
a) A atividade judicial praticada pelo Supremo Tribunal Federal transfere questões significativas do Legislativo para o Judiciário, de modo que tal comportamento não possui legitimidade democrática, transgredindo a separação dos poderes e a soberania popular;
b) o Supremo Tribunal Federal vem agindo como legislador positivo, excedendo a sua competência constitucional;
c) A súmula vinculante transmudou-se em um mecanismo inconstitucional considerando-se que ela possui “força de lei”, permitindo que o STF sobreponha de oficio a atividade legiferante.
Eis o contexto político e social da proposta de emenda à constituição de nº 33 do ano de 2011.
Contexto e a reação política da PEC 33/2011.
Surpreendentemente, a Proposta de Emenda Constitucional 33 foi apresentada no dia 25/05/2011 pelo Deputado Nazareno Fonteles (PT), vinte dias depois que STF reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, vide Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. No tempo, como dito acima se especulou que a proposta de emenda à constituição fosse uma reação da bancada religiosa da Câmara em retaliação à Decisão do Supremo e também pelo o julgamento da Ação Penal de nº 470, conhecida como “Mensalão”.
Ao tratar sobre o tema o ministro do STF, Gilmar Mendes em entrevista afirmou o seguinte:
“Não há nenhuma dúvida, ela é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição. É evidente que é isso. Eles [CCJ] rasgaram a Constituição. Se um dia essa emenda vier a ser aprovada é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal. É disso que se cuida”.
O ministro asseverou ainda que a matéria não poderia ser aprovada por votação simbólica, verbis:
"É recomendado que haja cautela em relação a isso. O que ficou entendido nesse episódio é o fato de uma matéria dessa gravidade ter sido aprovada por aclamação, por votação simbólica, sem uma manifestação em sentido contrário. É constrangedor, eu acredito por uma comissão que se chama de Constituição e Justiça. Onde está a constituição e a justiça nesta comissão?"
O ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski e hoje presidente do Supremo Tribunal Federal em entrevista ao portal do Globo, em Abril de 2013, afirmou que os Poderes da República permanecem em harmonia, mesmo com aprovação da proposta pela CCJ, vejamos:
"Creio que os poderes da República estão funcionando normalmente. Estranho seria se não houvesse atividade. A falta de atividades dos poderes é que é própria de ditaduras, de regimes autoritários. Os poderes estão funcionando. Cada qual toma as atitudes que entendem dentro de sua esfera de competência e assim é que funciona a democracia. Quando os poderes agem dentro de sua esfera de competência, a meu ver, não há o que se falar em retaliação. E muito menos crise. Pelo contrário, os poderes estão ativos, funcionando e não há crise nenhuma."
Em matéria veiculada pelo portal de notícias da Globo (G1) o ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos se mostrou cuidadoso em relação à aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da referida PEC, afirmando o seguinte:
“Eu acho que é uma hora de ter muito bom senso para entendermos que, da mesma forma que erra o Judiciário quando tenta legislar, erra o Legislativo quando tenta julgar. É preciso compreender que não podemos afrontar os poderes constituintes, nem o Legislativo na sua função de legislar, nem o Judiciário na sua função de julgar”.
O Ministro do STF, Marco Aurélio Mello enfatiza que a PEC 33/2011 fere a cláusula pétrea da separação de poderes. Disse o Ministro em entrevista ao portal de notícias da Câmara Federal:
Não creio que para a sociedade brasileira, para o almejado avanço cultural, essa submissão dos atos do Supremo seja boa, ao contrário é perniciosa. E envolve, eles têm que estar alertas quanto a isso, uma cláusula pétrea da República brasileira.
O Presidente da OAB Goiás, Henrique Tibúrcio, ao tratar sobre o tema no artigo intitulado “PEC 33 afronta a Constituição”, afirma dentre outras coisas que:
A PEC 33 afronta a interdependência dos três poderes e a própria harmonia entre eles, ferindo a Carta Magna. Curioso é que, em entrevista sobre o assunto, o autor da referida PEC justifica que o Supremo “exorbita” suas funções e o Congresso Nacional sofre “humilhação” pela atuação da Corte. O que estarrece, na verdade, é que a volta da PEC à luz das discussões no Congresso Nacional coincide com o julgamento da Ação Penal 470 - mensalão, pela Suprema Corte, que condenou 25 réus, entre eles o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, o ex-presidente do PT, José Genoino, e os deputados federais João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP). Portanto, qualquer mudança na atuação do STF que signifique submissão ao Congresso Nacional é, além de inconstitucional, e, neste momento, descabido e grosseiro casuísmo.
O Partido Social da Democracia Brasileira (PSDB), através do deputado federal Carlos Sampaio, líder do na Câmara dos Deputados, impetrou Mandado de Segurança (MS 32036), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo o arquivamento da Proposta de Emenda à Constituição 33/2011, que como já dito trata de alteração na sistemática do controle de constitucionalidade de normas realizado por tribunais e pela Suprema Corte.
Na ponderação do parlamentar, a PEC tende “a abolir cláusula pétrea” daConstituição Federal, tal como exposto ao longo desta obra, ao confrontar o parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal, que afiança que o princípio da separação dos Poderes não pode ser abolido por meio de emenda à constituição.
“Permitir que o Congresso Nacional ou a população decidam pelo voto se uma cláusula pétrea pode ou não ser violada por emenda à Constituição é acabar com a existência das cláusulas pétreas”, sustenta o deputado no mandado de segurança.
Ressalta que o controle de constitucionalidade tem atitude contramajoritária e sua dependência ao controle popular “desvirtuaria completamente esse importante instrumento”.
No remédio constitucional, o deputado assevera ainda que a tramitação da proposta infringe seu direito líquido e certo de não ser compelido a deliberar sobre eliminação de cláusula pétrea. Nesse sentido, ele solicita a concessão de liminar para interromper o trâmite processual da PEC. No mérito, demanda o reconhecimento da inconstitucionalidade da tramitação da proposta e o seu arquivamento. O parlamentar menciona o artigo 7º da Lei 12.016/2009, que regula o mandado de segurança individual e coletivo. O dispositivo institui condições para a permissão de liminar, como a relevância do fundamento, que conforme o deputado seriam “os riscos de conflitos institucionais” e a “ineficácia da medida”.
O ministro Dias Toffoli foi designado relator para julgar o respectivo Mandado de Segurança, e em decisão monocrática houve por bem indeferir a liminar requerida na inicial, sendo que o mandado de segurança continua em trâmite e encontra-se concluso ao relator desde o dia 19/09/2014, tendo como número Único: 9987870-59.2013.1.00.0000.
A inconstitucionalidade material da PEC 33/2011
A PEC apresentada visa encurtar a esfera de atuação do Supremo Tribunal Federal, criando barreiras e comprometendo a agilidade e a eficácia das suas deliberações, pois não se pode, por meio de emenda constitucional, dificultar o funcionamento do Supremo Tribunal Federal enquanto Corte Constitucional.
Introdutoriamente cabe constatar que a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, depois de discutir a respeito de uma Corte Constitucional que deveria ocupar-se, primordialmente, do controle de constitucionalidade das leis, optou pela continuidade do Supremo Tribunal Federal, conservando sua competência e ampliando substancialmente o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Onde a maior parte das controvérsias constitucionais significantes passou a ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal, por meio do controle em tese das normas, quando o Pretório Excelso por vezes adota postura de tribunal constitucional, analisando em abstrato a compatibilidade dos atos jurídicos com a Constituição Federal.
Salienta-se que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade vigente foi uma escolha do Constituinte Originário, que inseriu, no dispositivo relativo às competências do Supremo Tribunal Federal, a atribuição vital de proteger e guardar a Constituição Federal.
Lastimavelmente, a Comissão de Constituição e Justiça ao aprovar a referida proposta de emenda à constituição incorreu em dois nefastos equívocos, visivelmente atentatórios à cláusula pétrea da Separação de Poderes, aspirando por via reflexa instituir um ilegítimo controle externo ao Poder Judiciário, quais sejam:
a) a confusão conceitual do poder regulamentar e do poder normativo primário;
b) e a investida de obstaculizar o exercício da jurisdição constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
O primeiro desacerto diz respeito à confusão que a proposta faz entre poder regulamentar, a que se alude a redação do inciso V, do artigo 49 da Constituição e a existência de poder normativo primário convencionado pelo legislador constituinte ao Poder Judiciário como ferramenta para o exercício de suas aptidões constitucionais.
A Assembleia Nacional Constituinte e o Congresso Nacional conferiram ao Poder Judiciário o poder de emitir normas primárias sobre os assuntos ajustados nos artigos96, I, a e 103-B do texto constitucional, que não se confunde com a regulamentação concretizada pelo Poder Executivo das leis criadas pelo Poder Legislativo e, por conseguinte, por isso, passíveis de sustação caso abusem dos alcances legais.
É constitucional o fundamento para o exercício do poder normativo pelo Poder Judiciário, fixado dentro do preceito do princípio das separações dos poderes, e, logo, inadmissível, sem que se assinale insulto a sua independência, a possibilidade de criação de mecanismos de interferência externa, tal como propõe a PEC 33/2011.
O segundo equívoco, ainda mais grave que o primeiro, é aquele que anseia a limitação da mais importante incumbência do Supremo Tribunal Federal, qual seja, a guarda da Constituição Federal, conforme a redação do artigo 102 do texto constitucional, que estabelece ser alçada da Corte, o exercício da jurisdição constitucional.
Sobre a legitimidade da jurisdição constitucional, o Professor LUÍS ROBERTO BARROSO ensina:
“O Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionalidade, motivação, correção e justiça.”
A PEC 33/2011 declaradamente consente a ingerência do Congresso Nacional em assunto jurisdicional, vez que súmulas vinculantes e decisões abstratas com implicações vinculantes pronunciadas pelo Supremo Tribunal Federal não são atos normativos, mas sim, consubstanciam-se em consolidação das decisões da Corte em sede de controle concentrado.
Alexandre de Moraes em seu artigo intitulado “A PEC 33/2011 cria uma guerrilha institucional inútil”, diz que:
A ideia de controle de constitucionalidade está relacionada a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, o que, obviamente, depende da realização de interpretação da legislação perante o texto constitucional. O Supremo Tribunal Federal não pretende ser o “arquiteto constitucional”, como referido pela CCJ, função esta exercida pela Assembleia Nacional Constituinte, mas jamais poderá recusar sua mais importante competência, de ser o guardião daConstituição, com ampla possibilidade de utilização das técnicas de interpretação constitucional como instrumento de mutação informal de seu texto, mediante compatibilização de seus princípios com as exigências e transformações históricas, sociais e culturais da sociedade, principalmente para concretização e defesa integral e efetividade máxima dos direitos fundamentais.
A Assembleia Nacional Constituinte, assim como muitos dos ordenamentos jurídicos democráticos pós 2ª Guerra mundial sagrou o Poder Judiciário como guardião final do texto constitucional, e o Supremo Tribunal Federal como seu maior intérprete, resguardando esse desígnio com a mantilha da cláusula pétrea da separação de Poderes (CF, artigo 60, parágrafo 4º, III), para impedir ocasional “ditadura da maioria” em prejuízo dos direitos fundamentais das minorias, tal qual aconteceu na Europa.
Citando Alexandre de Moraes:
A aprovação final da PEC 33/2011 configuraria ostensivo mecanismo de controle externo à atividade do Poder Judiciário, incabível em nosso ordenamento jurídico, pois possibilitaria ao Congresso Nacional a fiscalização e sustação dos atos normativos editados por aquele poder, sejam aqueles editados no exercício do poder normativo primário (atos do Conselho Nacional de Justiça, regimentos dos tribunais), sejam aqueles editados a partir de consolidação de interpretação constitucional legítima (resoluções do TSE); além de gerar direta ingerência do Legislativo no exercício da jurisdição constitucional pelo Supremo Tribunal Federal
Nos termos de Ferrajoli a legitimação da jurisdição e do STF:
“Não tem nada a ver com a da democracia política, ligada à representação, pois não deriva da vontade da maioria. O seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. E, todavia é uma legitimação democrática, que os juízes recebem da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sob os quais se baseia aquilo a que chamamos ‘democracia substancial”.
A força e a exigência de um tribunal constitucional encontram-se exatamente nas lides que abarcam matéria constitucional, na qual o chefe do poder executivo e o parlamento são partes, na acepção de que são suas ações que estão sendo discutidas, e não dispõem da isenção necessária para analisar a legitimidade de seus atos. Por isto, propugna Kelsen a imputação da guarda da Constituição a uma corte constitucional, considerando como precárias a atuação do legislativo e do executivo como guardiões da Constituição.
A autonomia e simetria entre os Poderes da República encontram-se prestigiado pela Constituição Federal e abrigada por distintos mecanismos de controles mútuos que precisam, efetivamente, ser empregados impedindo dessa forma, a tentativa de criação inconstitucional de estruturas que levem a possibilidade de guerrilha institucional.
Na questão da alteração do quórum para declaração de inconstitucionalidade, é ocorrência manifesta que a atividade interna dos órgãos colegiados dos Poderes da República é estabelecida nos Regimentos Internos dos mesmos, dessa forma, tanto as sessões colegiadas dos órgãos legislativos federais e estaduais, como as sessões colegiadas dos órgãos judiciários federais e estaduais satisfazem aos rituais prescritos em cada Regimento Interno, que é organizado por cada órgão levando em conta sua realidade financeira e administrativa.
Na hipótese específica do Judiciário, a determinação sobre a atividade dos órgãos colegiados incumbe privativamente aos próprios tribunais, como preceitua cristalinamente o art. 96, I, a e b, da Constituição Federal da República, in verbis:
Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;
Mesmo que não estivesse previsto no texto constitucional, que diga-se de passagem inserto pelo Poder Constituinte Originário, dizer-se somente que as modificações sugeridas na presente PEC “não pretendem atingir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico e os direitos e garantias individuais”, como aludiu o relator, não arreda o fato de que este e outros representam inconteste tentativa, via legislativo, de ingerir-se em matéria “interna corporis” do Poder Judiciário, violando prontamente o princípio constitucional da separação dos Poderes.
Faço minhas as palavras do Deputado Paes Lamdim (PTB-PI) ao apresentar seu voto em separado na CCJC, verbis:
Por fim, qualquer proposta que altere o quorum de votações de qualquer órgão do Poder Judiciário, submetendo e condicionando o efeito de seus atos à aprovação do Legislativo, sem que tal proposta tenha origem em autorização do próprio Poder Judiciário, ainda que sob os argumentos de que tais atos não seriam tipicamente judiciais (caso da súmula vinculante) ou que poderiam se revestir de mais legitimidade caso se submetessem à soberania popular, apenas reduziria o Poder Judiciário a um Poder sem poder.
Em síntese, a PEC/33 se mostra uma reposta ao papel realizado pelo Poder Judiciário no exercício das suas atribuições, que, em decorrência da judicialização e do ativismo judicial, tem obtido maior visibilidade e credibilidade social na execução dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. O Poder Judiciário é instituição fundamental para o amparo do regime democrático, e deve sim atuar de forma enérgica na efetivação de direitos fundamentais, desde que respeitados os preceitos constitucionais.
O momento como dito acima pelo qual passa o Poder Legislativo é de carência de legitimidade, vez que deixou de ser rotulado como um Poder omisso e sem credibilidade, e passou a ser efetivamente retratado como tal.
A Proposta de Emenda Constitucional 33/11 não se apresenta meio compatível para reaver tal credibilidade e o equilíbrio entre os Poderes, cabendo somente ao Legislativo o ônus de revelar o seu comprometimento com o interesse público mediante políticas hígidas, efetivas e éticas, somente desta forma poderá readquirir sua legitimidade democrática frente à sociedade, vez que se apresentasse qualquer fundamento o argumento de que a subordinação dos atos do Judiciário poderia cooperar para o diálogo e a harmonia entre os Poderes, e conservar a separação entre eles, satisfaria então dedicar a mesma sistemática ao Legislativo e Executivo, submetendo os atos e as normas a serem produzidas a consulta popular, mediante os institutos do Referendo e Plebiscito.
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