Apontamentos sobre o sigilo médico

Dever de sigilo

27/10/2015 às 12:29
Leia nesta página:

O texto traz apontamentos sobre as questões ético-legais do sigilo profissional médico, ressaltando a importância da preservação da confiança depositada nos profissionais da saúde.

“O que no exercício ou fora do exercício e no comércio da vida eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar, conservarei como segredo.” (Hipócrates)

O sigilo profissional diz respeito ao segredo cujo domínio de divulgação deve ser restrito a um cliente, uma organização ou um grupo, sobre o qual o profissional responsável possui inteira responsabilidade.

Segundo Hermes Rodrigues de Alcântara:

“É uma obrigação e um direito irmanados da moral e da lei, que o médico tem, diante do paciente,  de não revelar fatos, considerados sigilosos, que tome conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício de sua profissão.  É um daqueles imperativos hipotéticos, da teoria de Kant, porque dele depende a confiança que a medicina precisa do paciente, para que seu fim seja alcançado.”.

Note-se que, com a evolução da sociedade, surgiram diversas profissões tendo cada uma delas sua demanda específica. Algumas, por estarem diretamente ligadas à esfera íntima das pessoas, passaram a ser reguladas por normas específicas, como é o caso do sigilo profissional médico.

Em um passado próximo, o sigilo era considerado um dever do médico. No século XX surge uma preocupação de integrar o segredo médico ao âmbito de direito do cidadão, passando a ser protegido por uma série de Constituições e Códigos Deontológicos, Civis e Penais em todo o mundo.

Estudiosos que abordam o assunto da relação do médico com outros indivíduos costumam enfocar somente em aspectos relativos ao paciente, no entanto, deve-se considerar uma visão macro, ou seja, na simples relação médico-paciente está integrada a figura da sociedade em seus desdobramentos e conclusões, não apenas a figura do paciente.

No que tange ao cômputo jurisdicional, a quebra do sigilo médico, um ato de extrema delicadeza, só devendo ocorrer em casos especiais após ter o médico, inclusive, consultado o paciente quanto à sua anuência e, com muita reserva, a fim de não atingir a imagem daquele.  Assim, aquilo que não atinge os deveres éticos, deve obediência ao imperativo legal.

Estatui o artigo 5º da Constituição da República.

Constituição Federal:

“(…) Art. 5º

I – ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(…)
X –  são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (…)
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”.

Com efeito, os conselhos de fiscalização profissional detêm personalidade jurídica de direito público, sendo autarquias federais incumbidas, legalmente, do exercício de atividades de polícia sobre as profissões regulamentadas. São entidades criadas como prolongamento do Estado para o atendimento do interesse público, pois o exercício de atividades do Poder Público, decorrentes do poder de polícia, far-se-á sempre em função do interesse da coletividade. Suas resoluções têm força normativa e devem ser seguidas conforme o ordenamento jurídico pátrio.

Relata o estudioso e professor Paraibano Genival Veloso de França (Direito Médico, 2009, p. 127):

“O sigilo médico, entre uma época e outra, não é o mesmo. É ele, talvez, nos dias que correm, o mais discutido e controvertido problema deontológico, em virtude dos múltiplos e variados aspectos que se oferecem. Os princípios éticos e jurídicos estabelecidos não se apresentam, muitas vezes, fáceis quanto à sua aplicação prática, em determinadas circunstâncias. Opostamente a outros assuntos deontológicos, o sigilo médico assume aspectos inteiramente filosóficos.”.

Com efeito, a Resolução nº 1.897/2009 de 6 maio de 2009, do Conselho Federal de Medicina, estabeleceu o Código de Ética Médica. Em seu artigo 73, deixou bastante claro a vedação ao médico de fornecer informações concernentes ao paciente. Veja-se:

SIGILO PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. (destaques apostos)

Art. 80. Expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade.

Art. 102. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.

Art. 107. Deixar de orientar seus auxiliares e de zelar para que respeitem o segredo profissional a que estão obrigados por lei.

Art. 108 – Facilitar o manuseio e conhecimento dos prontuários, papeletas e demais folhas de observações médicas sujeitas ao segredo profissional, por pessoas não-obrigadas ao mesmo compromisso.

Art. 117 – Elaborar ou divulgar boletim médico que revele o diagnóstico, prognóstico ou terapêutica, sem a expressa autorização do paciente ou de seu responsável legal.

Para a doutrina, quando há “justo motivo”, é visando o interesse coletivo, ou interesse do paciente, quando esse se encontrar impossibilitado de manifestar sua vontade (o que não é o caso).

“Dever legal” envereda pelo mesmo caminho, sendo tal conceito utilizado com mais frequência quando há uma ordem judicial (como foi o caso nesse processo de exibição) ou expressa previsão legal. Tome-se, por exemplo, o médico que informa sobre doença contagiosa que o paciente vem transmitindo propositadamente. Nesse caso, quando questionado por uma autoridade, ou quando toma ciência de tal prática, o médico tem justo motivo e dever legal de revelar a condição de seu paciente (art. 269, do Código Penal, e Art. 66, II, da Lei de Contravenção Penal).

Para todos os outros casos, o médico está TERMINANTEMENTE PROIBIDO de fornecer tais informações quando não forem EXPRESSAMENTE AUTORIZADAS pelo paciente, em documento assinado de próprio punho.

Não poderia faltar o que diz sobre a confissão o doutrinador cristão Santo Agostinho em magnífica análise:

“O que sei por confissão sei-o menos de que aquilo que nunca soube.”.

Ainda, na mesma resolução, tem-se o artigo 55 que assim reza:

É vedado ao médico

“(…)  Art. 55 – Deixar de fornecer  a outro médico informações sobre o quadro clínico de paciente,  desde que autorizado por esse ou por seu representante legal.”.

Ou seja: o entendimento consolidado de todos os conselhos de medicina do Brasil é no sentido de que o médico somente deve informar sobre a condição de um paciente para outro médico e desde que autorizado expressamente pelo paciente ou seu representante legal. Sobre representante legal, leia-se, entende-se por alguém que tem reais poderes de tutela, curatela ou outorgados especificamente por procuração. Uma mera procuração particular ad judicia não reserva tais poderes.

A ideia de que o segredo médico se trata de uma vantagem cedida ao profissional deve ser suprimida pela imagem de que é um direito concedido ao paciente no que engloba o respeito à sua integridade moral, à sua reputação, devendo, portanto, este titular assegurar o reconhecimento deste direito pelos profissionais médicos.

Além disso, a revelação de um segredo de outrem deve ocorrer somente nos casos mais extremados, e deve-se prezar pelo mínimo de informações possível, a fim de se informar somente o estritamente necessário.

O STF já assentou que é “Constrangimento ilegal exigir-se de clínicas ou hospitais a revelação de suas anotações sigilosas”. (RTJ 24/466)

Descreve Miguel Kfouri Neto em seu livro Responsabilidade Civil Médica que:

“E, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “Esse Código de Ética foi definido pelo E. Supremo Tribunal Federal como norma jurídica de caráter especial, submetida a regime jurídico semelhante ao das normas e atos normativos federais, sendo possível o controle da sua constitucionalidade através de ação direta’ (STJ, Resp. 159.527-RJ, 4ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 29.06.1998, p. 206) (KFOURI, Miguel – Responsabilidade Civil do Médico p.181).”.

No PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 4.384/07 – PARECER CFM Nº 6/10, decidiu-se:

“O prontuário médico de paciente falecido não deve ser liberado diretamente aos parentes do de cujus, sucessores ou não. O direito ao sigilo, garantido por lei ao paciente vivo, tem efeitos projetados para além da morte. A liberação do prontuário só deve ocorrer ante decisão judicial ou requisição do CFM ou de CRM.”.

DAS REPERCUSSÕES PENAIS DA QUEBRA DO SIGILO MÉDICO

Além do dever ético-profissional, que, desrespeitado, surtiria sanções no Conselho Regional de Medica, há também as previsões em outros diplomas legais, podendo haver sanções penais e cíveis para seu descumprimento. Veja-se:

Código Penal Brasileiro:

“(…) Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Pena – detenção de 3 meses a um ano ou multa de 1 a 10 mil cruzeiros.
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Parágrafo único – Somente se procede mediante representação. (…)
Art. 269 – Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória. Pena – detenção de seis meses a dois anos, e multa, de quinhentos a três mil cruzeiros. (…)”.

Código de Processo Penal:

“(…) Art. 207 – São proibidos de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigados pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. (…)”

Lei das Contravenções Penais:

“(…) Art. 66 – Deixar de comunicar à autoridade competente: (…)
II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal. Pena – multa de trezentos a três mil cruzeiros (…)”.

Código Civil:

“(…) Art. 144 – Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, deve guardar segredo. (…)”

Código de Processo Civil vigente:

“(…) Art. 388 – A parte não é obrigada a depor de fatos: (…)
II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.
Parágrafo Único – Esta disposição não se aplica às ações de estado e de família.. (…)
Art. 404 – A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa:(…)
IV – Sua exibição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo; (…)
Art. – 448 – A testemunha não é obrigada a depor de fatos: (…)
 II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo. (…)”

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): “(…)

Art. 169. Será obrigatória a notificação das doenças profissionais e das produzidas em virtude de condições especiais de trabalho, comprovadas ou objeto de suspeita, de conformidade com as instruções expedidas pelo Ministério de Trabalho (…)”.

Já a Resolução nº. 999/80 do Conselho Federal de Medicina, sintetiza os aspectos legais do sigilo médico fazendo referências aos artigos dos vários diplomas legais que apreciam a matéria, sendo os principais os acima citados, e assim aduz em seu bojo:

“O crime de revelação de sigilo médico ocorre quando o médico revela segredo profissional sem justa causa ou dever legal, não sendo obrigado a fazê-lo e até lhe sendo proibido depor sobre fatos relacionados ao atendimento de seus pacientes; também o médico não está obrigado a comunicar à autoridade crime pelo qual seu paciente possa ser processado.
“A revelação do segredo médico é permitida nos casos de abuso e/ou sevícia sexual para apurar responsabilidades; nas doenças de notificação compulsória; nos defeitos físicos ou doenças que ensejem erro essencial quanto a pessoa e levem à nulidade de casamento; nos crimes que não impliquem em processo do paciente; na cobrança judicial de honorários; ao testemunhar o médico para evitar injustiça; nas perícias médicas; nos exames biométricos admissionais e previdenciárias e nos exames de sanidade mental para seguradoras.
“Estão obrigados à observância de segredo profissional todos aqueles auxiliares do médico que participem da assistência aos pacientes, e, até mesmo o pessoal administrativo, em especial dos arquivos médicos.”.

Assim, a responsabilidade médica é de grande enfoque quando o paciente está submisso ao profissional médico e à sua equipe, trazendo em seu âmago o dever da confiabilidade na relação psicossocial–clínica. As consequências danosas, face à conduta do profissional e do paciente, resultam em culpa que terá como dever indenizatório o nexo causal mediante provas, estando, entre elas, as documentais, como o prontuário médico.

No contexto hodierno, as profissões vêm requerendo cada vez mais de seus atuantes uma formação cultural e moral bastante elevada, a fim de poderem solucionar os mais diversos casos que venham a ocorrer no curso da vida.

O médico se vê, portanto, como um juiz de suas próprias ações, um profissional que constantemente se encontra em situações nas quais deve prezar pela prudência e pela moderação. Cabe somente a ele prezar pela dignidade da figura de seu profissional e pela imagem daqueles que a ele confiaram seus segredos mais íntimos, relacionados com a mais indispensável propriedade de todos os tempos, o corpo humano.


BIBLIOGRAFIA

CFM – http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1997_2012.pdf

http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CFM/2000/22_2000.htm

COUTINHO, Léo Meyer. Código de Ética Médica Comentado. Florianópolis: OAB/SC, 4ª edição, 2004.

DE FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 5ª edição, 2005.

DE FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico. Rio de Janeiro: Forente, 9ª edição, 2009.

FERNANDES, Beatriz. O Médico e seus Direitos. São Paulo: Nobel, 2010.

MARIANO, Silva Gonçalves. Justa Causa e Dano Moral. Internet. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1205>.

PESSINI, Leo. Códigos de ética e questões de final de vida. Internet. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/modificacaocem/include/artigos/mostraartigos.asp?id=982>

 

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Sobre o autor
Tertius Rebelo

Advogado especializado e dedicado, principalmente, ao Direito Médico, coordena esta área de atuação do escritório, incluindo as ações de indenização pelo alegado erro médico envolvendo o profissional e os estabelecimentos de saúde, processos de sindicância e processos éticos no âmbito dos Conselhos Regionais de Medicina e Conselho Federal de Medicina.Tem atuação no gerenciamento dos riscos em questões ligadas à propaganda e publicidade em Medicina e demais normas éticas e administrativas. Ainda atua nas ações criminais envolvendo o ato médico, especialmente àquelas em que se discute a acusação de homicídio culposo, lesão corporal, dentre outras.- Membro da Comissão de Direito à Saúde da OAB/RN; - Integrante da Comissão de Revisão do Código de Ética Médica no RN; - Membro da European Association for Health Law; - Membro da World Association for Medical Law; - Diretor de Prerrogativas da Associação dos Advogados do RN – AARN; - Conferencista/Palestrante em Congressos e seminários sobre Direito Médico, Biodireito e Bioética; - Ex-Coordenador jurídico da secretaria municipal de saúde do Município de Guamaré Estado do Rio Grande do Norte, no período de janeiro de 2011 à de agosto de 2012 - Ex-Coordenador jurídico da secretaria municipal de saúde do Estado do Rio Grande do Norte, no período de abril de 2010 à de setembro de 2010; - Procuradoria da República no Rio Grande do Norte - Ministério Público Federal, atuando, no período de 15 de julho de 2005 até 11 de março de 2008, na função de assessor de gabinete do Procurador da República.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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