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Verdades e falácias sobre a troca de arquivos na Internet e o Direito, em um Brasil pós-Napster

22/11/2003 às 00:00
Leia nesta página:

No Brasil, muito tem se falado sobre a troca de mp3 e a criminalização dessa conduta. Como ocorre na maioria dos temas polêmicos ligados à Internet e afetos ao Direito, muitas histórias mirabolantes foram levantadas.

Essas hipóteses, que às vezes se demonstram teratológicas até mesmo do ponto de vista jurídico, hoje orbitam em torno da seguinte questão: até que ponto a troca de arquivos fonográficos (e de outras obras intelectuais) de terceiros é crime?

Toda essa confusão tem sua nascente na sanção presidencial de uma Lei que adicionou quatro novos parágrafos ao art. 184 do Código Penal Brasileiro, que trata especificamente da violação ao direito autoral. A Lei n. 10.695 de 1º de julho de 2003, dentre outras medidas, determinou o seguinte texto normativo:

"Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

§ 3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto."

O tema que ora nos importa é exatamente o concernente aos dois últimos parágrafos – os que mais chamam atenção devido à novidade da matéria e, conseqüentemente, às interpretações controvertidas que geraram.


Napster, KaZaA e Peer-to-Peer

no Brasil: crime?

O parágrafo terceiro dispõe que passa a ser crime a conduta de oferecer ao público qualquer sistema que possibilite a troca de obras intelectuais por meios eletrônicos ou telemáticos, sem autorização expressa do titular, com fim de lucro direto ou indireto. Em outras palavras, a atividade de programas peer-to-peer (P2P), de trocas de arquivos com obras intelectuais, como o Napster e o KaZaA, passou a ser crime no Brasil. De igual forma são tratados sites que disponibilizam esses arquivos. E os proprietários desses programas e sites podem ser punidos com penas que variam de 2 a 4 anos, além da multa.

Esse dispositivo legal provavelmente teve sua inspiração no famoso caso norte-americano RIAA vs. Napster, que a Associação Americana das Indústrias de Gravadoras (Recording Industry Association of América – RIAA) moveu contra os proprietários do programa Napster. Um dos pontos principais analisados foi se os titulares do programa obtinham ou não lucro com os arquivos que eram trocados. Outra questão importante suscitada perante as Cortes Norte-Americanas foi se o Napster teria ou não ingerência sobre as obras distribuídas com seu auxílio, uma vez que em redes peer-to-peer o contato se dá diretamente entre os usuários, sem qualquer intervenção de outro servidor.

O caso foi tão importante para o Direito da Informática Internacional que culminou em um documento publicado este ano (2003) pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School) em conjunto com o GartnerG2, intitulado "Direitos Autorais e Mídia Digital em um Mundo Pós-Napster". Deste, infere-se que a proteção à mídia digital não pode ser baseada apenas na força da Lei.

Deve-se partir de três vetores, quais sejam, tecnologia (elemento tecnológico), educação dos consumidores (elemento cultural) e Direito (elemento Estatal). Mas isto, tendo em vista uma política cultural de flexibilização das bases dos direitos autorais. No Brasil, este posicionamento facilmente encontra seu fundamento na função social que deve ser exercida pela propriedade, princípio de nossa Constituição Federal.


Usuários, download e sua situação no Direito Brasileiro

Já o quarto parágrafo do art. 184 do Código Penal Brasileiro, dentre outras estipulações, prevê que a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto, não se enquadrará nos parágrafos anteriores, ou seja, não será crime punido com penas de 2 a 4 anos e multa.

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O primeiro problema decorrente deste ponto surge quanto à interpretação que alguns deram no sentido de que a cópia privada de um usuário, quando não houver intuito de lucro, não será crime. Isto faria com que usuários dos programas peer-to-peer tivessem o legítimo direito de copiar quaisquer arquivos de obras intelectuais de terceiros, sem autorização, desde que para uso próprio e sem o fim de obter lucro. Do ponto de vista social, esta interpretação talvez pareça quase inexpugnável. Entrementes, enfrenta alguns problemas.

Em que pese esta opinião, a norma incriminadora não tem serventia de legitimar novos direitos, mas sim prevenir condutas lesivas a direitos. O legislador penal jamais traria para si tais atribuições. Além disso, essa interpretação causa ofensa à propriedade intelectual, que não pode ser usurpada, em atenção a tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Em nossa opinião, o que ocorreu foi a previsão legal da possibilidade de cópia única privada, para aqueles que já tinham adquirido a obra legalmente. Fala-se em analogia à cópia de backup prevista na Lei do Software.

Por outro lado, na opinião do diretor jurídico da Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF), Jorge Eduardo Grahl, em entrevista a Paulo Rebêlo, "há o entendimento de que quem copia ou compartilha arquivos com a intenção de economizar por não pagar pelos direitos autorais e impostos, automaticamente está tendo lucro indireto e, portanto, enquadra-se na violação de direitos autorais". Assim, estaria o usuário enquadrado no parágrafo 1º do art. 184 do Código Penal, cuja pena é de 2 a 4 anos, além de multa.

Salvo melhor juízo, lucro indireto pode ocorrer em episódios de sites que disponibilizem arquivos e tenham sua renda proveniente de outras fontes – indiretas, como anúncios de publicidade de terceiros. No caso do usuário, o que passa a ocorrer é a violação ao direito de autor, pura e simples, prevista no caput do art. 184 do Código Penal, punível com penas que variam de 3 meses a 1 ano ou multa.

Na prática, esta interpretação é benéfica a ambas as partes, haja vista que se facilita o procedimento judicial, que passa a ter competência dos Juizados Especiais Criminais, possibilitando transação penal, sem necessitar de um processo criminal propriamente dito.


O caso brasileiro: APDIF vs. Alvir Reichert Júnior

Em 25 de agosto de 2003, menos de dois meses após sua sanção, a Lei n. 10.695/03 fez sua primeira vítima. O paranaense Alvir Reicher Júnior foi preso, sob a acusação de vender mp3 em um site que mantinha, chamado "mp3forever". A prisão foi fruto de uma investigação movida pela Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF). Reicher foi enquadrado nos parágrafos 1º, 2º e 3º da nova Lei.

Também neste ano (2003), a Associação Americana das Indústrias de Gravadoras (RIAA) moveu várias ações contra 261 usuários que trocavam arquivos musicais em redes peer-to-peer. Esta medida judicial perante Cortes de Justiça Norte-Americanas, invés de se tornar conhecida como um efetivo meio de combate à pirataria, tornou-se alvo de sátiras pela imprensa especializada. Dentre os indiciados, há até mesmo uma criança de 12 anos de idade. Os dois casos guardam semelhanças pelo fato de que foram atacados judicialmente indivíduos de relativo pouco potencial ofensivo, particulares, ao invés de se perseguir grandes piratas industriais.

Assim como o Digital Millennium Copyright Act de 1998 fez surgir inúmeros casos nos Estados Unidos da América, as determinações recém introduzidas no art. 184 do Código Penal Brasileiro nos levarão a novas reflexões, que devem considerar o atual cenário global dos direitos autorais.

O mundo não é mais o mesmo e não pode ser tratado como se estivéssemos na era do surgimento da imprensa. A Internet revolucionou contundentemente o acesso à informação. Tudo isso deve ser pesado na adoção de medidas efetivas de proteção à propriedade intelectual, não se olvidando para o aspecto social que esta deve exercer.


REFERÊNCIAS

Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School – http://cyber.law.harvard.edu

REBÊLO, Paulo. Mudança na Lei deixa prender quem baixa mp3. Site do IBDI. http://www.ibdi.org.br/index.php?secao=&id_noticia=178&acao=lendo acessado em 18 de setembro de 2003.

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Sobre o autor
Rodrigo Guimarães Colares

advogado em Recife (PE), integrante de Martorelli Advogados, professor de Direito na pós-graduação em Gestão do Comércio Eletrônico da FAFIRE Business School (agregada à UFPE), diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLARES, Rodrigo Guimarães. Verdades e falácias sobre a troca de arquivos na Internet e o Direito, em um Brasil pós-Napster. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 139, 22 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4412. Acesso em: 28 dez. 2024.

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