1. INTRODUÇÃO
Muito se discute acerca do descompasso entre o avanço da ciência e as leis brasileiras, onde a primeira, em exponencial evolução, acaba por gerar situações não antes previstas e, consequentemente, não regulamentadas pelo nosso ordenamento jurídico.
Um exemplo corriqueiro se dá pelos casos de reprodução assistida que, não antes prevista, acaba por gerar diversos desafios aos julgadores que se deparam com casos complexos e não regulamentados pelo nosso Código Civil.
A reprodução assistida é uma técnica utilizada pelos casais que encontram dificuldades em conceber pela maneira tradicional, sendo a inseminação artificial um dos métodos mais utilizados, onde o material genético do genitor é introduzido na mulher para fecundação intracorpórea.
Um dos aspectos de maior complexidade sobre a questão se dá pela garantia do direito sucessório do herdeiro concebido por meio de inseminação artificial post mortem, assunto que gera até hoje diversas discussões e divergências doutrinárias causadas pela ausência de previsão legal que a regulamente.
Apesar dos diversos e polêmicos pontos levantados sobre o tema, cada vez mais os legisladores e julgadores buscam pacificar e garantir os direitos civis dos filhos gerados de maneira não convencional, sendo que, atualmente, um dos entendimentos mais utilizados é o de que, havendo a anuência expressa do homem para utilização de seu material genético após sua morte, plenos são os direitos sucessórios dos filhos gerados nessas circunstâncias.
Conforme previsto em nosso ordenamento jurídico, o direito a filiação se dá para todos e a igualdade entre os filhos é um preceito constitucional inviolável, devendo ser garantida a proteção àqueles concebidos após o falecimento do autor da sucessão.
Outra exigência atualmente verificada para a presunção da paternidade em casos como este se dá pela implantação de tal material exclusivamente na mulher que se encontrar na condição de viúva, evitando, assim, manobras que visem obter vantagens em procedimentos sucessórios.
Prevalece, portanto, com base nos princípios de igualdade entre os filhos, dignidade da pessoa humana e aplicação da analogia, o reconhecimento dos direitos sucessórios dos filhos concebidos por meio de inseminação artificial após a morte do autor da sucessão, visando, assim, garantir e acompanhar os avanços científicos e sociais.
2. FILIAÇÃO E LEGITIMIDADE SUCESSÓRIA
Primeiramente, visando uma compreensão abrangente acerca do tema a ser abordado, se faz necessário uma sucinta explanação sobre a filiação e caracterização da legitimidade sucessória.
2.1. Filiação
2.1.1 Conceito de filiação:
Pode-se dizer que a filiação, conforme entendimento de diversos doutrinadores, se dá pela relação de parentesco exercida pelo filho em relação a suas figuras paternas. A questão mais complexa é definir de qual forma essa relação de parentesco pode ser adquirida.
Resta evidente que o conceito jurídico de filiação, assim como o de figura familiar, sofreu uma grande mutação decorrente do dinamismo nas relações sociais, bem como dos avanços científico e tecnológico, modificando, assim, o que antes se restringia a aceitação do parentesco consanguíneo.
O Código Civil de 1916 estabelecia uma visão patriarcal da entidade familiar, estabelecendo que o casamento seria o único meio de se constituir família, considerando, consequentemente, como legítimos apenas os filhos gerados dentro desta instituição e ilegítimos os concebidos fora da constância do casamento, não sendo admitido para estes qualquer tipo de reconhecimento. Tais designações eram reflexos de uma centralização da instituição familiar na figura do homem, sendo que no Código de 1916 a mulher não possuía qualquer domínio sobre seu núcleo familiar.
Neste cenário, definia Lafayette Rodrigues Pereira:
Filiação é a relação que o fato da procriação estabelece entre duas pessoas, das quais uma é nascida da outra.[1]
No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua conceituava como:
A relação que existe entre a pessoa (o filho) e as que a geraram (o pai e a mãe). É o vínculo que a geração cria entre os filhos e os progenitores.[2]
Conforme podemos verificar, existia naquela época uma idealização fixa da filiação como sendo um vínculo estabelecido exclusivamente pelo que se entendia como as formas tradicionais, em que um casal gera e dá a luz ao seu herdeiro, o que, com as mudanças sociais e também com o surgimento do instituto da adoção, teve que ser revisto.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu a igualdade entre os filhos, foi ocasionada uma mudança no conceito de filiação e alteração nos valores da instituição familiar e da figura paterna, gerando a chamada desbiologização da filiação, sendo também levado em consideração seu caráter socioafetivo. Agora não mais são reconhecidos apenas os filhos gerados na instância do casamento, com vínculos consanguíneos, mas também aquelas pautadas apenas na relação afetiva.
Apesar da idealização de que os filhos deveriam possuir o vínculo biológico e afetivo, foi legitimado que existem maneiras diversas de filiação, sendo que todas elas mantêm, da mesma, forma a estabilidade familiar, não sendo uma mais importante ou mais legítima que a outra.
Muito influenciado por esse princípio da CF de 1988, o Código Civil de 2002 especificou também a presunção da paternidade aos filhos concebidos por meio de técnica de reprodução assistida, sendo a legislação anterior omissa acerca de tal questão.Assim, com as mudanças provenientes das relações sociais e do cenário atual, passou-se a existir três aspectos distintos de filiação: a filiação jurídica, biológica e afetiva.
Nesse sentido, instaurou-se a significativa importância do parentesco socioafetivo no cenário jurídico, que muitas vezes se sobressai em detrimento à verdade biológica, passando a ser considerado como filho aqueles que realmente o são, independente da maneira de sua concepção, sendo ela pelo método tradicional, pelo reconhecimento judicial ou simplesmente pela relação paternal e maternal constituída.
Nesse aspecto passou a definir Silvio Rodrigues:
Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se as tivessem gerado.[3]
Assim, verifica-se que atualmente existe uma grande flexibilidade social e jurídica quanto ao conceito de filiação, existindo formas distintas e reconhecidas de se estabelecer esse vínculo, seja por meio da adoção, da reprodução assistida ou afeto.
2.1.2 Livre planejamento familiar
Assim como as evoluções sociais interferiram no reconhecimento das formas de filiação, resta evidente também que estas foram muito influentes na estrutura familiar em seu aspecto geral.
A pressão exercida anteriormente sobre a estruturaideal da família foi substituída pela autonomia em formá-la da maneia que melhor lhe aprouver. Cada vez mais nos deparamos com casais que optam por não terem filhos ou até mesmo optam por terem vários, não havendo mais nenhum óbice social que anteriormente restringia essas decisões.
Essa liberdade, além de seu cunho social, é também assegurada juridicamente, sendo especificado em nossa Constituição o livre planejamento familiar, conforme depreende-se de seu artigo 226, §7º[4], o qual assegura de maneira expressa que nem mesmo o Estado pode restringir ou interferir nesse âmbito, seguindo a mesma linha o artigo 1.565, § 2º[5] do Código Civil brasileiro.
Sobre o tema, ensina o professor Arnaldo Rizzardo:
(...)desde que não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal, à família reconhece-se a autonomia ou liberdade na sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credor religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos. Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros". (...) Dentro do âmbito da autonomia, inclui-se o planejamento familiar, pelo qual aos pais compete decidir quanto à prole, não havendo limitação à natalidade, embora a falta de condições materiais e mesmo pessoal dos pais. Eis a regra instituída no §2º do art. 1565: "O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.[6]
A redação do artigo constitucional especifica que é dever do Estado proporcionar os recursos educacionais e científicos para que o livre planejamento seja exercido, evidenciando, assim, a legitimidade das formas de reprodução humana assistida. Analisando criticamente a redação do artigo, torna-se possível afirmar, inclusive, que o acesso a esses métodos é um direito assegurado constitucionalmente, sendo a reprodução assistida uma forma clara de planejamento familiar.
Sobre a questão, reforça Maria Berenice Dias que:
(...) o acesso aos modernos métodos de concepção assistida é igualmente garantido em sede constitucional, pois o planejamento familiar também significa buscar a realização do projeto de parentabilidade.[7]
Assim, conclui-se que, uma vez que se trata de um direito fundamental, não deve haver restrições ou obstáculos ao seu cumprimento, sendo sua aplicabilidade reforçada como uma forma de condição de subsistência de nossa carta magna.
2.1.3 Princípio da dignidade da pessoa humana
Conforme pôde ser verificado, é imprescindível que o cidadão detenha de liberdade em seu planejamento familiar, não admitindo-se interferências externas. Ocorre que, conforme verifica-se no próprio texto do artigo constitucional que disciplina o livre planejamento familiar, este não podendo confrontar-se com outro preceito constitucional de suma importância, o princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecido pelo artigo 1º, inciso III[8] da Constituição Federal.
Sobre o tema, a professora Ana Cláudia S. Scalquettedisserta:
(...) o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é princípio vetor do Direito de Família, pois garantir o respeito aos direitos dos membros da família, assegurando-lhes um sistema protetivo que coíba abusos e propicie o desenvolvimento de uma vida saudável, é, sem dúvida, aquilo que deve nortear qualquer interpretação e normatização, envolvendo as relações familiares.[9]
Assim, o que verifica-se é a necessidade de estabelecer um planejamento pautado no limite do que seria digno a cada indivíduo da família, não sendo certo que se use tal liberdade para, por exemplo, gerar filhos desenfreadamente sem a estrutura mínima para que possam ter uma vida digna.
O direito à dignidade é assegurado pelo Estado, que tem também o dever de garantir, assim como a família e a sociedade, que às crianças e adolescentes sejam disponibilizados todos os mecanismos que a façam valer, conforme disposto pelo artigo 227 da Constituição Federal[10].
O princípio da dignidade da pessoa humana atrelado ao livre planejamento familiar é a base para assegurar que seja constituída uma família saudável onde cada um de seus indivíduos possua uma vida dentro dos padrões mínimos estabelecidos como aceitáveis, protegendo, assim, os incapazes de estarem a mercê do que lhes foi imposto sem planejamento.
2.1.4 Princípio da igualdade entre os filhos
Conforme já abordado anteriormente, no Código Civil de 1916 era bem clara distinção feita entre os filhos, nomeando como legítimos aqueles concebidos dentro da instituição do casamento, e ilegítimos aqueles que foram gerados por relações extra matrimoniais, não sendo estes reconhecidos nem tampouco possuidores dos mesmos direitos outorgados aos “legítimos”.
Naquela época, a palavra “filho” carregava consigo uma série de distinções e adjetivos que eram embasados na maneira e no contexto em que este foi concebido. Ao que parecia, ser chamado de filho era um benefício apenas dos que se enquadravam no padrão estabelecido pela sociedade de figura familiar, não cabendo àqueles que, apesar de carregarem o vínculo genético, não foram concebidos da maneira que se via como certo.
Sobre a questão, acrescenta Maria Berenice Dias:
(...) até o advento da Constituição, que proibiu designações discriminatórias relativas à filiação (CF 227 § 6º), filho era exclusivamente o ser nascido 180 dias após o casamento de um homem e uma mulher, ou 300 dias depois do fim do relacionamento.[11]
Com o advento da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227 § 6º[12] e, posteriormente, do Código Civil de 2002 em seu artigo 1.596[13], foi assegurada aigualdade entre os filhos, fato este que contrasta em muito com o cenário anterior. No novo código, passaram a ser tratados com isonomia todos os filhos, independente da maneira como foram gerados, sendo os pais legalmente casados ou não.
Analisando os dispositivos legais e superada a discriminação entre os filhos, não se pode admitir, nem tampouco foram trazidas pelo Código Civil de 2002, limitações de tal isonomia aos filhos concebidos por meio das técnicas de reprodução assistida, sendo, assim, presumida sua igualdade em relação aos demais.
Mais uma vez recorrendo à professora Ana Cláudia S. Scalquette:
(...) também é missão que garante o tratamento equânime a busca de soluções ao impasse jurídico que se formou em torno do possível nascimento de filhos decorrentes de reprodução artificial, sob pena de caracterizarmos novamente os filhos, protegendo uns em detrimento de outros.[14]
Assim, entende-se que os conflitos jurídicos gerados concernentes à reprodução assistida, assim como nos demais casos, deverão levar em conta sua dimensão para a busca da melhor solução, mas que esta venha no sentido de manter o tratamento igualitário dos filhos previsto constitucionalmente.
2.2 Sucessão
2.2.1 Conceito
Conforme conceitua Carlos Roberto Gonçalves, a sucessão, em sentido amplo significa:
(...) o ato pelo qual uma pessoa assume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de determinados bens. Numa compra e venda, por exemplo, o comprador sucede ao vendedor, adquirindo toso os direitos que a este pertenciam. De forma idêntica, ao cedente sucede o cessionário, o mesmo acontecendo em todos os modos derivados de adquirir o domínio ou o direito.[15]
No caso mencionado, a sucessão que ocorre é a chamada inter vivos, ou seja, aquela ocorrida por indivíduos vivos. A sucessão que realmente interessa ao presente estudo, bem como ao direito das sucessões, é aquela causa mortis, ou seja, decorrente da morte de alguém.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves também conceitua:
O referido ramo do direito disciplina a transmissão do patrimônio, ou seja, do ativo e do passivo do de cujus ou autor da herança a seus sucessores.
A expressão latina de cujus é abreviatura da frase de cujus sucessione (ou hereditatis) agitur, que significa “aquele de cuja sucessão (ou herança) se trata”[16].
Por essa definição verificamos que para que ocorra a sucessão, se faz necessária a presença de três requisitos: ocorrência de morte ou morte presumida, a existência de bens e a existência de herdeiros, sendo que a ausência de qualquer desses elementos resulta na inexistência da sucessão.
2.2.2 Legitimidade sucessória
Os bens deixados após o falecimento de um indivíduo podem ser transferidos aos seus possíveis herdeiros por meio da sucessão legítima, a qual ocorre quando o de cujus não possuía testamento, sendo os bens repartidos respeitando a ordem de vocação hereditária, ou pela sucessão testamentária, que ocorre quando foi deixado um testamento dando destino ao patrimônio.
A ordem de vocação hereditária acima mencionada se faz desde descendentes, ascendentes, cônjuge, parentes pela linha colateral, município, Distrito Federal, até chegar à União.
Conforme previsto pelo artigo 1.798 do Código Civil[17], seriam legitimados para suceder aqueles nascidos ou já concebidos no momento da abertura da sucessão. Seguindo essa visão, apenas aqueles que no momento da abertura da sucessão, possuíssem capacidade para suceder, poderiam fazer parte da partilha de bens.
Tal entendimento excluiria, de pronto, os filhos ainda não concebidos, a chamada prole eventual e aqueles concebidos por técnicas de reprodução assistida post mortem, o que, conforme já pode ser verificado, seria contrário ao princípio constitucional de igualdade entre os filhos.
Visando minimizar os efeitos de tal artigo, o artigo 1.799 do Código Civil[18] inclui aqueles excluídos pelo artigo anterior, mas apenas através de sucessão testamentária e com a condição de que vivas no momento da abertura da sucessão.
A exceção a regra, podendo ser legítimo para sucessão tanto legítima quanto testamentária, se dá pela figura do nascituro. Conforme explica Carlos Roberto Gonçalves:
A regra geral segundo a qual só tem legitimação para suceder as pessoas nascidas por ocasião da abertura da sucessão encontra exceção no caso do nascituro. De acordo com o sistema adotado pelo Código Civil acerca do começo da personalidade natural (art. 2º), tem-se o nascimento com vida como marco inicial da personalidade. Respeitam-se, porém, os direitos do nascituro, desde a concepção, pois desde esse momento já começa a formação do novo ser.[19]
Ainda que visando a inclusão dos ainda não concebidos, as condições impostas pelo artigo 1.799 geram uma série de polêmicas quanto à sua aplicabilidade aos concebidos por meio de reprodução assistida post mortem, sendo que, efetivado o procedimento após a abertura da sucessão ou não havendo disposição testamentária, estes estariam novamente excluídos e ilegitimados parao recebimento de herança.
3. REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Neste capítulo teremos um breve relato histórico do contexto em que surgiu a reprodução assistida, bem como sobre o seu conceito. Será dada ênfase especial ao método da inseminação artificial, bem como na realização do procedimento post mortem.
3.1. Breve relato sobre os registros históricos da reprodução assistida
Há quem diga que os primeiros registros do uso de técnicas de reprodução assistida ocorreram em passagens mitológicas, onde o primeiro filho gerado por inseminação artificial seria Perseu, sendo sua mãe Danae fecundada por Zeus, uma vez que havia sido enclausurada para não dar à luz o filho que mataria o avô para usurpar o trono.
Os primeiros registros mais claros acerca da utilização da técnica da reprodução assistida ocorreram ainda na Idade Média, quando Arnauld de Villeneuve, um conceituado médico que atendia a classe monárquica da época, realizou uma inseminação artificial utilizando-se do esperma de Henrique IV de Castela em sua esposa.
Com relação à utilização da técnica de fertilização in vitro, tem-se notícia que sua primeira realização ocorreu no ano de 1978, na Inglaterra, pelos doutores Patrick Steptoe e Robert Edwards, resultando no nascimento em 25 de julho da menina Louise Joy Brown, sendo conhecida mundialmente como o primeiro bebê de proveta.
Já no Brasil, a realização do primeiro procedimento de reprodução humana assistida com êxito ocorreu em 1984, na cidade de São José dos Pinhais, Estado do Paraná, dando origem ao nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro, batizada como Anna Paula Caldeira, no dia 7 de outubro.
Quanto à utilização das técnicas de reprodução assisitida post mortem, temos registros de que sua primeira tentativa ocorreu no ano de 1984, conforme narra Carlos Alberto Ferreira Pinto:
(...) a jovem Corine Richard se apaixonou por Alain Parpalaix, e o casal começou a manter um relacionamento amoroso. Semanas se transcorreram e Alain descobriu que estava com câncer nos testículos e que a doença era incurável. O amor vivido pelo casal foi tão intenso que criou em Alain o desejo de deixar herdeiros, mas a doença e o tratamento de quimioterapia, fatalmente o conduziria a infertilidade. Então Alain tomou a decisão de procurar um banco de sêmen e deixou lá depositado o seu esperma, para futuro uso. A doença avançava assustadoramente e o casal decidiu se casar, mas apenas dois dias após a cerimônia Alain vem a falecer. [...] alguns meses após, Corine procurou o banco de sêmen para se submeter à inseminação artificial. O banco de sêmen por sua vez se recusou a fazer a inseminação artificial, alegando falta de previsão legal, e começou então uma enorme disputa judicial.[20]
Pelos relatos do ocorrido, tem-se notícia que o desfecho da disputa resultou em uma sentença que obrigou que fosse entregue a viúva o sêmen para realização da inseminação artificial, procedimento este que não deu certo, gerando, assim, ainda mais polêmicas acerca do assunto.
Após a ocorrência do caso em questão, abriu-se uma brecha para que mais pessoas em diferentes lugares do mundo lutassem pela mesma causa, sendo que, o que antes era considerado como improvável e nada usual, passou a ser desejo de muitas viúvas em busca do sonho de terem seus filhos com seus maridos, ainda que estes já tenham falecido.
Ocorre que, assim como acontece em diversos aspectos que envolvam os avanços da tecnologia e ciência, fica claro o descompasso entre tais evoluções e o ordenamento jurídico, que não acompanha a ciência a ponto de ter prontamente a resposta para todos os questionamentos que lhe são apresentados, questão esta que será mais explorada nos capítulos seguintes.
3.2. Conceito de reprodução assistida
A técnica da reprodução humana assistida surgiu com um avanço médico para auxiliar ao indivíduo ao o casal que, por alguma razão, não pode conceber pelos meios triviais, necessitando de técnicas especiais que o os auxiliem e facilitem a efetivação da gravidez.
Primeiramente, esclarece-se que a reprodução assistida ocorre quando o casal recebe orientações para programar suas relações de forma a facilitar a fecundação, não sendo, portanto, exclusivamente uma técnica de fecundação em laboratório, podendo também ser verificada em casos onde é utilizada apenas a relação sexual.
Conforme explica a professora Ana Cláudia Scalquette:
A assistência à reprodução pode se dar, destarte, de duas maneiras: apenas em forma de aconselhamento e acompanhamento de periodicidade da atividade sexual do casal a fim de otimizar as chances de que ela resulte em uma gravidez; ou pelo emprego de técnicas médicas avançadas, de modo a interferir diretamente no ato reprodutivo, objetivando viabilizar a fecundação.[21]
Evidente que, para o presente estudo, temos coo importante apenas o segundo tipo de assistência, sendo a única que realmente gera consequências interessantes ao ordenamento jurídico.
Assim, para um melhor entendimento acerca da técnica aqui explorada, se faz necessário uma elucidação acerca do conceito de fecundação, que se dá pela união do gameta masculino, o espermatozoide, ao gameta feminino, o óvulo, convertendo-se em uma única célula, chamada de zigoto. Ocorre que, em alguns casos, seja por algum problema biológico ou psíquico, o indivíduo se torna estéril ou infértil, impossibilitando o fluir natural da fecundação.
Utilizando-se das palavras de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf:
Pode-se entender por infertilidade a impossibilidade de procriar quando há fecundação mas o feto não chega a termo ; já a esterilidade se configura como a ausência de concepção em dois anos. Como já se sabe na atualidade, as causas para tanto podem ser masculinas ou femininas. Entretanto, ambos os termos vêm empregados como sinônimos na atualidade. Assim sendo, podem-se apontar múltiplas causas para a esterilidade: baixa espermogênese, ausência de ovulação, produção de óvulos resistentes à fertilização, bloqueio de trompas, o aparelho reprodutivo da mulher pode ser quimicamente hostil ao esperma. Qualquer desses problemas pode interromper o processo reprodutivo.[22]
Os casais que passam por esse tipo de problema encontram nas técnicas de reprodução assistida a solução para dar continuidade ao sonho da procriação, o qual anteriormente se faria improvável.
Existem diversas técnicas de reprodução assistida, sendo uma das mais utilizadas a fertilização in vitro, a qual ocorre em laboratório, utilizando-se da extração de óvulos através de punção guiada por ultrassonografia endovaginal, sendo posteriormente colocados em um recipiente juntamente aos espermatozoides para serem finalmente fecundados e transferidos para a cavidade uterina.
Além do método da fertilização in vitro, o procedimento mais utilizado pelos que buscam os benefícios trazidos pela reprodução assistida se dá pela implantação da técnica da inseminação artificial, a qual daremos a devida profundidade à análise nos capítulos seguintes.
Apesar de mostrarem-se como a solução para os problemas de muitos casais, anteriormente essas técnicas não eram completas, uma vez que todo o procedimento necessitava de efetivação imediata, sendo que, somente após o desenvolvimento das técnicas de congelamento, chamada crioconservação, a preservação dos embriões e gametas foi possível para utilização posterior. Hoje em dia esse material pode ficar congelado por anos antes de sua implantação, o que permite, inclusive, a criação de bancos de doação.
A crioconservação pode ser indicada nos casos em que o homem, por algum motivo, passará por procedimento cirúrgico que possa influenciar na sua produção de espermas ou ejaculação, bem como aos casais que, por algum motivo, desejem manter esse material congelado.
Tal técnica também deu abertura ao surgimento da questão explorada por este estudo, acerca da utilização de tal material genético na mulher mesmo após passados anos do falecimento de seu marido, conforme aprofundaremos a seguir.
Após a explanação acerca do conceito e técnicas utilizadas, se faz necessário esclarecer que tais procedimentos se dividem em duas modalidades distintas, sendo estas a homóloga e a heteróloga. Entende-se por fertilização artificial homóloga aquela em que são utilizados os materiais genéticos do próprio marido para fecundação, distinguindo-se da concepção natural apenas pelo fato de ocorrer fora do corpo da mulher. Já a heteróloga ocorre quando a fecundação se dá utilizando-se o material genético de outro homem, sendo este normalmente um doador anônimo.
3.3. Inseminação artificial
Diferentemente da fertilização in vitro, onde os óvulos são fecundados por espermatozoides fora do corpo da mulher, na inseminação artificial os espermatozoides são inseridos dentro do útero da mulher para fecundar os óvulos, não sendo necessária sua extração.
Um dos meios utilizados para essa técnica é a inseminação cervical, o qual objetiva reproduzir fisiologicamente as condições de uma relação sexual. Tal técnica é um tanto restrita, sendo indicada apenas nos casos em que, por algum motivo, possua uma limitação quanto ao ato sexual normal, como malformação, distúrbios sexuais ou de ejaculação.
Porém o método mais utilizado e menos agressivo se dá pela inseminação intrauterina, onde são depositados os espermatozoides aptos a fertilizar no interior da cavidade uterina no período da ovulação.
O mais simples deles é a Inseminação Artificial Intrauterina – IIU, em que uma quantidade de espermatozoides é introduzida no interior do canal genital feminino com o auxílio de um cateter, sem a ocorrência de relação sexual.[23]
Nos casos de inseminação artificial homóloga, conforme já elucidado anteriormente, o material genético utilizado é do casal, sendo utilizada para os casos em que este não possui capacidade de fecundação pelo ato sexual normal. Em casos assim, pressupõe-se que o material usado seja do marido ou de alguém com quem a mulher possua um vínculo de união estável, sendo a presunção de paternidade destinada ao cônjuge ou companheiro.
Assim, vemos que em casos de inseminação homóloga é indiscutível a responsabilidade do cônjuge, sendo, inclusive, desnecessária a sua autorização para efetivação do procedimento no que concerne a presunção de paternidade, desde que realizado na constância da união.
Vemos, portanto, que, no aspecto geral, não são verificadas grandes polêmicas ou discussões acerca da filiação ou dos direitos do indivíduo gerado por meio dessa técnica, quando esta é realizada por parceiros conjugais, durante a união e em vida. Os direitos são presumidos e incontestáveis, sendo a filiaçãoassegurada por lei, conforme redação do artigo 1.597, inciso III[24], o qual presume que são concebidos na constância do casamento os filhos gerados por meio de fecundação artificial homóloga.
Ocorre que as polêmicas e discussões começam a aparecer quando a questão se remete aos direitos sobre o material genético do marido já falecido, quando ainda não foi realizado o procedimento de implantação. Seria possível a utilização do material genético mesmo com o falecimento? Os filhos gerados teriam também o direito à presunção de paternidade? Estariam estes excluídos da partilha dos bens do pai falecido?
Veremos a seguir as polêmicas e impasses gerados pela utilização da inseminação artificial após o falecimento.
3.3.1. Aspectos da inseminação artificial homóloga post mortem.
Já vimos que, em uma visão ampla sobre o assunto, não há nenhum efeito ou interferência jurídica drástica originada pela realização da inseminação artificial homóloga.
Agora, imaginemos o seguinte cenário:
Um casal possui há anos o sonho de ter um filho, sendo que, após diversas tentativas pelos meios convencionais, foi constatado que, devido a um problema fisiológico, esse sonho jamais se realizaria sem a utilização das técnicas de reprodução assistida. Ao procurarem um médico, foi verificado através da análise da problemática do casal que o ideal seria o procedimento de inseminação artificial, sendo, para tanto, colhido o material genético do marido, ficando o casal muito satisfeito com a provável realização de seu sonho. Ocorre que, antes mesmo da implantação do material, foi descoberto um tumor no cérebro do marido, vindo este a falecer antes que algo pudesse ser feito, pegando a todos de surpresa.
Analisando esse contexto, seria justo que o desejo do casal, agora dessa viúva, não pudesse ser concretizado devido à morte prematura do marido, mesmo sendo nítido e claro que um dos maiores sonhos do falecido era ter um filho com sua esposa?
Antes de tecer qualquer análise crítica ou jurídica, levando-se em conta apenas o contexto em que os fatos ocorreram, a solução mais provável e pensada pela maioria seria a utilização do material preservado em laboratório, realizando-se assim o sonho do casal que foi interrompido pela aparição repentina de uma grave doença. Ocorre que, no que tange aos efeitos de tal alternativa, as questões são muito mais complexas.
No que concerne à questão da inseminação artificia post mortem, fica claro que nosso ordenamento jurídico não acompanhou os avanços tecnológicos e científicos a ponto de regulamentar especificamente a questão. Verificamos a existência de uma grande lacuna, sendo que nosso Código Civil não autoriza e nem proíbe a prática.
A falta de uma norma específica que a regule faz com que a inseminação artificial post mortem gereuma série de polêmicas quanto à legitimidade e legalidade de sua realização.
Atualmente a única norma que regula a realização de tal procedimento é a Resolução 1.957 do Conselho Federal de Medicina que estabelece não constituir ilícito ético a utilização de material genético post mortem desde que expressamente autorizada previamente pelo falecido.
Constam também em trâmite projeto que visa disciplinar as questões omissas sobre a reprodução assistida, sendo este o Projeto de Lei nº 1.184/2003 que, em seu artigo 4º, inciso VII[25], determina a necessidade do expresso consentimento em vida para utilização póstuma de seu material genético, estabelecendo também qual seria o destino dos gametas de doadores em caso de falecimento, caso não haja essa autorização.
Tal artigo também estabelece que a autorização deverá ser formalizada através de instrumento particular, vedada a realização por procurador e somente será destinada a mulher casada ou em união estável.
Analisando o Projeto de Lei em questão, verifica-se que, mesmo em caso de aprovação, não serão abrangidas todas as questões polêmicas acerca da inseminação artificial post mortem, uma vez que também é omisso com relação à questão da filiação e sucessão, originárias dos maiores impasses relacionados ao tema.
Atualmente o Projeto de Lei em questão encontra-se aguardando parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, conforme verificado junto ao site da Câmara dos Deputados (acesso em 3 de maio de 2015).
Visando também cobrir as lacunas legislativas sobre o assunto o Enunciado 106 da I Jornada de Direito Civil[26] especificou, além da necessidade de autorização, a necessidade de que a mulher esteja na condição de viúva no momento da implantação.
Apesar das disposições verificadas, o que constatamos é uma total omissão da lei quanto ao tema, fazendo com que o judiciário se depare com grandes dificuldades em manifestar a efetiva justiça em seus julgamentos.
Conforme discorre Rolf Madaleno :
Diante dessa polêmica o atual Código Civil, art. 1.597, III, para solucioná-la, passou a presumir concebido na constância do casamento filho oriundo de inseminação artificial homóloga, mesmo que o marido doador do sêmen já tenha falecido, mas entendemos que isso só seria possível se houver anuência escrita(Res. CFM nº 2.013/2013, Seção VIII) do marido nesse sentido em instrumento público ou testamento, como requer a legislação espanhola.[27]
Diante da ausência de norma que a regule, os litígios decorrentes da utilização de material genético post mortem são dirimidos pelo Judiciário baseando-se em duas correntes: a primeira legitima esse meio de concepção baseando-se no fato de que a criança tem direito à existência, a segunda entende que, mesmo havendo expressa autorização em vida, esta não pode ser validade, uma vez que é direito do filho nascer possuindo mãe e pai.
Atualmente, vê-se que grande parte dos julgadores condiciona a utilização do material genético post mortem à anuência expressa em vida, conforme jurisprudência.
AÇÃO DE CONHECIMENTO - UTILIZAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR - AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO - PRELIMINAR DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO AFASTADA - MÉRITO - AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA - IMPOSSIBILIDADE DE SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO DE CUJUS PARA A UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM.
1. Não se conhece do agravo retido diante da ausência do cumprimento do disposto no art. 523, §1º, do CPC.
2. Afasta-se a preliminar de litisconsórcio necessário entre a companheira e os demais herdeiros do de cujus em ação de inseminação post mortem, porquanto ausente reserva a direito sucessório, vencido o Desembargador Revisor.
3. Diante da falta de disposição legal expressa sobre a utilização de material genético criopreservado post mortem, não se pode presumir o consentimento do de cujus para a inseminação artificial homóloga post mortem, já que o princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do sêmen criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse fim.
4. Recurso conhecido e provido.{C}[28]
O capítulo a seguir discorrerá acerca dos aspectos sucessórios dos herdeiros concebidos por meio da inseminação artificial post mortem.
4. Direitos Sucessórios dos filhos concebidos por meio de inseminação artificial homóloga post mortem.
No presente capítulo serão explorados os aspectos concernentes às questões sucessórias dos filhos concebidos após a morte de seu genitor através da técnica de inseminação artificial homóloga post mortem, sob a ótica da ausência de lei que a regule, bem como será apresentada uma possível solução ao impasse dela originado.
4.1. Ausência de regulamentação específica
Conforme já amplamente demonstrado, mostra-se nítido o descompasso entre o avanço da ciência e o nosso ordenamento jurídico. As omissões constantes em nossa lei no que tange à realização dos procedimentos de inseminação artificial post mortem, geram ainda mais problemas quando a questão se torna o destino sucessório daqueles por ele gerados.
Já verificamos que o Código Civil de 2002, sem minimamente regular os aspectos provenientes dos avanços do biodireito quanto à reprodução humana, exclui claramente os filhos concebidos após a morte do genitor do rol dos herdeiros necessários, conforme texto do já citado artigo 1.798.
Para aqueles cuja concepção ocorreu por meios das técnicas de reprodução assistida post mortem, restou uma breve menção na redação do também citado artigo 1.799, inciso I, os caracterizando, ainda que não explicitamente, unicamente como herdeiros testamentários.
Ressalta-se que, ainda assim, o artigo 1.800 do Código Civil especifica que, caso os herdeiros esperados pelo artigo anterior não sejam concebidos no prazo de 2 anos após aberta a sucessão, caso não haja disposição específica no testamento, perderão o direito à herança que será direcionada aos herdeiros legítimos.
Assim, procedendo-se com uma breve análise desses dispositivos, constata-se que, havendo a concepção com a utilização do material genético do marido já morto, este será presumidamente considerado como filho do falecido, registrado em seu nome, porém, caso essa concepção ocorra após 2 anos da abertura da sucessão, ou caso não haja previsão testamentaria do marido falecido, apesar de considerado legitimo filho, direito algum restará à criança no âmbito sucessório.
Tal cenário reflete a ausência clara de uma legislação que regule especificamente esse tipo de situação. Esse vácuo existente em nosso Código Civil, concomitante com a ausência de jurisprudências sobre o assunto, geram um difícil atrito entre os princípios fundamentais, dividindo a opinião de doutrinadores e juristas.
Se faz claro que, apesar de fazer alusão à matéria, nenhum dos artigos citados falam claramente da situação exposta, sendo utilizados apenas em caráter de aproximação. Assim, pode-se dizer que,dentre a grande lacuna em nosso Código Civil, são estes os únicos dispositivos minimamente aproveitáveis, o que não garante que sua aplicação acarretará em uma solução justa aos casos práticos apresentados ao judiciário.
4.2. Projetos de Lei em tramitação
Assim como a lacuna existente em nosso ordenamento jurídico, os projetos de leis que encontram-se em tramitação que visam disciplinar o assunto não solucionam o impasse acerca dos direitos sucessórios, tendo em vista que todos eles pairam apenas em torno das questões concernentes à filiação que, bem ou mal, encontraram amparo nas poucas leis correspondentes em nosso Código.
O Projeto de Lei nº 2.855/97, tendo como autor o Deputado Confúcio Moura legitimaria a possibilidade da realização dos procedimentos de inseminação artificial post mortem, porém vedaria o reconhecimento de paternidade, sendo exceção apenas os casos em que for expressamente manifestado pelo falecido em vida.
Tal projeto prevê também a possibilidade de criopreservação dos embriões por apenas 5 anos, sendo que, passado esse período, o material genético poderá ser descartado ou utilizado em experimentos científicos. Esse limite temporal poderia refletir nas questões sucessórios no sentido de que, havendo um prazo estabelecido em lei de 5 anos para utilização do material, haveria um conflito com relação ao prazo de 2 anos previsto pelo artigo 1.800.
Outro projeto em trâmite, sendo este o Projeto de Lei n° 90/99, tendo como autor o Senador Lúcio Alcântara, prevê o expresso não reconhecimento da paternidade aos filhos concebidos por meio de técnicas de reprodução assistida post mortem. Entretanto, consta um projeto de substituição, de n° 1.184/03, tendo como autor o também Senador Roberto Requião, prevendo o reconhecimento desde que haja expressa autorização do falecido em vida para utilização pela esposa de seu material genético post mortem.
Pela análise de tal projeto, verifica-se que, se aprovado, para os casos em que não houver a autorização por ele exigida, a inseminação artificial homóloga post mortem passará a ter os mesmos efeitos da heteróloga, sendo o material genético tratado como o de um mero doador, impedindo, assim, a presunção de paternidade.
Podemos citar também o Enunciado n° 127 do Conselho de Justiça Federal, na I Jornada de Direito Civil, teve como proposta alterar o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil, para retirada do que consta “mesmo que falecido o marido”, e inserção do termo “havidos por fecundação artificial homóloga”. A justificativa para tal alteração foi pautada nos princípios da dignidade da pessoa humana e paternidade responsável, sendo entendido a inviabilidade de se consentir com o nascimento de um filho que já não possuiria pai no momento da concepção.
Já com relação ao Enunciado 107 da mesma jornada, relacionado ao inciso IV do artigo 1.597, este propôs a possibilidade de utilização para fins de inseminação dos embriões inseminados in vitro e criopreservados, mesmo após desfeitos os laços matrimoniais, desde de que expressa a autorização do ex cônjuge.
Analisando tais encunciados, verifica-se uma desproporcionalidade clara ao excluir a possibilidade de existência da inseminação artificial port mortem pautando-se na paternidade responsável e, ainda assim, permitir que o procedimento em vida seja realizado por pais já separados.
Conforme verificado, tais projetos são de pouca razoabilidade, ferindo claramente os princípios constitucionais anteriormente apresentados, de igualdade entre os filhos e livre planejamento familiar. Além de pouco razoáveis, os projetos em questão não solucionam os aspectos mais polêmicos e de maior complexidade, permanecendo a questão da sucessão a mercê do entendimento e interpretação dos doutrinadores e juristas.
Em entendimento diverso, o Enunciado 267 da III Jornada de Direito Civil sugeriu uma solução bem mais aplicável e justa à questão, passando a ser estendida a regra do artigo 1.798 do Código Civil aos embriões formados por técnicas de reprodução assistida, abrangendo também a vocação hereditária, submetendo-se às regras da petição de herança. Tal dispositivo faria-se justo e em conformidade com os princípios constitucionais, além de também solucionar a questão do prazo para utilização do material genético, o que será explorado a diante.
Enquanto ainda prevalece a ausência de leis e entendimentos sobre a questão, analisemos as questões baseando-nos nas disposições encontradas em nosso ordenamento jurídico.
4.3. Legitimidade do filho concebido para figurar como herdeiro legítimo e testamentário
Conforme já verificado anteriormente, o art. 1.798 do Código Civil determina que são sujeitos aos direitos sucessórios apenas os nascidos ou concebidos até o momento da abertura da sucessão. Pela redação desse artigo, os filhos concebidos por meio de inseminação artificial post mortem não poderiam ser considerados herdeiros, o que, claramente, contraria o princípio constitucional de igualdade entre os filhos, também já elucidado.
Também já verificamos que o artigo 1.799 também do Código Civil, veio para tentar amenizar os efeitos do artigo anterior, incluindo os filhos concebidos post mortem como detentores dos direitos sucessórios, porém com a ressalva de que indicados em testamento.
Assim, conclui-se inicialmente que os filhos concebidos nessas circunstâncias só possuiriam legitimidade para figurarem como herdeiros testamentários, sendo que aos herdeiros legítimos é exigido o nascimento ou concepção no momento de abertura da sucessão.
Observando-se esse cenário, vê-se que, para ser chamado a suceder, a única solução seria a previsão testamentária concomitante com a concepção no prazo de dois anos, conforme condição estabelecida pelo artigo 1.799. Nesse contexto, caso não houvesse essa previsão testamentária, os filhos concebidos após a morte do genitor de nada teriam direito.
Ocorre que, seria justo excluir da partilha dos bens o herdeiro concebido por inseminação artificial post mortem, mesmo sendo expressa sua vontade de gera-lo em vida? Tal exclusão geraria uma evidente discriminação e afronta ao princípio da igualdade entre os filhos.
Conforme elucida a professora Ana Claudia Scalquette:
Seria a sucessão testamentária, então, a única saída para que os filhos gerados com material congelado pudessem receber parte da herança de seu pai?
Ademais, devemos pensar na hipótese (...) de que haverá, em uma mesma família, filhos ricos, pois herdaram os bens de seu pai, e filhos pobres que, embora reconhecidos por lei como filhos, não puderam participar da herança.[30]
Para muitos, a solução encontrada para esse impasse seria a caracterização dos filhos gerados post mortem, como se declarados como tal posteriormente a abertura da sucessão, o que implicaria na ruptura do testamento ou da partilha, nos termos dos artigos 1.973 a 1.975 do Código Civil[31].
Em contrapartida, retomar bens que podem já estar partilhados geraria uma grande insegurança jurídica, conforme também disserta a professora Ana Claudia Scalquette:
No caso de se permitir a fecundação da mulher com sêmen congelado de seu marido, já falecido, estaremos diante da escolha entre duas soluções: ou diremos ao recém-nascido que seu direito à herança não existe visto que seu pai já faleceu e, em decorrência desse fato, poderemos ter filhos pobres de pais ricos, ou retomaremos os bens que poderiam já estar partilhados para que pudéssemos proceder à nova divisão, o que acabaria por causa uma enorme insegurança jurídica.[32]
Ao confrontar essa possibilidade, muitos também argumentam que, ao estipular o nascimento ou concepção até a data da abertura da sucessão, o legislador excluiu de suma os filhos gerados por meio da inseminação artificial post mortem, considerando que apenas uma reforma legislativa poderia legitimá-los como sujeitos de sucessão.
Contrariando essa corrente, há quem diga que, ao anuir expressamente com a utilização do material genético após sua morte, por si só já está gerado o vínculo sucessório entre o possível filho concebido e o de cujus.
Inclinando-se a reconhecer a legitimidade sucessória dos filhos gerados através da inseminação artificial post mortem, elucida
(...) a norma a ser construída a partir do art. 1.798 do Código Civil brasileiro deve observar a Constituição e sua principiologia, do que se infere que esta norma deve prestar obediência ao § 6º do art. 227 da CRFB/88, o qual é uma concretização do princípio constitucional da isonomia. Assim sendo, diante da possibilidade de se conceber uma pessoa após a abertura da sucessão, por meio de técnica de reprodução humana assistida, não se pode aceitar que o art. 1.798 suprarreferido determine que esta pessoa não tenha legitimidade sucessória, pois, em sendo filha do autor da herança, estaria sendo tratada de forma desigual em relação aos demais filhos deste, que já estavam vivos ou concebidos no momento da abertura.[33]
Todavia, cumpre ressaltar que a doutrina que defende o reconhecimento da legitimidade sucessória também é adepta da estipulação de prazo para que a concepção ocorra, utilizando-se, em partes, do disposto pelo artigo 1.800, § 4º do Código Civil[34] para estabelecer o prazo de 2 anos e em sua maioria inclinando-se a estabelecer o prazo da petição de herança.
4.4. Cabimento da petição de herança para fixação de limite temporal para utilização do material genético
Conforme elucidado anteriormente, entre os defensores dos direitos sucessórios dos filhos concebidos por meio de inseminação artificial post mortem, em sua maioria inclinam-se a fixar um limite temporal para a utilização do material genético, utilizando-se do prazo prescricional relativo à ação de petição de herança.
Conforme dispõe o artigo 1.824 do Código Civil[35], a petição de herança é utilizada em nosso ordenamento jurídico para pleitear o reconhecimento da condição de herdeiro, bem como o direito a receber os bens atinentes à herança. Sua utilização mais comum se dá na ocasião em que, não registrado pelo pai, move-se ação de investigação de paternidade, sendo que, neste caso, propõe-se concomitantemente a petição de herança, visando, assim, o reconhecimento de seu vínculo familiar e direito a partilha.
Tal ação pode ser proposta durante ou até mesmo após a efetivação da partilha, e objetiva o reconhecimento do vínculo hereditário para que, após seu estabelecimento, seja possível o recebimento da parcela devida nos bens da herança.
Importante esclarecer que a ação de petição de herança, sendo de caráter condenatório e patrimonial e não havendo previsão específica, possui prazo prescricional de 10 anos, sendo que este não se aplica apenas aos absolutamente incapazes.
Julgada procedente a ação, a partilha realizada é considerada nula, realizando-se um pedido de retificação para que seja considerada o novo elemento na divisão dos bens constantes na massa.
Assim, verifica-se que tal ação é uma alternativa aos filhos concebidos por meio da inseminação post mortem para garantir a parcela que lhe cabe dos bens de seu genitor. Possuindo prazo prescricional de 10 anos, também constitui uma garantia de que a implantação do material genético não ocorrerá a mercê da vontade da genitora, ou que ocorrerá alguma pretensão sucessória a qualquer momento finda a partilha. Assim, para que seja possível a ação de petição de herança, basta apenas que a implantação do material genético ocorra dentro desse prazo estabelecido de 10 anos.
Conforme mencionado anteriormente, com relação ao absolutamente incapazes não é aplicado nenhum prazo prescricional. Assim, sendo o filho concebido, parte legítima para propor a ação, começará a contagem do prazo prescricional assim que este completar 16 anos e, assim, adquirir capacidade relativa.
Conforme já mencionado, a utilização da petição de herança seria um meio de fixação de tempo máximo para utilização do material genético do falecido, sendo que, caso a mãe queira que seu filho receba a parte que lhe cabe na herança, deverá respeitar o prazo limite de 10 anos. Passado esse período, a implantação do material e o nascimento de um novo filho de nada mudará a partilha dos bens.
Considerada nula a partilha pela procedência da ação, é direito do novo herdeiro pleitear todos os bens que faziam parte da massa, incluindo aqueles que encontram-se em posse de terceiros. Confirmada a boa fé do terceiro adquirente, a alienação se faz válida, podendo o herdeiro pleitear perdas e danos em face do possuidor originário.
Ainda que muitos considerem a redistribuição dos bens já partilhados uma grande insegurança jurídica, não podemos deixar de considerar que a ação de petição de herança representaria um meio de garantir os direitos sucessórios do filho concebido por meio de inseminação artificial post mortem.
Fato é que não podemos sobrepor a segurança jurídica em detrimento aos direitos hereditários, nem tampouco aos princípios constitucionais que seriam violados caso esses direitos fossem ignorados.
4.5. O aparente ameaça à segurança jurídica dos herdeiros e o excesso de proteção patrimonial.
Sob a ótica dos doutrinadores que optaram peça oposição à legitimidade sucessória dos inseminados post mortem, bem como por uma breve análise dos projetos de lei em tramitação, percebe-se uma nítida resistência quanto à regulação da inseminação artificial post mortem, ainda que pela modalidade homóloga, e ainda mais em aceitar o vínculo hereditário dos filhos gerados por essa técnica.
Muito se fala acerca da possível insegurança jurídica aos demais herdeiros que seria acarretada pelo aparecimento repentino de um novo descendente, o que, pelo argumento de muitos doutrinadores, iria de encontro com seus interesses patrimoniais.
Podemos atribuir tal entendimento e a resistência dos doutrinadores e de nosso ordenamento jurídico em legitimar expressamente essa prática, pela grande influência patrimonialista existente em nosso Código. Prevalece nas opiniões divergentes um nítido raciocínio materialista, que visaria proteger exclusivamente o patrimônio.
Se analisarmos os dispositivos do Código Civil de 1916, verificamos que nele consta uma forte tendência a proteção patrimonial, o que, de muito, influenciou na redação do Código Civil de 2002.Percebe-se também que, tendo seu projeto sido apresentado no ano de 1975, é evidente que seria imprevisível a evolução social e tecnológica que vemos nos dias de hoje.
Ocorre que, no cenário atual, a família passou a possuir laços muito mais afetivos que procracionais, sendo levado muito mais em conta os desejos em comum e os laços familiares. Essa mudança deve refletir em um ordenamento jurídico que respeite esses laços, bem como preze mais os princípios constitucionais ligados à família, em detrimento dos que protegem o patrimônio.
Assim, baseando-se nessa nova estrutura de família, devemos interligar o princípio da segurança jurídica a um contexto coerente ao Estado Democrático de Direito, devendo essa segurança abranger os valores que atualmente estão constituídos, como bem estar social e laços familiares, e não apenas aqueles ligados a exclusiva proteção do patrimônio.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos dos doutrinadores contrários ao reconhecimento dos direitos sucessórios dos concebidos post mortem embasam seus argumentos na insegurança que o aparecimento de um novo elemento traria aos outros herdeiros.
Ocorre que, conforme estabelecido constitucionalmente pelo artigo 5º[36], todos são iguais perante a lei, sendo inadmissível que se retire o direito de um indivíduo por considerar que este direito prejudicaria o de outro. Tratando-se, ainda, de relação entre filhos, tal entendimento, conforme já amplamente demonstrado, feriria mais um princípio de nossa Carta Magna, o da igualdade entre os filhos.
O argumento de que a aparição de um novo herdeiro geraria insegurança jurídica aos demais não pode ser sobreposto aos direitos hereditários do filho, ainda que concebido após a morte de seu genitor.
Vale também ressaltar que a simples previsão legal de uma ação que possui o poder de anular a partilha realizada, como é o caso da petição de herança, demonstra por si só que a insegurança jurídica está presente para todos, não havendo na própria lei a garantia absoluta de segurança no que tange ao sistema de sucessão.
Ainda que o princípio da segurança jurídica seja de suma importância, tratando-se de uma questão concernente aos direitos que podem ser perdidos por um indivíduo apenas devido ao momento de sua concepção, deve pesar-se a relevância de tal segurança comparado aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana.
Assim, verificado o caso concreto e na ausência de uma lei específica que regule a questão, aos julgadores deve haver o discernimento que a questão merece para que seja levado em consideração qual será a solução mais benéfica para o indivíduo que será gerado.
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