Do princípio da denunciabilidade popular como elemento para deflagração do processo de impeachment municipal.

Uma análise do artigo 5º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67.

12/11/2015 às 13:11

Resumo:


  • O Decreto-Lei nº 201/67 foi recepcionado pela Constituição de 1988, conforme Súmula nº 496 do STF.

  • Há diferenciação entre crimes comuns funcionais e crimes de responsabilidade no Decreto-Lei nº 201/67.

  • O processo de impeachment é regulamentado pelo artigo 5º do Decreto-Lei nº 201/67.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Visa o presente Artigo tratar da recepção do Decreto-Lei nº 201/67 pela Constituição de 1988, dando enfoque sobre o princípio da denunciabilidade popular estampado no artigo 5º, inciso I, da Norma.

De partida, há que se destacar que nada obstante o Decreto-Lei nº 201/1967 tenha sido editado com base no Ato Institucional nº 4, certo é que a Norma foi recepcionada pela Constituição de 1988.

Nestes termos é o Enunciado da Súmula de nº 496 do Supremo Tribunal Federal, com a seguinte redação: São válidos, porque salvaguardados pelas disposições constitucionais transitórias da Constituição Federal de 1967, os decretos-leis expedidos entre 24 de janeiro e 15 de março de 1967.

Por oportuno, imperiosa é a necessidade de se diferenciar os crimes comuns funcionais, estabelecidos no artigo 1º da Norma tratada, dos crimes de responsabilidade, definidos no artigo 4º do Decreto-Lei nº 201/67.

Para os crimes comuns funcionais, a tipificação dos mesmos encontra previsão no artigo 1º do Decreto-Lei nº 201/67, pelo que o processo criminal, diante da regra de competência funcional prevista no artigo 29, inciso X, da Constituição de 1988, segue o rito da Lei nº 8.038/90.

Já para os crimes de responsabilidade, também denominados de infrações político-administrativas, a previsão de sua ocorrência está estabelecida no artigo 4º do Decreto-Lei nº 201/67, sendo que o processo de impeachment é regulamentado pelo artigo 5º da Norma.

Sensível à tal diferenciação, ao menos no plano do direito substancial, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: RECURSO DE "HABEAS-CORPUS". CRIMES PRATICADOS POR PREFEITO: ART. 1., I e II, DO DECRETO-LEI N. 201/67. CRIME DE RESPONSABILIDADE. CRIMES COMUNS OU FUNCIONAIS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (ART. 29, X, DA CONSTITUIÇÃO, COM A REDAÇÃO DA E.C. N. 1/92). 1. O art. 1. do Decreto-lei n. 201/67 tipifica crimes comuns ou funcionais praticados por Prefeitos Municipais, ainda que impropriamente nomeados como "crimes de responsabilidade", e são julgados pelo Poder Judiciario. Revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do HC n. 70.671-1-PI. 2. O art. 4. do mesmo Decreto-lei refere-se ao que denomina expressamente de "infrações político-administrativas", também chamadas de "crimes de responsabilidade" ou "crimes politicos", e são julgadas pela Câmara dos Vereadores: nada mais e do que o "impeachment". 3. O art. 29, X, da Constituição (redação da E.C. n. 1/92) determina o "julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça"; ao assim dizer, esta se referindo, apenas, aos crimes comuns e derroga, em parte, o art. 2. do Decreto-lei n. 201/67, que atribuia esta competência ao juiz singular. 4. Recurso em "habeas-corpus" não provido.”

(RHC 73210, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 31/10/1995, DJ 01-12-1995 PP-41686 EMENT VOL-01811-02 PP-00325)

Feita tal consideração, nessa toada, é de se dizer que subsiste a aplicação do Decreto-Lei nº 201/67 em sua integralidade.

Colhe-se nesse sentido o magistério de ALTAMIRO DE ARAÚJO LIMA[1], verbo ad verbum:

“O Decreto-Lei nº 201/67 foi recepcionado pela ordem constitucional não só pelos arts. 1º, 2º e 3º que define os crimes de responsabilidade do Prefeito – que são crimes comuns – mas também pelo artigo 4º, que define as infrações político-administrativas, que são, pela ortodoxia do nosso Direito Constitucional – crimes de responsabilidade, que não são infrações penais, mas ilícitos políticos – e pelo art. 5º, que dispõe sobre o processo de cassação do mandato do Prefeito”.

Bem como escólio da jurisprudência do TJES:

“(...) O vigente sistema constitucional recepcionou as regras contidas no Decreto-lei nº 201/67, relativas à competência para julgamento dos Prefeitos Municipais, cabendo ao Tribunal de Justiça, originariamente, julgar as questões que versem sobre as condutas tipificadas no art. 1º, do referido decreto-lei, que constituem crimes comuns, suscetíveis de sanção na esfera criminal. Reserva-se à Câmara de Vereadores a repressão política dos comportamentos descritos no respectivo 4º, que ensejam a cassação do mandato eletivo.(...)”

(TJ-ES - AI: 16029000011 ES 16029000011, Relator: ARNALDO SANTOS SOUZA, Data de Julgamento: 20/08/2002, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/09/2002)

Se justifica assertiva, conforme próprio olhar sistemático em torno do ordenamento jurídico constitucional.

No plano federal, a CF/88 traz em seu artigo 85 a previsão de crimes de responsabilidade pelo Presidente da República, norma constitucional essa de eficácia limitada, vez que seu próprio parágrafo único ficou estabelecido que ´´esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento``.

Para tanto, cumprindo a competência privativa constitucional, foi recepcionada a Lei nº 1.079/50, que “define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento”, em relação ao Presidente da República e seus Ministros de Estado.

Assim, os artigos 51, inciso I e 52, inciso I, ambos da Constituição Federal, asseveram que compete, respectivamente, à Câmara dos Deputados admitir o processo de crime de responsabilidade contra as autoridades do alto escalão federal, cabendo ao Senado seu julgamento.

Entrementes, no plano estadual, manteve-se a recepção da Lei nº 1.079/50 em relação aos Governadores e Secretários de Estados, mormente porque na distribuição da competência constitucional, ficou atribuído à União (pelo pacto federativo) legislar sobre crime e processo, ex vi do artigo 22, inciso I, da Carta Magna.

Dessa forma, por competência legislativa, para definição de crimes de responsabilidade de Prefeitos e definição do processo de seu julgamento, no plano municipal, também foi recepcionado o Decreto-Lei nº 201/67. 

Ad argumentandum tantum, pelas razões aqui expostas, não se insere na competência legislativa nem dos Estados nem dos Municípios a definição de infrações político-administrativas (erosão decorrente da tese da dimensão de sua auto-organização prevista nos artigos 24 e 25 da CF).

A especificidade que se tem em relação ao Decreto-Lei nº 201/67 é que seu artigo 5º delega competência legislativa aos Estados (e não Municípios) legislarem sobre o processo de impeachment.

Aqui, deve ser rememorado que pelo parágrafo único, do artigo 22, da Constituição Federal, pode ser delegada a competência privativa legislativa da União aos Estados, por Lei Complementar.

A esse respeito, segue a doutrina de JOSÉ NILO DE CASTRO[2]:

“Entretanto, como o parágrafo do precitado artigo 22 da Constituição da República ordena que a autorização dada aos Estados membros para legislar concorrentemente em matéria processual (art. 22, I, CR), deve ocorrer por Lei Complementar (parágrafo único, art. 22, CR) à Carta Magna, a disposição normativa da parte final do artigo 5º, do Decreto-Lei nº 201/67, que conferiu aos Estados o poder de legislarem concorrentemente, tratando-se do processo de cassação de mandato de Prefeito municipal, foi recepcionada por norma materialmente complementar à Constituição da República”.

Entendimento este já encampado pela jurisprudência pátria:

Se ao Estado a Constituição Federal de 1988 outorgou competência concorrente para legislar sobre procedimentos em matéria processual, não o fez em relação ao Município. Consequentemente, à Lei Orgânica Municipal não cabe dispor diferentemente do Decreto-Lei nº 201/67 no pertinente ao Procedimento para decretação de cassação de mandato de Vereador”.

(TJ/MG, Apelação Cível nº 40043/73, Relator Desembargador Sérgio Lellis)

Logo, o processo de cassação de mandato por prática de infração político-administrativa, disciplinado pelo Decreto-Lei nº 201/67 é de caráter subsidiário ao processo definido pelas legislações estaduais.

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Não havendo no nosso ordenamento jurídico local Norma específica a respeito, tanto em relação à definição dos crimes de responsabilidade e o seu processo de julgamento é de se aplicar o Decreto-Lei nº 201/67.

Destarte, retomando-se a dicção do artigo 5º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67, que apregoa que: “A denúncia escrita da infração poderá ser feita por qualquer eleitor”, SOMENTE POSSUI LEGITIMIDADE PARA DAR ABERTURA AO PROCESSO DE IMPEACHMENT O CIDADÃO.

Isto é, nas palavras de JOSÉ NILO DE CASTRO[3], “somente eleitor é que tem a legitimidade ativa do processo”.

Melhor explicita a legitimidade para o Processo de Impeachment, o autor WOLGRAN JUNQUEIRA FERREIRA[4]:

“Inicialmente, dispõe o inciso I, do art. 5º, que a Denúncia escrita da infração poderá ser feita por qualquer eleitor com a exposição dos fatos e a indicação das provas.

Assim, somente o eleitor poderá fazer a Denúncia.

Ocorre, no caso, absoluta simetria com o que dispõe a Lei sobre a Ação Popular. O autor deve ser cidadão, isto é, como diz HELY LOPES MEIRELLES, pessoa humana, no gozo dos seus direitos civis e políticos, requisitos esses que se reúnem na qualidade de eleitor. 

Assim os inalistáveis, os inalistados, bem como os partidos políticos, entidades de classe, ou qualquer outra pessoa jurídica, não têm qualidades para propor o ‘impeachment’ do Prefeito”.

Trata-se da proteção ao “princípio da denunciabilidade popular”.

A esse respeito é o ensinamento de ALEXANDRE DE MORAES[5], verbis:

Todo cidadão, e apenas ele, no gozo de seus direitos políticos é parte legítima para oferecer acusação à Câmara dos Deputados. A acusação da prática de crime de responsabilidade diz respeito às prerrogativas da cidadania do brasileiro que tem o direito de participar dos negócios políticos. A legitimidade ativa ad causam, portanto, não se estende a qualquer um, mas somente às pessoas investidas no status civitatis, excluindo, portanto, pessoas físicas não alistadas eleitoralmente, ou que foram suspensas ou perderam seus direitos políticos”.

Em situação similar, na hipótese de crime de responsabilidade cometido por Ministro de Estado, o eminente Ministro CELSO DE MELLO do Supremo Tribunal Federal perfilhou entendimento de que permanecem válidos os dispositivos da Lei 1.079/50. Confira-se:

Essa questão - que consiste no reconhecimento da legitimidade ativa de qualquer cidadão (vale dizer, de qualquer eleitor) para fazer instaurar, perante o Supremo Tribunal Federal, o concernente processo de impeachment contra Ministro de Estado - assume indiscutível relevo político-jurídico. É irrecusável, no entanto, que, em tema de ativação da jurisdição constitucional pertinente ao processo de impeachment, prevalece, em nosso sistema jurídico, enquanto diretriz básica, o “princípio da denunciabilidade popular” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969”, tomo III/355, 2ª ed., 1970, RT). Essa circunstância justifica o reconhecimento, em favor dos ora denunciantes - ambos cidadãos no pleno exercício de seus direitos políticos -, da legitimidade ativa ad causam necessária à instauração do processo de apuração da responsabilidade político-administrativa de Ministro de Estado, perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, c, da Constituição” (Inquérito 1.350 – DF, DJU de 15 de fevereiro de 2000).

Não sendo então o Processo de Impeachment Municipal deflagrado por cidadão, o caso é de ilegitimidade ativa para sua deflagração.

Em casos assim, os Pretórios do País fulminam de nulidade o processo político:

"(...) 2 - PARA INSTAURACAO DE PROCESSO DE CASSACAO DE PREFEITO MUNICIPAL, NECESSARIO SE FAZ QUE A COMISSAO PROCESSANTE SEJA PRECEDIDA DE DENUNCIA FEITA POR ELEITOR - EXPRESSAO LITERAL DA LEI - SENDO INCOMPORTAVEL QUANDO FEITA POR ENTIDADE SINDICAL OU DE OFICIO PELA MESA DA CAMARA MUNICIPAL (INTELIGENCIA DO INCISO I DO ART. 5 DO DECRETO-LEI N. 201, DE 27.02.67). (...)."

(TJGO, DUPLO GRAU DE JURISDICAO 8127-0/195, Rel. DES. NEY TELES DE PAULA, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 12/08/2003, DJe 14102 de 04/09/2003)

“(...) Se o denunciante apresentou título de eleitor e comprovante de que votara nas eleições imediatamente anteriores, pressupõe-se que se encontra na plena fruição do gozo dos seus direitos políticos, podendo praticar a ação descrita no artigo 5º, I, do Decreto-lei 201/67, oferecendo denúncia escrita por meio da qual noticia infrações político-administrativas, expondo os fatos e indicando as provas. (...)”.

(TJ-MG 100000746249410001 MG 1.0000.07.462494-1/000(1), Relator: ARMANDO FREIRE, Data de Julgamento: 11/03/2008, Data de Publicação: 29/04/2008)

Por derradeiro, na forma do artigo 5º, inciso III, do Decreto Lei nº 201/67, deve ser eventualmente arquivado o processo aberto.


[1] Prefeitos e Vereadores – Crimes e Infrações de Responsabilidade, p. 428/429.

[2] A defesa dos Prefeitos e Vereadores em face do Decreto-Lei nº 201/67, 2ª Edição, p. 86.

[3] A Defesa dos Prefeitos e Vereadores, 2ª Ed., p. 180.

[4] Responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, 1992, p. 138.

[5] Direito Constitucional, 5ª Edição, Editora Atlas, São Paulo, 1999, p.393.

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Sobre o autor
Helio Maldonado

Bacharel em Direito.<br>Especialista em Direito Público, Direito Eleitoral e Fazenda Pública em Juízo.<br>Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais. Advogado<br>Membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/ES.<br>Autor de livro, artigos jurídicos e professor palestrante.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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