5. Argumentos Contrários
O cerne da questão é que não temos um sistema de instrução prévia do processo penal. Nesse sistema, temos um promotor sendo notificado imediatamente de uma prisão em flagrante ou de um crime que a Polícia tomou conhecimento. A própria polícia é um apêndice do Parquet que a controla, subordinando-a funcionalmente. Adotam o sistema de instrução a França, a Itália, a Espanha, Portugal entre outros países. A investigação criminal não poderá ser iniciada sem o placet ministerial ou mesmo a condução direta por um promotor público.
Nesse sistema, temos institutos que igualmente não são comuns no Brasil: acordos extrajudiciais isentando de processo, depoimentos homologados pelo Ministério Público, gravações públicas de confissões ou delações etc. Não temos o magistrado que julga a conveniência da ação penal, antes de ser julgado o seu mérito, como procedimento prévio e bifásico. Assim, o processo penal brasileiro é mais garantista, menos sujeito às conturbadas negociações que se fazem em fases pré-processuais e que viciam o entendimento do promotor.
Temos a Constituição da República que, é verdade, não concede privativamente à polícia o poder de conduzir o inquérito policial, mas aponta para o exercício de diversas instituições, das quais não figura o Ministério Público como legitimado constitucional, pela sua total omissão no art. 144 da CF. Assim, é forçoso reconhecer que a omissão do termo privativo/a, não impede esta interpretação, afastando a hipótese de atribuição concerrente. Da mesma forma, não consta a pretendida atribuição nem no art. 129 da CF, concernente às funções do Ministério Público, nem mesmo na respectiva Lei Orgânica e ainda na legislação de combate ao crime organizado.
Ademais, podemos conjugar diversos artigos do Processo Penal clássico, constantes do Codex, para concluir sem titubeios que não poderá o Ministério Público conduzir a investigação. Vejamos a lei, e analisemos os trechos destacados:
Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I - de ofício; II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.Pela leitura atenta e desapaixonada do Diploma Processual, temos algumas constatações muito simples:
a) diz a letra da lei que pode o Ministério Público requisitar a instauração do inquérito, donde o delegado de polícia não poderá indeferir a solicitação, mas não diz em momento algum que pode o próprio Parquet instaurar investigação. Se há a distinção e o distanciamento legal, há de ser observado pelos integrantes do Ministério Público;
b) o inquérito policial não é imprescindível ao oferecimento da denúncia, tanto que o art. 16 é bem claro afirmando que "sempre que servir"; haverá casos em que não irá servir ou não será indispensável;
c) as novas investigações, após o arquivamento do inquérito policial, poderão ser feitas apenas pela autoridade policial, em conformidade com o art. 18 do CPP, demonstrando, mais uma vez, a titularidade para conduzir o procedimento investigatório penal;
d) o art. 27 que trata da provocação do Ministério Público quer versar de forma cristalina sobre a possibilidade de apresentação de denúncia ou requisição de instauração de inquérito e não condução da investigação;
e) ora, se o Ministério Público requerer e depois requisitar o arquivamento do inquérito, por meio de seu promotor ou Procurador Geral, significa afirmar que não pode ele mesmo arquivar, porque não tem atribuição para conduzi-lo.
Sem sofismas: é apenas a leitura do texto legal que se mostra claro e sem brechas à gula processual ministerial.
Igualmente insofismável é o artigo de Luiz Flávio Gomes, baluarte do Garantismo Penal no Brasil, tende a confirmar entendimento contrário à legitimidade ministerial para investigar, consubstanciando mais o presente ensaio. A transcrição do artigo correspondente vale ser lida, na íntegra:
O Colendo Supremo Tribunal Federal, em duas decisões mais ou menos recentes, tinha firmado o entendimento de que o Ministério Público não pode realizar diretamente investigações criminais. No RE 205.473-9-AL, rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. de 15.12.98, com efeito, proclamou-se o seguinte:
"Constitucional. Processual Penal. Ministério Público: atribuições. Inquérito. Requisição de Investigações. Crime de desobediência. CF, art. 129, VIII; art. 144, § 1º e 4º. – I – Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F., art. 144, §§ 1º e 4º). Ademais, a hipótese envolvia fatos que estavam sendo investigados em instância superior; - II – R.E. não conhecido" (negrito nosso);
O segundo julgado da Suprema Corte aconteceu no RE 233.072-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, j. 18.05.99. Contra acórdão do TRF da 2ª Região, que determinou o trancamento de ação penal pública, ao fundamento de que o Ministério Público teria exorbitado de suas funções ao oferecer denúncia baseada em procedimento administrativo por ele instaurado sem requisição de abertura de inquérito policial, ingressou com Recurso Extraordinário o Ministério Público.
"A Turma [Segunda], por maioria, não conheceu do recurso extraordinário por entender que o acórdão recorrido baseou-se em mais de um fundamento suficiente para a manutenção da decisão, que não foram atacados pelo recorrente, incidindo, portanto, a Súmula 283 ("É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles"). Vencidos os Ministros Néri da Silveira, relator, e Maurício Corrêa, que conheciam do recurso e lhe davam provimento para determinar o prosseguimento da ação penal. RE 233.072-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 18.05.99" (cfr. Informativo STF n. 150, de 26.05.99, p. 2).
A Constituição brasileira não acolheu o modelo da direção da investigação criminal pelo Ministério Público (cf. Ela Wiecko V. de CASTILHO, Correio Braziliense – Direito & Justiça de 17.05.99, p. 4); aliás, ela "jamais quis transferir para o Ministério Público as funções investigatórias cometidas ao serviço policial" (cf. Cláudio Fonteles, Correio Braziliense – Direito & Justiça de 17.05.99, p. 7). Não palmilhou, assim, a concepção do direito europeu continental (Itália, Alemanha etc.); está mais próxima do sistema inglês (cf. Procesos penales de Europa, dir. De Mireille DELMAS-MARTY, trad. de Morenilla Allard, Zaragoza: Edijus, 2000, p. 475 e ss.; Antonio Evaristo de MORAIS FILHO, em RBCCrim n. 19, p. 105 e ss.);
Por força do art. 144, § 1º e 4º, da CF, a função de investigar diretamente os fatos delituosos cabe à polícia federal, às polícias civis e à polícia militar (nas infrações militares);
Apesar da clareza do texto constitucional, certo é, entretanto, que não existe monopólio ("reserva de mercado", sic) em favor das Polícias para investigar fatos delituosos no nosso país. Em outras palavras: a investigação criminal não é atividade exclusiva da polícia judiciária (CPP, art. 4º, parágrafo único).
Mas isso não significa que o Ministério Público (na atualidade) tenha poderes para tanto. Outras autoridades podem investigar delitos, mas isso depende de lei expressa: "A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma função" (CPP, art. 4º, parágrafo único);
O que está faltando ao Ministério Público (neste momento) é justamente essa lei expressa que lhe autorize presidir e promover diretamente a investigação criminal.
Não há dúvida, assim, que são admitidos, no direito pátrio, outros inquéritos investigativos: o inquérito judicial nos crimes falimentares, as CPIs, IPMs etc. Na ADIn 1.517-DF, rel. Min. Maurício Corrêa, reconheceu-se [muito discutivelmente] inclusive a legitimidade dos juízes para atividades investigatórias (Lei n. 9.034/95, art. 3º); mas tudo deriva de expressa previsão legal, que não existe em favor do Ministério Público.
Consoante a ordem jurídica vigente o Ministério Público conta com muitos poderes, mas especificamente para dirigir a investigação criminal, excepcionando-se a investigação contra seus próprios membros, não há dispositivo autorizador.
Nada obsta, in thesi, que o Ministério Público venha a ter no sistema jurídico nacional poderes de investigação direta: mas para tanto são necessárias reformas legislativas específicas; pelo direito vigente, como vem reconhecendo a Máxima Corte, essa função está juridicamente vedada. É até aconselhável que o Ministério Público venha a assumir algumas tarefas investigatórias (crime organizado, por exemplo), mas no momento não conta com poderes legais para isso.
Não cabe dúvida que o Ministério Público pode participar das investigações, pode acompanhá-las: LONMP, art. 26, IV; LC 75/93, art. 7º, inc. II; LONMP, art. 10, IX, e; HC 75.769, in DJU de 28.11.97. Mas presidir uma investigação é outra coisa.
Não cabe discutir que o Ministério Público é o titular privativo do direito de promover a ação penal pública (CF, art. 129, I). E que nos crimes tributários não depende da representação da Fazenda Pública para atuar (cfr. ADIN 1571-DF, rel. Min. Néri da Silveira).
Não se questiona que pode também "requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais" (CF, art. 129, inc. VIII).
Não há como contestar que pode promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, III). Está autorizado, ademais, a realizar inquéritos administrativos (CF, art. 129, VI), particularmente quanto ao meio ambiente (Lei 7.347/85), podendo expedir notificações e requisitar informações e documentos para instruí-los (CF, art. 129, inv. VI).
Cabe ainda ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial (CF, art. 129, VII).
Conta, de outro lado, com a faculdade de oferecer denúncia sem inquérito policial (CPP, arts. 27 e 39, § 5º; vid. ainda RTJ 76/741), com base em provas colhidas em inquérito civil seu ou inquéritos administrativos, presididos por outras autoridades, autorizadas em lei. Não é correta, assim, a afirmação de que o Ministério Público somente pode promover a ação penal quando a Polícia Judiciária investigou os fatos; mas tampouco é verdadeira a assertiva de que ele pode diretamente promover a investigação criminal.
Alinhadas todas as atribuições do Ministério Público, impõe-se reconhecer, segundo o ius positum, de modo peremptório, que nenhuma lei lhe confere a possibilidade de investigar diretamente o fato delituoso. Por isso é que o Supremo Tribunal Federal, com precisão e firmeza, vem proclamando que não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, investigações criminais, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (cf. RE 205.473-9, rel. Min. CARLOS VELLOSO).
A única exceção a esse correto e irreparável entendimento reside no art. 40, parágrafo único, da LONMP, que autoriza a investigação direta pelo Ministério Público quando envolvido algum membro da Instituição.
Aliás, nem sequer no tempo da LC 40/81 podia o Ministério Público assumir a direção da investigação criminal, salvo na ausência de Delegado de Polícia (art. 15, III e V).
O tema não só é tormentoso no presente ensaio, mas no quotidiano forense. Advogados digladiam-se contra a sanha persecutória do Ministério Público e mesmo no Supremo Tribunal Federal, antes do processo decisivo sobre o tema que segue em anexo, temos já as primeiras linhas do entendimento que o Excelso Pretório firmava sobre o tema.
Depoimentos tomados a portas fechados na sede do Ministério Público Federal ou Estadual é odioso, próprio de regimes totalitários, onde o estatal não é público e sim sigiloso e o aparelho do Big Brother quer sufocar as liberdades e o contraditório. Aquele promotor que, sozinho, trancado com o depoente, geralmente amedrontado diante do poder público que representa o Parquet, não é mais do que a caricatura do Robespierre eterno, incorruptível, inflexível e isolado da fermentação democrática. E não são os advogados ou os delegados que apregoam a exorbitância do Ministério Público contemporâneo: os próprios Ministros do Supremo Tribunal já se preocupam com o grau maligno de perseguição, vaidade e intolerância que soçobra aquela Instituição essencial à Justiça.
Questão polêmica, propícia a debates acalorados, é reproduzida aqui pelo diálogo até áspero entre os Ministros Nelson Jobim e Néri da Silveira. Vejamos o voto do Min. Jobim no Recurso Extraordinário 233.072-4 RJ, já mencionado pelo Dr. Flávio Gomes:
Min Jobim: observo que este tema – já participei de debate deste tema em sede legislativa – quando da elaboração da CF de 88, era pretensão de alguns parlamentares introduzir texto específico no sentido de criarmos ou não, o processo de instrução, gerido pelo MP. Isso foi objeto de longos debates da elaboração da Constituição e foi rejeitado.
Mas, o tema voltou a ser discutido, quando, em 1993, votava-se no Congresso Nacional a Lei Complementar relativa ao MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIAO E AO MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS, em que havia esse discussão do processo de instrução que pudesse ser gerido pelo MP.
A longa disputa entre o MP, a Polícia Civil e a Polícia Federal, em relação a essa competência exclusiva da polícia em realizar os inquéritos. Lembro-me que toda essa matéria foi rejeitada naquele momento, no Legislativo – estou explicitando de memória.
A Lei Complementar 75/93 (Lei Orgânica do MP da União), no art. 6º refere-se à competência do MP da União, elencando vinte incisos de competência do MP.
(...)
Dos eminentes juízes do Tribunal Regional, sobre a conduta do MP em ministério àquilo que foi referido como dispensabilidade do Inquérito Policial, acompanhados pelo eminente representante do MP, Prof. Dr. Juarez Tavares, a quem conheço muito e prestou extraordinários serviços ao Min. da Justiça quando por lá passei, no sentido de acompanhar na elaboração dos projetos legislativos, inclusive no Projeto sobre Lavagem de Dinheiro.
Esses três eminentes magistrados já qualificaram as ações do MP, às quais Vossa Excelência se referiu nos anexos e volumes, referindo-se a isso como a realização, por parte do MP, do Inquérito Penal.
(...)
Concordo plenamente com Vossa Excelência que a ação penal pública independe do Inquérito Policial para ser apresentada, agora, dispondo o MP para o oferecimento da denúncia.
(...)
Tem o MP competência para promover inquéritos administrativos, em relação às condutas do Min. da Fazenda, de funcionários públicos do Poder Executivo?
Não.
Os inquéritos administrativos são da competência do Min. da área. Foi dito aqui pelo eminente sub-procurador da Republica que nos assiste, não haver dúvida sobre isso ser um inquérito, tanto é que diz que se continha dentro da titularidade da ação penal pública, e quem pode o mais, pode o menos.
(...)
Inquérito Penal não é juízo de instrução.
Não temos esse tipo de procedimento no nosso ordenamento jurídico.
Sua criação foi negada em dois momentos de voto no Parlamento.
Não será por exegese que vá se outorgar ao MP aquilo que não foi dado.
(...)
Min. Néri da Silveira: estamos julgando uma denúncia que foi apresentada, que define um quadro típico.
Min. Jobim: Não. Estamos examinando a regularidade da conduta do MP.
Min. Néri da Silveira: o hábeas corpus foi concedido para trancar o processo decorrente dessa denúncia.
Min. Jobim: porque o TRF entendeu relevante, se exorbitou o MP, e a meu juízo, exorbitou das suas funções institucionais, pretensão que já tem há muito tempo em detrimento dos interesses da defesa.
Sei que ao trazer exemplos de casos vividos, corre-se o risco de se trazer aquilo que se chama generalização empírica, mas ao exercer a advocacia penal durante 20 anos, sei como se conduz o MP nesses atos unilaterais de produção de prova.
O MP exorbitou, no caso concreto, das suas funções. Não tem ele competência alguma para produzir um inquérito penal, sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações em procedimentos administrativos.
Terá, isto sim, por força da LC competente, poder para o exercício das suas atribuições, nos procedimentos de sua competência, notificar testemunhas etc.
Quais são os procedimentos de sua competência?
O Inquérito Civil Público.
O que entendeu o órgão julgador do HC, no voto do relator em relação à matéria? Entendeu, na linha sustentada pelo representante do MP junto ao Tribunal, que ouve exorbitância.
Pergunto à Vossa Excelência: a prova que instruiu a denúncia foi produzida de forma legítima? Se não tinha o MP competência para introduzir aquilo que está assente?
Min. Néri da Silveira: uma prova documental baseada exatamente no processo licitatório.
Min. Jobim: colhida de forma lícita ou ilícita? Tinha ou não competência?
Min. Néri da Silveira: o MP tinha cópia do processo licitatório que é processo de repartição qualquer. Sabemos que o MP pode instaurar uma ação penal contra um funcionário com base no processo administrativo, que lhe seja encaminhado, ou se tiver provas nos autos.
Min. Jobim: concordo com V. EXcia, mas curiosamente, houve a necessidade de notificação para ser ouvido no chamado inquérito administrativo, que foi emitido num juízo no MP local, comum um juízo de existência de Inquérito Penal.
É lícita a forma de colher-se essa prova?
Min. Néri da Silveira: Veja: apenas pela circunstância de o indiciado não haver atendido à notificação, e assim esclarecido mais ao MP, vamos coarctar a ação do MP?
Min. Jobim: não, instaure-se, previamente, o inquérito. Não acompanho Vossa Excelência porque é necessário se coarctar esse tipo de conduta.
Concedido ou negado que seja, estará a Turma reconhecendo a prática de um ato abusivo do MP. Isso ficará na mesma situação, porque estamos perante a prática de um ato que exorbita das suas funções e se viermos a negar o recurso, como pretendo, divergindo de V. Excia, afirmo que nenhuma conseqüência terá o MP das condutas tomadas, porque a sua Corregedoria não irá contra si mesma, aliás este é um tema que temos que discutir com muita clareza e com o dever social de prestar contas à sociedade "accountabily", dos americanos em relação às condutas deste determinado setor público.
Senhor Presidente, quero que com todas as vênias e com o respeito que V. Excia merece, como meu velho professor da Faculdade de Direito do Rio Grande de Sul, possam a defesa e a acusação estarem no mesmo nível, no campo da investigação. Ou seja, com o mesmo status do MP.
Que não esteja a defesa sujeita à ações unilaterais da acusação, no sentido de promover dentro do próprio prédio, isolado, sem possibilidade alguma de qualquer tipo de participação no Inquérito.
Faríamos a divergência perante o juízo.
Mas não teríamos a possibilidade de exercê-lo fora dele, porque quando a polícia sabe-se o que fazer contra o MP pouca coisa tem-se a fazer.
Senhor Presidente, ouso divergir e, pela nossa técnica, não conheço do recurso.
Da excepcional e incomum polêmica no Pretório Excelso, temos o resultado no qual está profundamente inspirando o nosso entendimento:
Ementa: recurso extraordinário. Ministério Público. Inquérito Administrativo. Inquérito Penal. Legitimidade. O MP (1) não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; (2) nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações em procedimentos administrativos; (3) pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido.
Acórdão: vistos, relatados e discutidos estes autos, acórdão os Ministros do STF, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, em não conhecer do recurso extraordinário, vencidos o relator e o senhor Min. Maurício Correa que dele conheciam e lhe davam provimento para determinar o prosseguimento da ação penal.
Lembramos o fato de que o relator do voto que segue em anexo como exemplo do mais moderno entendimento acerca do tema esposado é o mesmo Ministro Nelson Jobim que é oriundo do meio advocatício, político e que sentiu, numa e noutra atividade, o receio da democracia em permitir a uma única instituição tantos poderes. Assim, não é demais falar que um carro veloz é oportuno, mas se lhe faltarem os freios, é mais perigoso para o motorista e para a incolumidade pública que aquele outro auto mais lento e seguro. Comparamos, outrossim, a democracia a uma represa formada de pequenas pedras, onde a retirada de uma delas pode fazer ruir toda a barragem. O Ministério Público é fiscal, mas precisa ser fiscalizado; é acusador, mas precisa ser freado em seu ímpeto. No novo ordenamento, não há mais espaço para o promotor vaidoso de condenações, como se cada pena fosse uma condecoração nos quadros da promotoria. Foi o tempo que o "colecionador de ossos", aquele empedernido promotor público, caçava os acusados e os colecionava como troféus, usando condenações para galgar promoções funcionais.
O Ministério Público superou sua dependência do Poder Executivo e deve superar também a arrogância comum àqueles que acusam.
O curioso está no fato de que se usam contra o Gaeco as mesmas teses que, à primeira vista, parecem-lhe favoráveis. As combativas doutrinas que buscam demonstrar a legitimidade ministerial para a investigação criminal são assimiladas e contraditadas pela outra escola de processo penal que nos parece mais democrática. Sob pena de vermos a democracia se curvar à necessidade de segurança nacional, já usada tantas vezes por estados de exceção, deveremos limitar a atuação do Ministério Público.
É falacioso o argumento que, dando poder a um órgão, a sociedade estará mais segura, os crimes melhor apurados e a democracia defendida por um grupo ou um aparelho incorruptível. E além de falacioso, é demagógico e discriminador. E, ainda têm a coragem de afirmar alguns promotores de justiça que, afastar o MP do Inquérito é mascarar a investigação, tornando-a ineficaz, lenta ou corrompida. Como se, antes do Gaeco, não houvesse apuração de delitos; como se, antes do Gaeco, não houvesse investigadores e delegados de polícia sérios e determinados; e, finalmente, como se todos os promotores de justiça fosse, em razão da função, incorruptíveis. Quer-se reinventar Elliot Ness e os intocáveis? No país do norte, as estripulias contra a máfia da bebida e do jogo duraram enquanto durou o moralismo da vedação ao consumo de álcool e jogo.
A corrupção de uma instituição não se cura extinguindo-a ou diminuindo-lhe o poder, mas treinando, aparelhando e retribuindo o trabalho com a justa paga que jamais a polícia viu concretiza-se. Por isso, trata-se de afastar a discussão mais profunda, mais difícil e mais sensível para nos fazer engolir a pílula paliativa do Gaeco, quando falta gasolina, papel, caneta e tecnologia à polícia. E, no mérito, nem mesmo o Ministério Público tem pessoal, treinamento e tecnologia para atuar no combate ao crime organizado, se reclama que tantos feitos administrativos não podem ser respondidos ou apurados por absoluta falta de condições. E, mesmo assim, quer a vaidade de conduzir inquéritos diretamente, presidindo, furtando ainda mais promotores dos quadros da instituição. Certamente, daria mais reconhecimento da opinião pública, mas não resolveria o problema pelo qual nem mesmo os promotores que defendem o Gaeco são capazes de se mobilizar: o aparelhamento da polícia e a criação de institutos de inteligência na investigação criminal de vulto, na prevenção e repressão. Apurar grandes notícias querem, mas se esquecem que o crime que mata é o do vizinho assaltante, estuprador ou assassino.
Vejamos, em conclusão, o porquê dessa aguerrida defesa pelo restabelecimento do papel tradicional do Ministério Público, afastando-o das investigações:
a) teoria dos poderes implícitos? – nem sempre, em Direito, "quem pode o mais, pode o menos", tanto que o destinatário da ação, quem vai julgá-la definitivamente é o Judiciário e, nem por isso, o magistrado pode investigar ele mesmo, pessoal e diretamente. A teoria dos poderes implícitos continua validade para cada órgão administrativo, obedecendo as atribuições conferidas por lei. E isso não é por acaso: é assim em função de garantias que se quer trazer para o acusado, sendo a maior delas a impessoalidade do acusador, conforme se lerá adiante. Mais uma ilustração de que a máxima nem sempre é aplicável é o procedimento especial do Júri, onde após as alegações finais, o magistrado tem quatro possibilidades: pronunciar, impronunciar, absolver e desclassificar; ora, se tem o poder de absolver, que é o mais, porque não julga o mérito de uma só vez, que é o menos? Se tem o poder de desclassificar, afastando o processo penal da competência do Júri, por que não reclassifica assim que pode, expedindo o mérito, já que acompanhou todo o processo? Porque a lei entende que não pode ser o mesmo magistrado, ainda que o processo perca muito de sua cognição, sendo enviado a outro julgador. Mas aquele, originário, passou a não ter mais competência para condenar um réu que não cometera crime doloso contra a vida, mas tinha para absolver sumariamente, duas decisões de mérito equivalentes. Nem sempre, portanto, poder mais é poder menos, deve-se distinguir a qualidade, profundidade e natureza de ambos os atos, assim com o Ministério Público que tem, deveras, o poder de acusar, mas não de investigar;
b) o que significa requisição? – pela lição dos mestres em processo penal, Frederico Marques, Eduardo Espínolla Filho, Hélio Tornaghi, Borges da Rosa, entre tantos outros clássicos, requisição diferencia-se de requerimento sendo que este é um pedido, uma solicitação passível de ser negada, enquanto a requisição é uma determinação, juridicamente impermeável à negativas. O Ministério Público pode, como o magistrado, requisitar a instauração de Inquérito Policial, sempre que tiver conhecimento de um fato criminal que precise ser apurado, termos em que o delegado de polícia não poderá deixar de instaurar o Inquérito requisitado. Ora, se é assim, a lei nos deu uma forte pista sobre o que queria para o Ministério Público: se este pode determinar, sem possibilidade de esquivas, a inauguração de procedimento investigativo, não pode o próprio Parquet investigar, porque senão seria outra a dicção legal. Se o CPP prevê que, quando o Ministério Público quer ver aberto um inquérito, precisa se socorrer de uma requisição, significa que não prevê e até afasta a possibilidade de investigação criminal direta, pois senão poderia o delegado negar a abertura de Inquérito e o próprio promotor interessado conduzir as investigações, hipótese descartada em nosso ordenamento.
c) onde está a imparcialidade? – no curso do processo, o Ministério Público é parte e é fiscal. Situação única e bela em nosso ordenamento processual brasileiro, temos uma instituição que não só é interessada na promoção da justiça, como fiscaliza a regularidade do próprio processo: única, porque não temos paralelo com outros pólos processuais que atuam em nome próprio ou de terceiros em substituição processual, mas nunca defendendo a lisura do pleito requerido pela própria parte. É isto que o Ministério Público faz – detém a titularidade da ação penal, requerendo a condenação do acusado, mas pode a qualquer momento, convencer-se do contrário e requerer a absolvição, ou seja, o Parquet tem uma missão tão nobre que eles mesmo é fiscal de seus atos e imputações. Quando acreditar que mereça a liberdade, a redução de pena, a progressão em sentenças demasiadamente severas, pode também o Ministério Público deduzir suas razões em grau recursal por meio de uma apelação a favor do réu, que o próprio órgão ministerial ajudou a condenar. A Constituição reservou o panteão da legalidade ao Ministério Público, deixando à ponderação de cada promotor de justiça a reserva ética de suas atitudes que têm forte eco no ordenamento jurídico. Entretanto, não se pode negar que o Parquet, processualmente falando, é parte e as partes devem guardar equivalência, pelo princípio da isonomia processual. Não pode o advogado de defesa do investigado apontar ao delegado o que e quando deve fazer, como deve diligenciar, quando seria mais conveniente, quais os próximos passos da investigação, isto porque adotamos um sistema misto, onde a fase do Inquérito é essencialmente inquisitiva e não contraditória. Como, processualmente, o Ministério Público Acusador não vale mais do que a Defesa, e além disso, tem mais o ônus de ser imparcial, deve se afastar do Inquérito, de modo a que as forças mantenham-se equivalentes, equilibradamente medidas, sem que nenhuma das partes tenha prerrogativas sobre a outra. Em outras palavras, o Ministério Público é parte imparcial, se se pode permitir o trocadilho;
d) princípio da legalidade? – interessante é a argumentação de que não há nenhuma vedação expressa do legislador constitucional ao poder investigativo do Ministério Público. Curioso porque, no funcionalismo público, inverte-se a primado penal para outro mais severo que é o administrativo. Em direito penal, tudo é permitido, quando não negado ou tipificado pela lei; em direito administrativo, pode apenas o funcionário público agir em consonância com a lei e não ao seu alvitre, quando não proibido. Só deve fazer o expressamente permitido, o que está claramente apontado pela lei, não deve inovar em matéria legislativa que não compete ao funcionário, não pode exceder-se, extravasar a sua atribuição, nem mesmo supondo que é para o bem social. Portanto, não estar proibido não é argumento para o excesso ministerial, quando, ao contrário, é freio.