Carl Von Clausewitz afirmou que "a guerra é a continuação da política por outros meios", rejeitando que a guerra é feita pela guerra. Os conflitos armados existem como uma ultima ratio ou raison d’état . O desenvolvimento dos armamentos nucleares levou Hannah Arendt a fazer uma profunda revisão deste conceito:
“Estamos já tão escravizados pela guerra total, que não conseguimos imaginar uma guerra entre a Rússia e os Estados Unidos em que a Constituição norte-americana ou o atual regime russo sobrevivam à derrota. Mas isto significa que uma guerra futura não se dará por conquista ou perda de poder, por fronteiras, por mercados de exportação ou Lebensraum, isto é, por coisas que podem ser obtidas por meio da discussão política e sem o recurso à força. Significa que a guerra deixou de ser a ultima ratio de negociações e seus objetivos determinados no ponto em que estas se rompiam, de modo que as ações militares supervenientes não eram senão a continuação da política por outros meios. O que está hoje em questão é algo que nunca poderia ser, é claro, objeto de negociação: a mera existência de países e seus povos. É neste ponto – em que a guerra não mais supõe como dada a coexistência de partes hostis e já não busca apenas pôr fim ao conflito pela força – que ela deixa verdadeiramente de ser um meio de política e, como guerra de aniquilação, começa a cruzar a fronteira estabelecida pela política e a aniquilar a própria política.”
(A Promessa da Política, Hannah Arendt, Difel, Rio de Janeiro, 2008, p. 218-219)
A Guerra Fria acabou há décadas. Portanto, o risco de aniquilação da política por uma guerra termonuclear entre EUA e Rússia raramente é levado em consideração na atualidade. O mundo tem sido oprimido por outro problema: o fim da Guerra Fria produziu menos paz e mais conflitos armados. A guerra deixou de ser um fenômeno político e se transformou num fenômeno comercial. Foi por esta razão que em fevereiro de 2008 publiquei na internet o texto AS GUERRAS-VERNISSAGES NORTE-AMERICANAS https://www.midiaindependente.org/pt/red/2008/02/412767.shtml?comment=on que transcrevo parcialmente abaixo:
“A guerra tem um elevado custo humanitário e econômico. Como as vítimas são predominantemente iraquianas, o governo norte-americano tem pago o preço de bom grado. No Pentágono os especialistas já devem ter chegado à conclusão de que a guerra contra o terror gerará menos vítimas norte-americanas do que a Guerra da Coréia e mais unanimidade do que a Guerra do Vietnã.
A única desvantagem em relação às guerras passadas, é que a partir de 11/09/2001 os americanos passaram a ser obrigados a ver as vítimas ao vivo e não em sacos plásticos. A morte num país distante é sempre amenizada pela ausência de imagens grotescas como a do WTC desabando. Novos atentados não são apenas esperados, de certa maneira eles são até desejados. Afinal, os atentados é que legitimarão represálias em diversos pontos do planeta possibilitando a preservação da empresa EUA Guerra S/A.
A guerra no Iraque tem, ainda, duas vantagens adicionais. A primeira é política a outra econômica. Através do uso da força a Casa Branca deu credibilidade à sua política externa. "Quem não estiver conosco está contra nós", disse Bush. Após os aviões norte-americanos terem despejado milhares de toneladas de bombas sobre o Iraque todos são obrigados a acreditar que os gringos não estão brincando. Por outro lado, a guerra está para a venda de equipamentos militares como as vernissages estão para as obras de arte.
Os equipamentos usados no Iraque são o que existe de mais fino em matéria de destruição e mortandade. Quem quiser adquirir os brinquedinhos “made in USA” pode dar um pulinho em Basra, Bagdá e Mossul, verificar “in loco” a eficiência dos mesmos. Depois basta fazer um pedido para o fabricante e, desde que pague o preço ajustado, será prontamente atendido.“
Como resultado da guerra no Iraque e de outros conflitos, mais ou menos sujos promovidas pelos EUA em diversos países do Oriente Médio, o Estado Islâmico nasceu e cresceu desestabilizando ainda mais aquela região. Há cinco anos a Síria sangra e agoniza sob a pressão dos terroristas islâmicos. O país só recuperou o fôlego nos últimos meses em razão das operações militares conduzidas pela Rússia. E agora, em razão dos atentados em Paris, a França também começou a bombardear o Estado Islâmico. O que vemos na Síria além de destruição e cadáveres?
Os terroristas islâmicos usam veículos Toyota https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,eua-investigam-toyota-por-veiculos-utilizados-pelo-estado-islamico,1776264 . Os fabricantes destas caminhonetes certamente estão lucrando muito com a guerra, mesmo não sendo islâmicos.
A Rússia está empregando seus modernos aviões Su-34, Su-24M e Su-25SM para bombardear instalações do Estado Islâmico. Belas imagens dos produtos “made in Rússia” invadiram a internet https://www.aereo.jor.br/2015/10/11/aviacao-militar-russa-bombardeou-63-alvos-na-siria-nas-ultimas-24-horas/.
Ontem, os franceses entraram na guerra ontem. Os caças-bombardeiros “made in France” também foram filmados para consumo do público https://www.youtube.com/watch?v=oLc2hye_gt4. Na verdade a França já havia demonstrado a utilidade de seus aviões na região em 2014 https://www.youtube.com/watch?v=oLc2hye_gt4.
Os norte-americanos, sempre tão empenhados em fabricar guerras para poder continuar fabricando e exportando armamentos, também estão usando a Síria para expor seus produtos. Os EUA já empregaram mísseis Tomahawk e F/A-18 C Hornet contra o Estado Islâmico https://www.naval.com.br/blog/2014/09/23/aeronaves-e-misseis-tomahawk-atacam-alvos-do-ei-na-siria/, mas sem obter a mesma eficácia que a Rússia.
Suponho que para alguns os aspectos humanitários da guerra na Síria são irrelevantes. A guerra das marcas de armamentos é bem mais interessante e lucrativa do que a ajuda àqueles cujas vidas foram destruídas pelo conflito. O consumo de imagens dos aviões, mísseis e tanques utilizados no conflito anestesia russos, franceses e norte-americanos, levando-os a sequer questionar o custo das operações militares (bem maior do que o custo de cuidar de milhões de refugiados).
A guerra na Síria levou o terror novamente para a Europa. Isto certamente reforçará o consumo de armamentos sofisticados e caros, inclusive por países cujas populações são esmagadas sob o peso das políticas neoliberais que combinam desemprego com redução de despesas sociais.
O grande irmão imaginado por George Orwell vigiava tudo e todos para manter o Estado em guerra. O grande irmão que está em funcionamento nem se dá ao trabalho de reprimir quem quer que seja. Ele apenas distribui belas imagens de armamentos caros sendo usados, para que os povos bestificados e amedrontados aceitem que seus governos comprem mais aviões, tanques e mísseis mesmo quando tenham que deixar de investir em saúde e educação para fazer isto (como ocorreu no caso da Itália e da Espanha).
A perversão neoliberal chega assim à sua apoteose: a guerra é feita pela guerra, porque só a guerra mantém os fabricantes de armamentos produzindo e as populações dos EUA, França, Espanha e Itália acorrentadas às políticas neoliberais que marginalizam a humanidade e priorizam o lucro. A guerra como ultima ratio ou raison d’état deixou, portanto, de existir. Mas os militares continuarão a citar Carl Von Clausewitz porque ele mesmo foi transformado num garoto de propaganda do belicoso neoliberalismo.