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A norma em Kelsen: a sanção como fundamento da norma

10/05/2016 às 14:01
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Kelsen formula sua "teoria pura", defendendo a formulação de uma ciência cujo objeto único seria o próprio Direito positivo, tratando a sanção como fundamento da norma.

1. INTRODUÇÃO

Segundo HANS KELSEN, toda norma jurídica seja ela de qualquer natureza, contém não apenas a imposição da conduta em si (ordem jurídica positiva), mas igualmente uma sanção para a hipótese de descumprimento (ordem moral positiva) e também pelo seu cumprimento. Essas normas compõem uma unidade, uma coesão. Uma dependente da outra. Uma completando a outra. A essas normas (ordem jurídica positiva e ordem moral positiva), HANS KELSEN as denomina de normas jurídicas primárias e normas jurídicas secundárias.

Sobre a denominação dessas normas, KELSEN aparentemente entra em um ligeiro conflito. Num dos capítulos (15) de uma de suas principais obras (Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris, 1986) ele afirma que a norma tem como fundamento a sanção, enquanto noutro (35), o contrário.

Acerca dessas normas jurídicas (primárias e secundárias), tratadas com desvelo e perfeição por KELSEN, é que abordaremos, com brevidade e com poucas palavras, porém com objetividade, neste nosso trabalho.


2. A SANÇÃO COMO FUNDAMENTO DA NORMA – A CONCEPÇÃO DAS NORMAS PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA

A adaptação da conduta do ser humano no sentido querido pela comunidade, muitas vezes, é imposta obrigatoriamente, até sob sanção. Há evidentemente, nesse sentido um cunho axiológico, porque, de um modo ou de outro, revela os valores que são os da comunidade em determinado momento histórico.

No caso do Direito, essa valoração dos fatos da vida se revela e se consubstancia em normas que procuram dar ordenamento à conduta, em sua interferência intersubjetiva, inclusive atribuindo efeitos, no campo do relacionamento inter-humano, a simples eventos da natureza, enquanto se refiram aos seres humanos.

Assim, a vida é uma seqüência de fatos. Desde o nascimento até a morte, com todos os atos que agregam a vida, desde o vulcão que entra em erupção, às fases da lua, tudo o que nos abraça, seja de caráter físico ou psíquico, são fatos. O mundo mesmo, em que vemos acontecerem os fatos é a soma de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os futuros se vão dar.

Quando o fato interfere, direta ou indiretamente, no relacionamento inter-humano, afetando, de algum modo, o equilíbrio de posições do homem diante dos outros homens, a comunidade jurídica, sobre ele, edita norma que passa a regulá-lo, imputando-lhe efeitos que repercutem no plano da convivência social. A essa norma é dada a denominação de norma jurídica.

Parece claro, daí, que a norma jurídica atua sobre fatos dos quais o mundo é composto, atribuindo-lhes efeitos específicos (efeitos jurídicos) em relação aos homens, que constituem um plus quanto à natureza do fato em si. A norma jurídica, deste modo, adjetiva os fatos do mundo, conferindo-lhes uma característica que os torna espécie distinta dentre os demais fatos.

Segundo HANS KELSEN, a norma jurídica é uma dualidade de imposição e coação (sanção). Assim, partindo do pressuposto que cada norma jurídica seja o ajuntamento de duas normas, os atos de coação, a imposição da norma, a sanção em si, são classificados por KELSEN como norma jurídica primária, posto que põe como devida a fixação de um condicional ato de coação por parte de um órgão judicial para o caso de violação dessa norma, enquanto a conduta estabelecida para cumprimento dos sujeitos de direito é denominada de norma jurídica secundária.

A sanção, nesse caso, busca refrear aquele que atentou contra o equilíbrio social ameaçado por seu ato. Não há desconexão, doutrinária ou jurisprudencial, a respeito do princípio geral segundo o qual a sanção implica infração (conduta ilícita).

Diante desse quadro, tem-se, logicamente:

a) - norma impondo a conduta;

b) – a conduta, em obediência à norma;

c) – conseqüência: a aplicação da sanção pela existência de conduta ilícita.

Para Kelsen o direito e Estado se confundem. Direito é um conjunto de normas, uma ordem coativa. As normas, pela sua estrutura, estabelecem sanções. Quando uma norma prescreve uma sanção a um comportamento, este comportamento será considerado um delito. O seu oposto, o comportamento que evita a sanção, será um dever jurídico. Ora, o Estado, neste sentido, nada mais é do que o conjunto das normas que prescrevem sanções de uma forma organizada.

O Direito praticado no plano da ação é dependente, indiscutivelmente, à eventualidade de ter de concretizar-se mediante a influência de uma força exterior, que é o poder social institucionalizado. A sanção, assim, é a segurança jurídica dessa concretização, prevista na norma como um dever ser resultante da não prestação. Entende KELSEN, desse modo, que a sanção é mera conseqüência, simples resultado de uma posição perante o direito. Cumprida a norma não há possibilidade de sanção. Por outro lado, havendo previsão legal, ou seja, prévia fixação, não sendo cumprida a norma, deverá ocorrer uma sanção punitiva.

Para KELSEN e seus seguidores, a norma jurídica perfeita há de ter, necessariamente, a coação, nela representada pela sanção como seu elemento como seu elemento fundamental, essencial. Entendem eles que os preceitos que não fixem uma sanção para a hipótese de violação da norma jurídica, não podem ser consideradas como tal, mas sim proposições incompletas, imperfeitas ou meros preceitos auxiliares (leges imperfectae).

Por esse pensamento, o art. 2º do Código Civil pátrio, ao estabelecer que todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil ou como o inciso I, do art. 5º da Constituição Federal, ao estipular que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, bem como as outorgativas, integrativas, promocionais, programativas não são normas jurídicas completas, pela ausência da sanção.

Para MARCOS BERNARDES DE MELLO, a proposta de KELSEN é insuficiente para o esclarecimento total do fenômeno jurídico. Sustenta o eminente mestre que:

“I - ao recusar às normas que não contém sanção específica o caráter de normas jurídicas típicas, se não chega a excluir do universo do Direito – porque as considera auxiliares – normas de altíssima relevância, como é o caso, e.g., das normas que definem os direitos fundamentais do homem, ao menos não lhe reconhece a importância e sua verdadeira posição no plano jurídico. Não há como negar, parece-nos, que é muito significativa para o Direito e para a convivência social a norma segundo a qual ‘todos são iguais perante a lei’, do que aquela outra que estabelece a pena de prisão para o ladrão que furta, muitas vezes, para dar de comer aos filhos;

II – segundo, porque fazendo da sanção algo essencial ao essencial ao Direito, confunde a obrigatoriedade das normas jurídicas com a coação, quando essas não são expressões sinônimas. É evidente que o Direito não pode deixar de ser obrigatório, mesmo porque nisto consiste a diferença substancial que o distingue dos demais processos de adaptação social. Mas o ser obrigatório não significa que seja necessariamente punitivo: obrigatoriedade que dizer possibilidade de imposição da norma, pela comunidade jurídica, mais precisamente pela autoridade que detenha o poder de realizar, forçadamente o Direito (o juiz, por exemplo), no caso de ser transgredida.”

Como se vê do argumento acima, na acepção de BERNARDES DE MELLO, a norma jurídica, como Direito, tem na sua essência, na sua base, a obrigatoriedade, como possibilidade de determinação da regra jurídica, podendo haver, coação, sanção, nunca, todavia, como imperativo.

Ainda, segundo a doutrina kelseniana, a verificação se um determinado sujeito de direito violou ou não uma norma (secundária) somente pode ser decidida pelo juiz ou tribunal. Argumenta ele que as sentenças são normas jurídicas, pois sempre existe na sua prolação um ato criativo do magistrado. Na sentença e no acórdão há a elaboração de uma norma concreta, com a criação de regra particular pelo Juiz (singular) ou Juízo (coletivo).

Na ordem normativa kelseniana, implica mais saber se o órgão detém competência para editar a norma, dentro da escala normativa. A sua acepção de jurisprudência está, pois, muito bem situada nesse contexto. Daí a autoridade competente prolatar como que uma norma jurídica concreta.

Para os kelsenianos as normas jurídicas também poderão ser ordens conduzidas, em primeiro plano, aos sujeitos de direito e só em segundo plano, aos órgãos judiciais (singular e coletivo). Partindo dessa premissa, entende ele, que o desconhecimento da lei não isenta o agente da punição devida. Assim é que uma norma jurídica de um órgão judicial também pode ser aplicada a um sujeito de direito que não conhece essa norma jurídica, pois é inteiramente insustentável a opinião (...) de que a natureza de um mandamento pertence o conhecimento que dele ter o destinatário.

HANS KELSEN apostila, com domínio: “Sanções – como observado – são estatuídas por uma ordem normativa para garantir a eficácia dessa ordem. A eficácia de uma ordem normativa – segundo a opinião usual – consiste em que suas normas impõem uma conduta determinada, e efetivamente são observadas, e quando não cumpridas são aplicadas. Quando uma ordem normativa estatui sanções, pressupõe-se que o desejo de evitar o mal estatuído para o caso de violação da norma, de obter o bem estatuído para o caso do cumprimento da norma, é um motivo da conduta adequada à norma”. Ele é claro: a norma jurídica pressupõe a existência de uma sanção como forma de imposição de seu cumprimento ou descumprimento.

Numa mesma obra, embora publicada post mortem, KELSEN admite que na norma jurídica a sanção não é a norma primária, e sim a secundária. Crê ele que, se é admissível que a distinção de uma norma que ordena um determinado comportamento e de uma norma que preceitua uma sanção na hipótese de violação dessa mesma norma, então a primeira deve ser reconhecida como primária e a segunda, como secundária. Diz ele: “Se se admite que a distinção de uma norma que prescreve uma conduta determinada e de uma norma que prescreve uma sanção para o fato da violação da primeira seja essencial para o Direito, então precisa-se qualificar a primeira como primária e a segunda como secundária, e não o contrário, como foi por mim anteriormente formulado. A norma primária pode, pois, aparecer inteiramente independente da norma secundária.

De fato, como bem salienta BERNADES DE MELLO, essa assertiva está em verdadeiro desacordo com o afirmado no capítulo 15 da mesma obra e KELSEN muito provavelmente não entraria, muito menos numa mesma obra, em desacordo com o que afirmara anteriormente, embora seja possível que tenha evoluído de pensamento. Deve ter ocorrido um provável erro de tradução, posto que na versão para o Inglês, (General Theory of Norms – tradução de Michael Hertney, 142, Oxford, Clarendon Press, 1991 – apud Marcos Bernardes de Mello ) da mesma obra, a expressão “e não o contrário, como o foi por mim anteriormente formulado”, está substituída pela expressão “ e não o contrário, como expressei em capítulo anterior.”

Ademais, no discorrer do mesmo capítulo 35, KELSEN parecer retornar ao seu entendimento anterior. Após fazer citação à expressão lingüística da norma jurídica, suprime a referência a conduta ordenada para preceituar somente a sanção para a hipótese de transgressão dessa conduta, asseverando que: “A norma que estatui um ato de coação como sanção aparece como a primária, e a nela implicada, que de modo algum é expressamente formulada, aparece como norma secundária”.

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Nesse mesmo capítulo KELSEN, sustenta que o preceito da sanção é fundamental, que é possível a afirmação: o Direito impõe uma conduta determinada somente por ligar à conduta contrária um ato de coação como sanção, de modo que uma certa conduta somente depois que juridicamente imposta pode ser considerada como conteúdo de um dever jurídico, quando o oposto é a condição à qual uma norma liga uma sanção.

Afirma, por conseguinte, que nessa relação ocorre uma diferença entre o Direito positivo e a Moral positiva. Isso ocorre, ainda segundo seu entendimento, não em decorrência somente de as sanções da Moral não possuírem como características os atos coercitivos, mas também, devido a união entre a regra moral que impõe uma certa conduta ao sujeito de direito e a norma que, na hipótese de descumprimento, a desaprovação não será considerada de capital importância como o ajuntamento entre as duas normas em comento no domínio do Direito.

Sobre a relação entre Direito e Moral, ensina KELSEN: Se a ordem moral não prescreve à obediência, à ordem jurídica em todas as circunstâncias e, portanto, existe a possibilidade de uma contradição entre a Moral e a ordem jurídica, então a exigência de separar o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que a validade das normas jurídicas positivas não depende do fato de corresponderem à ordem moral, que, de um ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito positivo, uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral...Dentro da Moral, a norma que impõe uma certa conduta, em todo caso, é a primária, a que estatui a sanção é apenas uma norma secundária.” Como se vê e segundo esse prisma, uma norma jurídica pode contrariar uma norma moral, sem deixar de ter validade e que a imposição da conduta é a norma primária e a que estabelece a sanção é a secundária.

Assim, KELSEN chega a conclusão que um direito positivo sempre pode contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixa de ser válido. Então, o direito positivo é o direito posto (positum – posto e positivo) pela autoridade do legislador, dotado de validade, por obedecer a condições formais para tanto, pertencente a um determinado sistema jurídico. O direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como tal, pois a natureza do direito, para ser garantida em sua construção, não requer nada além do valor jurídico. Então, direito e moral se separam. Assim, é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais. Validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valor diversos, portanto (uma norma pode ser válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; inválida e injusta).


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito e a Moral são considerados pelo ensinamento tradicional como dois círculos concêntricos, em que a Moral é mais extensa, abarcando o Direito. Assim, todas as normas jurídicas seriam, também, dotadas de moralidade.

O direito não é uma ciência exata, o direito é constituído de norma, fato e valor, é a norma valorada. Segundo KELSEN, o direito é antes de tudo norma. O direito se alcança através do juízo de valor, que é a sentença, o qual utiliza a premissa menor e a conclusão para se chegar ao direito.

A norma, a nosso ver, pode existir sem a sanção. Esta não é essencial. A sanção é apenas uma possibilidade, embora a obrigatoriedade seja uma essência do Direito, ela não significa, necessariamente, a prescrição de uma punição para a hipótese de violação.

Pode existir, voltamos a afirmar, norma jurídica sem sanção.

A norma jurídica, então, nada mais seria do que o instrumento do qual se utiliza o Estado para fazer vale o Direito. Não o Direito abstrato, volúvel, ideal, mais o Direito posto, o Direito concreto.

A sanção, como forma de punição, é apenas uma das características eventuais, podemos assim dizer, da norma jurídica. Ela não é fundamental, essencial para a existência da norma.

No mundo jurídico existem normas que compõem as constituições, os códigos, leis, decretos, sem que sejam estabelecidas sanções, especificamente, no estrito sentido de coação, punição. Como exemplos temos os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, as leis concessivas de títulos de cidadania, de comendas, honoríficos, dentre muitos outros, que, sem estabelecerem sanções, não deixam de serem normas jurídicas na melhor acepção da expressão.

É o nosso entendimento.

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Sobre o autor
José Olindo Gil Barbosa

Juiz de Direito em Teresina, Capital do Estado do Piauí, pós-graduado em Direito Processual e Direito Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, José Olindo Gil. A norma em Kelsen: a sanção como fundamento da norma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4696, 10 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44659. Acesso em: 22 dez. 2024.

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