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A denunciação da lide pelo Estado ao agente público causador do dano ao particular, sob o prisma da constitucionalização do Direito

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03/11/2003 às 00:00
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10. Análise do art.37, § 6.º da Constituição de 1988 à luz da ponderação orientada pelo postulado da proporcionalidade.

Como pudemos constatar, o problema em torno do qual gira a controvérsia jurídica está na relativa fragilidade dos argumentos colocados por aqueles que defendem - com relativo [76]acerto - ser vedado ao Estado denunciar a lide ao servidor. Argumentos inconsistentes, além de serem facilmente desqualificados pela teoria adversa, fazem com que a discussão seja restrita à mera questão de natureza processual, esquecendo os debatedores que os argumentos devem estar enraizados na unidade axiológico-teleológica da Constituição da República.

Mais especificamente, os fundamentos para restringirmos a denunciação da lide aparentemente legítima devem ter como sustentáculos os princípios constitucionais diretamente afetados, tais como a dignidade humana (1.º,III), a solidariedade (3.º,I), o acesso à justiça (5.º,XXXV) e a responsabilidade objetiva do Estado (37, §6.º). Tudo, pois, para que seja concretizado o valor maior: a justiça (3.º,I c/c 170, caput).

Conseqüentemente, não há como solucionarmos a questão sobre a legitimidade constitucional da denunciação da lide pelo Estado a seu agente, sem submetermos os elementos – princípios e direitos - conflitantes do caso concreto ao procedimento de ponderação, sob a orientação do postulado da proporcionalidade.

Em resumo, o postulado da proporcionalidade é composto por três subprincípios. O primeiro deles, conhecido por adequação, irá verificar a pertinência ou aptidão de determinada medida selecionada, para que seja alcançado o resultado útil desejado. Impõe que o meio escolhido pelo criador ou aplicador da norma seja apto à promoção do fim almejado.

O segundo subprincípio - que devemos analisar sucessivamente - é o da necessidade ou exigibilidade, cujo objetivo é identificar se o meio empregado, dentre os igualmente eficazes, é o mais suave ou o menos invasivo aos elementos envolvidos no conflito a ser resolvido. De modo muito simplista [77], afirmamos que não se justifica o uso de uma medida mais lesiva quando outro meio alternativo e mais suave estiver disponível para ser aplicado e proporcionar uma eficácia equivalente na obtenção do propósito.

Por derradeiro, avaliamos a existência concreta da proporcionalidade mesma, considerada stricto sensu, por meio de efetiva ponderação de bens conflitantes, cujo resultado constituirá uma regra de precedência condicionada prima facie. Neste ponto, verificamos se o sacrifício infligido a determinado indivíduo em virtude da decisão foi justificado pelos efeitos sociais benéficos que decorreram desta medida interventiva empregada. É a constatação real do custo-benefício social. [78]

Para concluirmos se cabe ou não a denunciação da lide realizada pelo Estado a seu agente, mister se faz que ela seja o meio adequado a se chegar a um fim constitucionalmente legítimo; que seja o mais suave dentre todos os de eficácia semelhante [79] e juridicamente possíveis; e, principalmente, que o sacrifício gerado a algum direito fundamental do particular lesado em decorrência da denunciação seja de relevância jurídica inferior ao benefício efetivo a ser auferido pela sociedade.

E, após um estudo mais aprofundado, constatamos que, na grande maioria das vezes, a denunciação da lide pelo Estado é desproporcional.

Procuraremos justificar a nossa opinião, através da análise de duas situações hipotéticas. Os exemplos tornam mais palpáveis e intuitivas a aceitação de nossa linha argumentativa.

10.1. Situação hipotética 1: caso fácil.

Imaginemos que, durante a construção de túnel que ligue Jurujuba a Piratininga – ambos, bairros de Niterói, separados por montanhas rochosas -, parte do material transportado para a obra pública tenha se desprendido do caminhão transportador e caído sobre um táxi que passava ao lado. A queda do material, segundo várias testemunhas, deu-se em razão de o motorista do caminhão – servidor público - ter sido imprudente na direção do veículo. O táxi teve perda total. O taxista, pais de três filhos menores, auferia renda mensal média de R$ 1.000,00 e não possuía outra fonte de renda.

Inicialmente, identifiquemos os argumentos a favor e contra a denunciação da lide pelo Estado.

A favor, justifica-se a denunciação através de uma das interpretações possíveis dos enunciados normativos constantes na CRFB,37,§6º - que assegura o direito de regresso em face do agente público culpado - e no CPC,70,III – que prevê a hipótese de denunciação da lide aparentemente pertinente a este caso. Todavia, esta interpretação atribui maior importância aos elementos gramaticais dos textos do que à preservação da unidade constitucional, por mediação de uma interpretação sistemática. [80]

Contra a denunciação, fala outra interpretação também extraída destes mesmos enunciados. Porém, fundada em argumentos de ordem sistemática e de hierarquia constitucional, que se conformam à unidade da Constituição na maior parte dos casos da vida.

Quanto à identificação dos elementos que se confrontam, pelo lado do Estado, apresenta-se o direito de regresso em face do agente público negligente, constitucionalmente assegurado (CRFB,37,§6.º).

Em contrapartida, o indivíduo suportou a lesão do núcleo essencial do direito fundamental ao livre exercício da profissão, o que afetou diretamente a sua autonomia para conduzir a própria vida e a de sua família, com liberdade e dignidade, dentro dos padrões normais a que estava acostumado (CRFB,1.º,III;5.º,caput,XIII;170,caput).

O que fundamenta o exercício do direito de regresso do Estado por meio da denunciação da lide? Unicamente, o reverenciado ‘princípio’ da supremacia do interesse público, que, conforme explicamos, sequer é norma jurídica. Há, de fato, algum interesse público em jogo? Certamente, acreditamos estar presente o interesse público no ressarcimento, o mais célere possível, do prejuízo causado ao erário, em função deste integrar o patrimônio público, que é indisponível e pertencente à sociedade.

Mas este interesse público em recompor o erário, se realizado, proporciona um benefício coletivo imediato aos integrantes da sociedade? Obviamente que não, pois sabemos perfeitamente que a sociedade apenas se beneficia do dinheiro público quando políticas públicas de qualidade são postas em prática pelos Governos de ocasião. E a nossa experiência de vida demonstra que isso é utopia.

Chegamos à conclusão de que o direito de regresso do Estado, garantido pela Constituição, representa, em geral, mero interesse público secundário, que a priori jamais poderá se sobrepor ou criar obstáculos à satisfação de quaisquer direitos fundamentais do indivíduo [81], seja de caráter pura ou predominantemente patrimonial, seja de natureza pura ou predominantemente existencial. [82]

Todavia, perguntamos: qual o fundamento para rejeitarmos a denunciação da lide pelo Estado, tendo em vista a reparação do direito fundamental do taxista? Por se tratar de um direito fundamental de natureza existencial, basta a alusão ao princípio da dignidade da pessoa humana (CRFB,1.º,III;170,caput). Entretanto, podemos citar ainda o princípio da solidariedade em seu duplo sentido, objetivo e subjetivo, já comentado noutra passagem deste escrito.

Do resultado da ponderação ao qual chegamos, podemos retirar a seguinte regra de precedência condicionada universalizável [83] não se admite denunciação da lide pelo Estado ao agente público causador de dano a particular, se ela objetivar puramente a busca de um interesse público secundário, e se a lesão sofrida pelo particular tiver afetado um direito fundamental.

10.2. Situação hipotética 2: caso difícil e extremo. [84]

Imaginemos agora que o Estado, respeitando o pressuposto constitucional do relevante interesse coletivo (CRFB,173,caput), tenha ingressado nas atividades de construção imobiliária, a fim de facilitar às pessoas de baixa renda a aquisição da tão sonhada casa própria, por pagamento de infinitas prestações a preço módico.

Suponhemos, também, ser possível pessoas financeiramente bem sucedidas comprarem imóveis, desde que seja por pagamento à vista, para que estes valores, ingressados de uma só vez, sejam empregados na ampliação da atividade de construção pública.

Certo milionário adquire, à vista, dez unidades - de um total de cem - já para serem entregues, pagando o preço total de R$ 500.000,00. Vislumbremos um servidor público, insatisfeito e inconformado com a sua remuneração - que não era reajustada há mais de oito -, bem como subordinado a um chefe extremamente rude e arbitrário, que o perseguia constantemente por mera antipatia.

Sabendo ser o seu chefe o responsável pela entrega do empreendimento, acreditemos que o referido servidor, em plena madrugada, tenha se dirigido ao empreendimento e provocado um incêndio de grandes proporções, destruindo-o completamente. Para a sua infelicidade, houve testemunhas.

Acrescentemos ao nosso exemplo a informação de que este servidor público era casado e riquíssimo, e se submetia às condições e circunstâncias do serviço porque, apesar de tudo, adorava o que fazia. E que os 90 apartamentos do edifício destruído haviam sido adquiridos por pessoas hipossuficientes.

Perguntamos: cabe denunciação da lide pelo Estado?

Comecemos a análise do problema. Não temos dúvidas de que a hipótese se enquadra nos enunciados normativos referentes à denunciação da lide e ao direito de regresso do Estado.

Pelo lado do Estado, diferentemente da situação hipotética 1, não existe apenas o direito de regresso com vistas à pura satisfação de interesse público secundário. Há, indiretamente, respaldando prima facie a denunciação da lide, o direito fundamental à moradia (CRFB,6.º) de noventa indivíduos de baixa renda, que ainda pagam, com sacrifício, seus respectivos financiamentos junto à construtora pública. [85] Por conseguinte, fica evidente a presença de interesse público primário, e, indiscutivelmente, benéfico à coletividade.

Sob o ângulo do comprador dos dez apartamentos destruídos, por ser milionário, o seu prejuízo pode ser considerado irrelevante, se comparado à sua fortuna. Podemos considerar que houve lesão ao direito fundamental à propriedade? Acreditamos que não. Se concebermos a função social da propriedade (CRFB,5.º,XXIII) como parte integrante do direito fundamental à propriedade (CRFB,5.º,caput), esta perda patrimonial não afetou este direito do milionário. A aquisição das dez unidades imobiliárias ocorreu a título de investimento. E, em toda atividade de investimento financeiro,há riscos inerentes ao negócio (e.g.,CRFB,170,p.único;174;CLT,2.º,caput).

Portanto, neste caso, não vislumbramos direito algum violado. Simplesmente, os riscos financeiros do empreendimento foram estimulados de modo reprovável pelo servidor público, o que, certamente, afetou a prognose sobre os riscos do negócio feita pelo milionário, quando no exercício de sua autonomia privada.

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O que fundamenta a denunciação da lide pelo Estado? Incontestavelmente, a presença de um interesse público primário, constituído pela promoção do fim constitucional de erradicar a pobreza e as desigualdades sociais. Tal fim conforma o conteúdo do que denominamos princípio protetivo dos socialmente hipossuficientes (CRFB,3.º,III). Além deste, o princípio da dignidade da pessoa humana endossa a legitimidade constitucional da denunciação da lide pelo Estado neste exemplo peculiar.

Sob o aspecto do particular lesado, o que fundamenta a recusa da denunciação pelo Judiciário? O direito ao ressarcimento mais célere tem respaldo no princípio da responsabilidade objetiva do Estado. Porém, nesta hipótese, não há, a priori, argumentação plausível que seja possível elaborar com o auxílio deste princípio, para justificarmos a rejeição da denunciação da lide ao agente e, simultaneamente, estar em conformidade com o postulado da unidade constitucional.

É cediço que o milionário faz jus à indenização do Estado, em decorrência de ter sofrido um prejuízo patrimonial indevido. Não obstante, este direito ao ressarcimento colide com um interesse público primário e de maior relevância, cujo conteúdo - o oferecimento facilitado de moradias à população economicamente hipossuficiente – decorre dos princípios da proteção dos socialmente hipossuficiente e da dignidade da pessoa humana.

Devemos, por fim, verificar a proporcionalidade da medida em denunciar a lide ao agente, levando-se em conta a sua situação pessoal, isto é, a sua condição de milionário e o grau máximo de sua culpabilidade na causação do evento danoso (dolo).

Em primeiro lugar: é a denunciação uma medida em tese adequada para a promoção do interesse público visado? Se partirmos do princípio de que o ressarcimento dos cofres públicos aumentará a quantidade de recursos disponíveis e que serão destinados à atividade de construção em prol dos socialmente carentes, não temos dúvidas quanto à adequação da denunciação como medida adotada.

Sucessivamente: existe algum meio alternativo e em tese tão eficaz quanto à denunciação, que seja menos oneroso aos elementos envolvidos na disputa? Acreditamos ser esta etapa a mais complexa. Vejamos as particularidades do caso:

a) o milionário, que pleiteia a indenização, aparentemente, não suportou lesão a nenhum direito subjetivo seu, seja ordinário ou fundamental;

b) sendo a lesão patrimonialmente irrelevante para o milionário lesado, não haverá para ele qualquer acréscimo de prejuízo econômico acaso o pagamento da indenização leve mais ou menos tempo;

c) por outro lado, o dinheiro a ser despendido pelo pagamento da indenização pelo Estado, deixará de ser aplicado para a ampliação da própria atividade estatal que é destinada à proteção de indivíduos socialmente hipossuficientes;

d) conseqüentemente, será mais benéfico aos indivíduos carentes de moradia que o erário público seja recomposto imediatamente;

e) também não há dificuldade alguma em se retirar do patrimônio pessoal do agente milionário a quantia equivalente ao valor da indenização devida pelo Estado; e

f) para o agente causador do dano, o desfalque em seu patrimônio é economicamente irrelevante, não colocando em risco nenhum direito fundamental seu ou referente à sua família.

Constatamos, pelo exame das circunstâncias do caso acima expostas, que o único direito a sofrer uma maior intervenção em decorrência da redução de recursos públicos qualifica-se como direito fundamental: é o direito fundamental à moradia dos beneficiários da atividade estatal.

Podemos, então, identificar alguma medida alternativa que proporcione a recomposição do erário mais rapidamente do que por intermédio da denunciação da lide pelo Estado? Parece-nos que não. Por conseguinte, neste exemplo hipotético, é a denunciação da lide o meio necessário.

Como última etapa do exame de proporcionalidade, perguntamos: o sacrifício imposto ao particular, provocado pelo retardamento do pagamento da indenização a que tem direito, é menos relevante do que o benefício social que esta protelação da reparação do dano acarreta? Ou, ainda: se analisarmos conjuntamente a lesão sofrida pelo particular, a interferência que o ressarcimento mais rápido dos cofres públicos vai causar na dignidade do agente responsável e de sua família, assim como o benefício social proporcionado pela reintegração do erário, é possível reconhecermos a supremacia deste benefício social sobre a intensidade da interferência da medida nas esferas jurídicas do particular e do agente?

Concluirmos que a denunciação da lide pelo Estado, nesta hipótese peculiar e fantasiosa, faz-se procedente, por ser proporcional em sentido estrito.

Deste resultado da ponderação, apresentamos a seguinte regra de precedência condicionada prima facie: 1) se o dano causado por agente público ao particular for irrelevante para este; 2) se o agente público tiver plenas condições de recompor o prejuízo causado ao Estado, sem que seja afetada a sua dignidade ou a de sua família; 3) se a recomposição célere do erário for socialmente relevante e útil; e 4) se a denunciação da lide tiver como objetivo principal o atendimento a determinado interesse público primário, que esteja relacionado a direitos fundamentais de natureza existencial, torna-se cabível a denunciação da lide procedida pelo Estado ao agente público culpado.

Como última observação: se, no exemplo trabalhado, o agente causador do dano não pudesse ressarcir imediatamente o erário sem comprometer, concretamente, a sua dignidade ou a de sua família, novas variáveis deverão ser avaliadas, tais como: 1) a intensidade em que seria afetada a dignidade do agente e de sua família, acaso o pagamento fosse imediato; 2) a referida intensidade, se o pagamento acontecesse futuramente; 3) a relevância abstrata dos direitos fundamentais afetados de terceiros (moradia), comparada com a relevância concreta dos direitos fundamentais do agente e de sua família efetivamente atingidos etc.

Da mesma forma, mudariam as características fáticas se, além desta nova característica acima aventada, também o particular fosse um sujeito comum de classe média. Nesta situação, se considerarmos a realidade brasileira, acreditamos, intuitivamente, que qualquer lesão patrimonial causada por agente público a indivíduo assalariado [86], deverá ser objetivamente reparada pelo Estado, não se devendo o juízo admitir, prima facie e sob condições normais, a denunciação da lide ao agente, sob pena de exercício abusivo do direito de regresso pelo Estado e, conseqüentemente, de inconstitucionalidade do procedimento, por infringir o direito fundamental à tutela efetiva e tempestiva. [87]

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Sobre o autor
Renato Rodrigues Gomes

Procurador da Fazenda Nacional em Nova Friburgo-RJ e Mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Renato Rodrigues. A denunciação da lide pelo Estado ao agente público causador do dano ao particular, sob o prisma da constitucionalização do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 121, 3 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4474. Acesso em: 22 dez. 2024.

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